domingo, 5 de abril de 2020

Segunda semana de quarentena, sorte e bolo de aniversário


Ando pelo parque com o cachorro no domingo de manhã, dando bom dia à distância para as pessoas que, meio tímidas, passam por mim com seus cães, enfiando-se no mato para dar passagem "socialmente distante" na trilha estreita. E penso.

Penso como tenho sorte.  E isso parece um repeteco do texto anterior, mas é essa frase - TENHO SORTE - que tem mais me ajudado. O tempo todo, todos os dias, enquanto ando ouvindo os sons da primavera que enfim chegou, a cada passo, acrescento um item à lista: tenho sorte porque...

Tenho sorte de estar aqui. De o governo ter dado a proporção correta à crise e de termos um certo senso de segurança conforme essa estranha distopia se desenrola.

Tenho sorte por ter imigrado há quase três anos e já ter aprendido a manter próximas de mim as pessoas que estão distantes. Skype e Whatsapp são velhos amigos.



Tenho sorte de morar num apartamento perto de um parque onde ainda posso passear com meu cachorro e onde ainda posso levar as crianças para andarem de bicicleta sem me aproximar de ninguém, dando alô aos policiais que agora povoam as ruas e os gramados, fazendo valer as regras da quarentena.  (Foi a primeira vez que vi um policial canadense gritando - deu medo; ele mandava duas pessoas levantarem da mesa de piquenique e manterem distância.)

Tenho sorte, veja bem, de morar. Mesmo que seja um apartamento, e não uma casa com quintal. Mesmo que seja alugado e não meu. Tenho sorte de poder pagar o aluguel e ter um teto confortável. Um apartamento de 70m2, pequeno o bastante para ser fácil de limpar.

Tenho sorte de nunca ter tido empregada e ficar tranquila em limpar minha própria bagunça. Ou de ter aprendido a fazer a própria unha e cortar o próprio cabelo. Sorte de depender pouco do serviço dos outros.

Tenho sorte por me sentir bonita sem maquiagem e sem esmalte. 

O apartamento, de novo, que tenho sorte. Sorte de ele ser grande o bastante para seus cinco moradores (quatro seres humanos e um ser canino) conviverem sem nenhum arranca-rabo. Tenho sorte por esses cinco moradores, eu inclusa, nos amarmos um bocado. Sorte de gostarmos de passar tempo juntos.

Tenho sorte por estarmos todos saudáveis. 

Tenho sorte por sermos cinco moradores introspectivos, cachorro incluso, que, ainda que precisem mexer os corpos para liberar energia, não surtam na batatinha por terem de passar um tempo do lado de dentro.

Tenho sorte por sermos cinco moradores, cachorro incluso, que não precisam de momentos grandiosos para se divertirem. Temos sorte de gostarmos de catar galhos no caminho e de parar para olhar os patos.  

Tenho sorte por sermos quatro moradores (desta vez o cachorro está de fora) que gostam de criar. Criar desenhos, pinturas, histórias, músicas, danças, jogos, esculturas, poemas, brincadeiras. Porque criar processa as caraminholas internas, criar desestressa, criar transforma o impossível em possível, um sentimento incômodo numa ideia tangível, e ajuda a comunicar tudo isso que borbulha disforme na gente e poderia virar intriga, briga e picuinha.

Tenho sorte de podermos criar também para nos entreter, assim não dependendo tanto da tela para isso. 

Tenho sorte por ter crianças independentes que se viram e sabem inventar os próprios projetos.

Tenho sorte porque meus filhos não faziam nenhum curso nem aula nem nada depois da escola, então não sentem falta de atividade extra nem acham estranho encontrar no próprio quarto algo novo para fazer. Tem sempre algo novo para fazer. 

Tenho sorte por ter crianças GRANDES, porque se eles tivessem um e três anos, ao invés de sete e nove, esse texto se desenrolaria de um jeito bem diferente. 

