quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Que venha o outono

 


Atrasaram o início das aulas em uma semana. Ainda bem que eu não estava aqui brincando de ter expectativas. Há uma parte do meu cérebro que não quer pensar nisso. A dez dias do início do ano escolar, eu estaria reorganizando as roupas de Outono das crianças, planejando cardápios de lanche e repensando minha agenda de trabalho.

É preciso sair e comprar máscaras. 

Suspiro e penso e respiro e não me mexo. 

A volta às aulas deveria marcar um fim e um começo. O fim do verão, dos dias longos, fim do descanso na grama sob o sol. Mas não foi un descanso, foi? Foram meses, tantos meses, de cansaço. De greves, de quarentenas, de mortes, de ferimentos, de estresse e exaustão. Foram meses de fazer força para manter tudo bem, para manter a cabeça funcionando e o coração leve. 

A volta às aulas não tem gosto de fim de descanso nem começo de um. Porque nada acabou, e não tenho em mim a certeza de que enviar as crianças à escola seja sinal de normalidade. Não acredito sequer que vá durar muito. Olho para o futuro com desconfiança e para o passado com a sensação de quem sonhou um sonho estranho.

Atenho-me a outros ciclos, então, que este calendário de horário comercial não anda fazendo sentido. Fecho minha campanha de vendas na loja com imensa felicidade. Com a meta financeira praticamente alcançada, sinto-me forte e feliz por ter tido meios de usar uma arte para pagar a outra. E nesta semana, assinei o contrato com uma editora. 

O sol foi embora de repente e fechou as cortinas antes de sair. A luz lá fora é prateada e difusa, mal atravessando as nuvens densas que tocam o chão em forma de névoa. A brisa é fria nas canelas ainda expostas, e os braços pedem o conforto de um moletom velho. 

Outono aqui sempre traz mudanças à base de muito vento. E a brisa vira vendaval. O livro que vai ser publicado, a escola que recomeça aos tropeços, o trabalho que ganha um novo fôlego, e o pé. O pé que começa a melhorar, enfim. 

Um massagem ayurvédica nas pernas que me arrancou tanto choro do peito que achei que nunca teria fim.Talvez o verão ainda tenha monções restantes. E então o pé doeu menos. E menos. O choro lavando embora aquelas inflamações. 


 

E num dia saio para andar no mato. E no dia seguinte de novo. Olho aquele mato que quer mudar de cor, o cheiro do inicio da destruição suspenso na umidade do ar, e vejo que é o tempo que está suspenso ali naquela névoa. Um respiro entre estações. A pausa que precede a mudança. Esses últimos dias de férias escolares que prometiam ser as últimas explosões energéticas do verão tornam-se passos lentos na lama e sons de água, chá quente e pés no sofá, pensamentos que não chegam à boca, enlaçados no som de suspiros como uma criança no cobertor.

Devagar.

É sabedoria antiga respeitar o ritmo das árvores? Então tudo bem. Fecho os olhos e ouço as folhas. Os pequenos Chipmunks começam a recolher folhas e castanhas para seus ninhos, preparando a toca para o longo sono do inverno. Esperto o bicho que não gasta energia à toa. 

"Não quero que vocês se deem bem o tempo todo", digo à crianças. "Isso é impossível e muito injusto de pedir a vocês. É lógico que vocês vão brigar. Conflitos existem o tempo todo e não é possível evitá-los o tempo todo. Quero que vocês resolvam a briga de uma forma melhor."

Parem de gastar energia à toa, digo a eles.

Sempre haverá um conflito. O futuro está cheio deles. Inevitáveis. Inexcrutáveis. Imprevisíveis. Gritar, bater, espernear, digo a eles, é gastar energia à toa. O Inverno está chegando, já dizia o seriado.

Preciso parar de gastar energia à toa. Ser mais esperta. Recolher minhas folhas e castanhas para a toca. Tocar a ponta da língua no céu da boca e manter meus pensamentos enlaçados no silêncio de quem observa. Ouvir a respiração no ritmo do vento e amar a pausa antes do novo ciclo. 

Que venha a escola, pelo tempo que durar. O novo criado a partir dos escombros da torre que cai. "Quando a torre cai, é o fim de uma vida organizada", dizia a carta do baralho de Tarot que carrego comigo desde os quinze anos. 

O pé doeu de tanto fincar no passado, sem querer andar para frente. Sem querer pisar na lama decadente do que se desfez, nas pedras e farelos daquilo que não podia mais ficar em pé. As palavras tentavam convencer o peito a não sentir, mas tudo o que doeu e não foi sentido virou pé quebrado, pé torcido, pé inflamado que me fez parar e olhar para a destruição. A vida é desorganizada e o conflito é inevitável. 

É poesia pensar que meu livro sai na Primavera. 

Vou passar meu Outono olhando a força destruidora da natureza, que faz cair folhas e as consome até o restar de sua estrutura rendada, e as desfaz até que não sejam sequer lembrança do que foram um dia. Até que sejam a terra fértil para o que ainda não sabemos que vai nascer. Vou confiar no Outono para que a Primavera venha. 


 

....

 Enquanto isso, minha cozinha segue cíclica. Todos os anos, as mesmas fases. O verão é simplicidade e leveza, e os primeiros ventos trazem não apenas as calças compridas, mas os preparos mais complexos. A vontade de barrigar o fogão retorna.  

Um Daal de lentilhas com berinjelas do Jamie Oliver. Uma salada quente de repolho, milho e bacon para acompanhar um peixe grelhado. Um arroz de forno com abobrinhas e tomates puxado da memória, acho que de um livro do Mark Bittman.

Mal esfriou e as crianças já pedem sopa.

Que venha o Outono.


SALADA QUENTE DE MILHO VERDE, REPOLHO E BACON

(do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)

Ingredientes:

  • 200g bacon fatiado, cortado em tirinhas finas
  • 2 colh. (sopa) manteiga sem sal
  • 1 xic. cebolinhas fatiadas bem fininho
  • 1 1/2 xic. milho verde, tirado da espiga
  • 2 colh.(chá) folhas de tomilho
  • 1/2 repolho pequeno, fatiado fininho
  • 2colh (sopa) salsinha picada
  • sal e pimenta do reino

 Preparo:

  1. Aqueça uma frigideira bem grande em fogo médio de acrescente o bacon, coznhando por cinco minutos, mexendo, até que doure e fique crocante. Transfira o bacon para um prato. 
  2. Junte à gordura do bacon na frigideira a manteiga, as cebolinhas, o tomilho, 1/2 colh.(chá) sal e uma pitada de pimenta. Refogue por uns três minutos.
  3. Junte o milho debulhado, mais uma pitada generosa de sal e pimenta e cozinhe por três minutos.
  4. Junte o repolho, e cozinhe,mexendo,até que o repolho murche um pouco. 
  5. JUnte o bacon, a salsinha,acerte o tempero e sirva como acompanhamento de um peixe, por exemplo. 

 

O Daal foi feito segundo a receita de Jamie Oliver, daqui: https://www.jamieoliver.com/recipes/vegetables-recipes/aubergine-daal/

 Mas ao invés de usar a pasta de curry pronta, fiz minha própria pasta, com meia colher de chá de cada um dos temperos: canela em pó, cominho em grão, coentro em grão,mostarda em grão, erva-doce em grão, cúrcuma em pó, gengibre em pó, 1/4 colh.(chá) cardamomo em pó, 2 cravos, 4 grãos de pimenta-do-reino, 4 folhas secas de curry, 1 pitada de pimenta calabresa e 1 pitada de sal. Moí tudo no pilão e misturei a duas colheres de óleo de coco. Você pode simplesmente usar sua mistura de curry em pó favorita também. Fica ótimo de qualquer forma. 

Dica: use metade da quantidade de lentilha e arroz pedida. 250g de lentilha para o Daal rendeu 2 refeições e meia para quatro bocas.Se usar o meio quilo que ele pede, vai ter Daal para um vilarejo indiano inteiro. o_O

Este arroz de forno foi muito simples. Foram duas xícaras de arroz branco que cozinhei. No panelão grande, refoguei duas abobrinhas fatiadas fino em azeite até amaciarem.Juntei meia cebola picada e um dente de alho  e um ramo de tomilho e continuei refogando em fogo médio até tudo estar dourado. Juntei o arroz cozido, dois ovos e um punhado de parmesão e espalhei na panela. Espalhei fatias de tomate por cima, temperei com sal, pimenta e azeite e polvilhei com um punhado de parmesão e levei ao forno médio (180oC) até os tomates murcharem e o queijo derreter.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Pequenas vidas independentes, e um pão com fubá


 

Despertei, devagar, como quem ainda quer manter a mente fechada nos sonhos um pouco mais, ao som de pequenos passos cuidadosos. Um barulhinho que põe mãe em pé e alerta feito soldado em guerra, buscando proteger uma inocência largada à solidão de uma casa sem vigias. Fora assim um dia. Muitos dias. Anos. Mas não mais. Aninhei-me contra o travesseiro cheirando à noite de verão e lavanda, tentando não me mover muito, embalando aquele sono enquanto ouvia pezinhos tocando o chão com a inútil intenção de silêncio. Mal sabem aqueles dedinhos que coração de mãe desperta antes da mente dos filhos. Inspirei fundo e acompanhei na rabeta de meus sonhos aqueles pés deixando o quarto. O som da porta se fechando, cuidadosamente, uma mãozinha amparando a porta para o trinco rolar devagar. 