Tenho sorte de ter um marido com quem posso "delargar" a cria para poder me concentrar num projeto meu por um dia inteiro.

Tenho MUITA sorte por meu marido não ter perdido o emprego. 

Tenho sorte por ter trabalhado de casa a vida toda, e por ter aprendido assim a gerenciar meu tempo e a estar só.

Tenho sorte por ter aprendido a cozinhar qualquer coisa que tenha na geladeira, por ter lido tantos livros sobre economia doméstica em tempos de guerra, por ter aprendido a fazer pão e bolo e biscoito e iogurte e por saber inventar e improvisar na falta de literalmente qualquer coisa.

Tenho sorte por poder comprar comida. Sorte de ter poder aquisitivo suficiente para fazer a compra a cada duas semanas, evitando assim ir ao mercado o tempo todo (e o mercado é o ÚNICO lugar fechado a que vou, assim, de duas em duas semanas), e sorte por ter uma sobra no orçamento que me possibilitou fazer um estoque de comida para um mês no caso de interrupção de fornecimento. Um mês, sem exageros, um mês realista, porque eu tenho sorte, mas tem gente (MUITA GENTE) que não tem, e vai ter de comprar comida aos pouquinhos, indo no mercado o tempo todo, e se eu comprar mais do que preciso, quem não tem sorte tem azar, e ao invés de arroz e feijão, vai encontrar uma prateleira vazia.

Tenho sorte de ter aprendido a meditar, a respirar devagar, a não entrar em pânico.

Tenho sorte de ter um cachorro velho, que não vai aprender aos treze anos a mijar dentro de casa, e que me obriga, no sol, na chuva, no vento, na neve, a sair de casa quatro vezes por dia, nem que seja só para descer até a porta do prédio e voltar. Tenho sorte de saber aproveitar esses cento e cinquenta e dois segundos de ar livre e saber olhar para cima, procurando as gaivotas que cruzam o céu em bando, barulhentas, em direção ao lago.

Tenho sorte de ter passado por toda uma jornada de auto-conhecimento que me deixou suficientemente centrada, ainda que capengando às vezes, para entender e aceitar que sou o pilar emocional da casa, e que se eu ruir, a família toda desmorona em volta.

Tenho sorte de ter entendido que, sem me cuidar, não posso cuidar de ninguém. Que para passarmos por esses dias, semanas, meses estranhos mantendo a sanidade, é preciso ser leve dentro de suas circunstâncias. Pois se formos leves, a casa será leve, as crianças acompanham sua dança, o marido segue tranquilo, e a vida flui ainda que limitada.

Tenho sorte de ter aprendido a dar proporções corretas às coisas. A não gritar quando minha filha quebrou sem querer minha xícara favorita, ou quando ela, distraída, derrubou o pote inteiro de iogurte da mesa, fazendo voar aquela coisa branca por todo o chão da sala, parede, embaixo da mesa, sofá. Que adianta gritar, espernear, ficar brava, lutar contra, achar culpado? Derrubou, quebrou, sujou. Aconteceu. Como é que a gente limpa isso junto agora? 

Tenho sorte. Tenho sorte por tanta coisa. Tenho sorte por ter tido tanto privilégio na vida, e por esses privilégios terem me trazido até aqui. Tenho consciência da minha sorte. Lembro dela todos os dias. E é por isso que a quarentena tem sido... ok. Quando o prefeito disse que as pessoas só poderiam sair de casa para ir ao mercado e à farmácia uma vez por semana e para se exercitarem mantendo-se distantes uns dos outros, brinquei com Allex: o prefeito basicamente descreveu a minha vida antes da quarentena.

Sim, eu tenho rido muito de mim. Temos rido muito de nós mesmos aqui em casa. Tenho fingido que isso é para sempre e buscado o melhor de mim nessa situação. Tenho colocado Blondie para tocar enquanto estou no chuveiro, para dançar embaixo da água, chacoalhando a cabeleira molhada no melhor estilo Flash Dance. Tenho colocado a trilha sonora do Frozen II no repeat para as crianças, pois isso as deixa imensamente felizes, cantando alto e rodopiando em cima do sofá. Tenho baixado a guarda, largado um pouco, dito mais sim do que não, mas com limites.