Rodo o corpo para outro lado, apegando-me aos lençóis, olhando outros ombros largos e adormecidos ali naquele escuro artificial de listras azuis claras. É dia de verão há muito lá fora, apesar das horas pequenas. Os passinhos levam ao banheiro. Ergo a testa do travesseiro para escutar melhor. Barulho de água na pia e sabão. Relaxo.Pontas de pé se distanciam até a cozinha. As janelas fechadas prendem o silêncio dentro, e ouço sua respiração e a minha quando a redoma de vidro da boleira é aberta e repousada com impressionante delicadeza na bancada. A faca saída do cepo assobia em lábios secos. Tento lembrar um sonho bom ao ritmo gostoso do rosnar na faca no pão. Crosta grossa de pão, quebradiça e crocante, faz barulho que enche a boca de vontade. Suspiro um suspiro bocejado, acalmando a fome com uma dose deliciosa de preguiça, esticando as pernas sob o lençol amassado e flexionando os pés devagar, deixando as pontas dos dedos alongarem a base da coluna. 

A faca espalha o cheiro da manteiga como quem sopra um dente-de-leão. Fresca e fria, lembra flor, lembra capim verde sob o vento de verão. Já não posso ignorar os ruídos do dia novo quando ele liga a cafeteira, iniciando uma música de motores e águas que já sei de cor. A máquina chia, raspa, escarra, borbulha e derrama, e um vapor doce de leite quente dança até o quarto.  

O deslizar da gaveta de panelas nos trilhos me faz abrir os olhos. O teto, olhado assim, sem foco, era infinito. Metais escorregando uns sobre os outros, e o ar vibra a tensão de braços infantis tentando evitar o clangor do choque das panelas. Gaveta fechada, metal sobre vidro, o estalo suave do botão do fogão, e o whooomph-pop confortável da borracha que se amassa e solta o vácuo quando a porta da geladeira é aberta. 

Manteiga que derrete é avelã no sol, banho quente e abraço. Toc, toc, crack. Meu coração dá um pequeno pulo de ansiedade e alegria ao quebrar do ovo, como sempre acontece àquele exemplo tão maravilhoso de intrepidez e firmeza de caráter que se adquire na primeira vez em que se aprende a quebrar a casca de um ovo sem que seu conteúdo fuja apavorado. 

Borbulha, espirra, estala. 

A porta do quarto se abre, sem cuidado, e pezinhos firmes atravessam um corpo esguio e determinado pelo vão da minha porta até a sala. 

Bom dia, Thomas!, mia uma gata em forma humana, entre sons guturais de membros espreguiçados e alongados.Espreguiço também meu corpo, meus braços, e jogo as mãos para trás da cabeça, esperando um drink na praia, sob o sol das duas. 

A cozinha agora é um jazz progressivo de tampas de panela e espátulas, carícias de faca em carne de fruta, batida de lâmina na tábua, o jogo batucado da madeira no azulejo quando pés se equilibram sobre o banco, abrir e fechar de portas e louças que raspam e riscam. A torradeira solta e salta feito caixa e chimbau.

A música acaba e há um quase silêncio de instrumentos sendo afinados, do saborear das palmas da plateia. Quando a música recomeça, é breve e aguda. Um tilintar de talheres sobre louças como sinos, uma torneira aberta como quem pede um silêncio incomodado, e então os músicos saem do palco, seus passos abafados pelo tapete da sala. 

É o fim do espetáculo. 

Viro o pescoço mais uma vez para olhar o relógio. Ele grita sete horas em números cor de laranja, e, sem paciência para argumentar com partes eletrônicas que não têm maturidade emocional, levanto num pulo. São os meus passos, agora, adultos e pesados, que se espalham. Espalha um amor quente no peito, também, quando olho a sala. Dois corpos infantis aninhados no sofá, um de roupas, outro com a metade dos pijamas, rostos tão enfiados em livros do Asterix, que mal notam minha presença. Fico ali ouvindo um pouco suas vidas, uma assombração deliciada com a delicadeza do mundo. A mesa está limpa, a louça na pia. Há migalhas e caroços de pêssego sobre a tábua onde jazem as facas sujas. Prova do crime de uma vida independente. 