Tenho recriado meus rituais. As pequenas coisas que, como hora de almoço e jantar, marcam as fases do dia, como sino de igreja, como fita amarrada em árvore na beira da trilha. Pequenas coisas que guiam você e quem mora com você pelo tempo.

Correr de manhã. As crianças brincam livres enquanto Allex se preparar para se enfurnar no computador e suas reuniões. Enquanto isso, corro. Corro enquanto me permitem. Todos os dias. Pelos caminhos mais ermos, bem cedo, que é para não esbarrar com alma viva. A luz lá fora ainda um lusco-fusco azulado e frio.

Volto e tomo meu banho. No banho, Blondie. Banda boa de dançar as cadeiras de quem pariu dois filhos, de olho fechado, cantando e sentindo o peso da água escorrer no cabelo.

Hora do chá. São nove da manhã. Beberico ele com calma, ouvindo a voz abafada do marido em sua primeira reunião do dia vinda do quarto de porta fechada. Checo meu celular, notícias do dia, pessoas que me deixam de bom humor. Tomo meu chá sentada. Preciso sempre lembrar de sentar, ou então passo o dia todo de pé, fazendo três coisas ao mesmo tempo. Senta pro chá, p*rra.

É meu ritual, o chá depois da corrida. Preciso dele para marcar o início do dia de verdade. E parando nesse momento foi que me veio essa ideia de tirar as crianças de casa enquanto a gente ainda pode. 

Chamo as crianças para sua dose diária de exercício. Esse é um ponto crítico, e quando o prefeito disse que os parques seriam fechados, foi por conta desse ponto que chorei. Chorei quietinha, e quando Allex me disse que eu tinha entendido errado, que eu ainda podia ir ao parque, ri de mim mesma, ali chorando pelas árvores e pelos patos que me fariam falta.

EU PRECISO DE MATO.

E meus filhos também. Não importa o quão estressada eu esteja com a bagunça das crianças - basta levá-las ao mato e tudo se resolve. Eu lido MUITO BEM com eles do lado de fora. Eles podem estar histéricos ou o que for. Do lado de fora tá tudo bem. Do lado de dentro eu surto junto.

Que sorte que eu tenho de poder tira-los de casa. Que sorte por termos mato perto.

Antes estava chamando para andar nas trilhas. Mas quando fecharam o Off-Leash Park (a área em que se solta cachorro da coleira), os donos começaram a levar os cães pelas trilhas, e, de repente, a trilha vazia encheu. Logo, comecei a levá-las para andar de bicicleta. Por terem de segurar as bicicletas, eles não encostam em mais nada, e, em alta velocidade na ciclovia, não passam perto de ninguém. (Para todos os efeitos, digo a eles que as paredes são lava e as pessoas são zumbis, o que funciona muito bem.) Na maioria das vezes pedalam 6km. Eu levo o cão e eles se comprometem a ir parando nas faixas de pedestre, sumindo na distância mas sempre esperando por mim.

Quando voltamos, cansados e contentes, é hora do almoço. Pronto, outro marco do dia, e não tive nem de pensar muito. Mãos muito bem lavadas, e eles ou vão brincar mais ou vêm me ajudar com o preparo.

Depois do almoço, cada um tem sua hora de tela, que pode ser desenho ou video-game. Eles se resolvem. Enquanto isso, me enfio no quarto ao lado do marido para pintar, desenhar, escrever ou o que quer que eu precise fazer. Definir o horário de começo e fim do uso de telas aliviou nosso relacionamento: eles sabem que terão a tela e não ficam perguntando o tempo todo, e eu sei que vou ter tempo pra mim, então consigo de fato ESTAR com eles sem me sentir ansiosa por aquele tempo sozinha que não vem.