Bom dia, eu digo.

Bom dia, eles respondem.

Dou-lhes um beijo.Ganho um abraço. Bom dia começa com alegria, bom dia começa com amor, canta um deles.

Quer um café, mamãe? 

Eu faço o meu, obrigada. Mas pode fazer o do papai enquanto eu coloco uma música. 

Tá bom. 

Coloca aquela música que eu gosto? Café quente. Me conta o que você sonhou. Janelas abertas. 

Apanho o pão na boleira. 

Eita! Vocês comeram quase metade do pão!

É que tava muito gostoso, mamãe.

Que bom. 

Que bom. 

...

 

 

Tem sido difícil preparar pães de outra forma que não deixando que fermentem durante a noite. É simplesmente muito prático, e o resultado fica excelente. O pão básico de sempre, mas com apenas 1/4colh(chá) de fermento. Deixado fermentar durante a noite. Moldado de manhã cedo e deixado fermentar apenas enquanto a panela esquenta no forno alto. Pão na panela fechada por meia hora e depois mais quinze minutos sem tampa. Quando acordo bem cedo, tem pão fresquinho e quente `s sete da manhã. Como não amar isso?

Eu comprara um saco muito grande de fubá para um bolo, e andava procurando coisas a fazer com ele. Encontrei essa receita de Broa portuguesa no site de Martha Stewart. Não confio na autenticidade da receita, mas o pão, que leva um pouco de fubá cozido na massa, fica deliciosamente macio. 

 

BROA, ou PÃO COM FUBÁ

(do site https://www.marthastewart.com/1521175/portuguese-cornmeal-bread)

Rendimento: 1 pão grande

 

Ingredientes:

  • 1 1/2 xic. fubá, e mais para polvilhar
  • 1 1/2 xic. água fervente
  • 5 xíc farinha de trigo, e mais para polvilhar
  • 2 colh. (sopa) sal (eu usei apenas uma)
  • 2 colh. (sopa) açúcar
  • 1/4 colh.(chá) fermento biológico seco
  •  1 1/3 xic. água fria
  • azeite para untar


Preparo:

  1. Numa tigela de inox ou plástico (porque a cerâmica ou vidro podem quebrar com o choque térmico), junte o fubá e a água fervendo e misture até que o fubá absorva toda a água. Mexa um pouco para o vapor sair e leve a tigela à geladeira por alguns minutos até que esteja frio o bastante para manipular.
  2. Numa tigela grande, ou na tigela de uma batedeira planetária com gancho, coloque o fermento, a água fria e o açúcar, e deixe quieto alguns minutos para que o fermento dissolva. Junte a mistura e fubá, o sal e a farinha, e misture bem até formar uma massa que possa ser sovada à mão ou na batedeira apenas até que não sobrem pedaços secos. A massa precisa estar macia e ligeiramente grudenta. Caso esteja muito seca, acrescente mais água, uma colher de sopa por vez.
  3. Forme uma bola na própria tigela e cubra bem. Deixe na bancada durante a noite, fermentando por 12 a 18 horas. A massa deve crescer uma três vezes o próprio tamanho.
  4. NO dia seguinte, unte o interior de sua panela de ferro com um pouco de azeite e polvilhe com um pouco de farinha misturada a fubá, para que o pão não grude. 
  5. Despeje a massa fermentada na bancada enfarinhada e forme uma bola. Coloque a massa dentro da panela untada e enfarinhada. Coloque a tampa e deixe fermentar por mais uma hora e meia a duas horas.
  6. Quando a fermentação estiver no fim, cerca de meia hora antes de assar o pão, ligue o forno a 250oC, com a grade posicionada no terço inferior. Assim que estiver bem quente, abra a panela, use uma faca afiada para fazer um X fundo no topo do pão, tampe novamente e leve a panela ao forno. Abaixe o fogo para 220oC e asse por 45 minutos. (O pão é grande, então precisa de mais tempo no forno)
  7. Terminado esse tempo, com muito cuidado, retire a tampa e asse por mais 15minutos destampado, ou até que esteja dourado a seu gosto. 
  8. Retire a panela do forno com cuidado, retire o pão com a ajuda de uma espátula e luvas de forno, e deixe que esfrie COMPLETAMENTE sobre uma grade antes de servir.

Cozinhe isso também!

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