Terminado o tempo de tela, antes mesmo que eles peçam por mais, vou até eles e sugiro um jogo de tabuleiro. Isso evita o "efeito rebote". Não sei se é com todo mundo, mas meus filhos ficam histéricos quando a gente desliga a tv. Não porque fiquem bravos ou algo assim. Parece que absorveram tanta informação de uma vez sem mexerem o corpo, que tudo fica acumulado querendo sair numa explosão.

Para evitar que eles comecem a correr pela casa num movimento caótico, comecei isso de sugerir o jogo de tabuleiro. Isso parece ajudá-los a focar de novo e os mantém calmos. Uma ou duas partidas depois de algum jogo (temos muitos), mando os dois para o banho e começo o jantar. Nessa hora entra outro ritual, começado há meses atrás, e que chamo de "A música acalma as feras". É hora de Enya, hora de Debussy, Eric Satie, Chopin, Madeleine Peyroux, hora de bossa nova, tango, chançon frainçaise... músicas que acalmem. Músicas que avisem os cérebros infantis que é hora de desacelerar. Quando não tomam banho juntos, acabam indo desenhar, ler, brincar tranquilos enquanto o outro está no chuveiro, ou mesmo me ajudam a picar legumes ou abrir o pacote de macarrão.


Terminado o jantar, que é sempre cedo, é é o momento de escovar os dentes e ler histórias. Estamos lendo As Crônicas de Nárnia, um capítulo por dia. Se ainda é cedo, Allex terminou de trabalhar e vem tocar guitarra ou violão, fazer alguma bagunça com os dois enquanto eu me recolho por uns minutinhos, vou responder uns emails, fuçar no Instagram, ler um capítulo de livro meu.

Crianças na cama, é hora de adulto.

Rinse and repeat.



Daí que quando a escola mandou emails avisando que segunda-feira agora começariam as aulas online, tive um pequeno siricotico. Minha família está funcionando lindamente, caramba! Por que diabos você me joga essa bola curva assim de repente? E sim, eu fiquei uns dois dias incomodada tentando cavocar meu cérebro em busca da expressão idiomática brasileira equivalente à essa metáfora de baseball que se usa na América do Norte: "throw me a curveball" (quando vem algo inesperado). Eu não lembrei de nenhuma. Se você lembrar, me fala, porque estou aqui arrancando os cabelos de nervoso.

Enfim.

Comida simples. Batata doce e aspargo assado, cevadinha cozida com salsão e cenoura e ervilhas refogadas com cebola.
Que Laura resolveu servir assim no prato dela. Árvores, terra, pedras.
Fiquei uns dias tentando criar o quebra-cabeça da nova rotina com criança tendo aula no computador  e eu tomando lição (eu odeio lição de casa e odeio cobrar lição de casa de criança), ao mesmo tempo mantendo o tempo de brincar, tempo de exercício lá fora e tempo de tela necessário para que EU possa trabalhar duas horas por dia.

Respirei no saquinho e entendi que esse podia ser o momento em que eu entraria em pânico. Então não deixei. Concluí que eu não fazia ideia de como seriam as aulas, e que não adiantava eu tentar fazer quebra-cabeça com peças que eu ainda não tinha.

E, ainda que continue ansiosa sem saber como vai ser a primeira aula amanhã, decidi parar de pensar nisso e me concentrar em coisa melhor: o aniversário do meu Matador de Dragões.

Ele fez nove anos (NOVE ANOS) na sexta-feira. Filho meu que é, claro que quis escolher todas as comidas do seu aniversário. Panquecas com bacon de manhã, hamburguer no almoço e pizza de gorgonzola no jantar. Não me pergunte para onde vai tanta comida naquele corpinho magrelo.

Ele obviamente não teve festa, mas pendurei as bandeirinhas e decorações que guardara do aniversário da Laura e Allex passara a noite anterior enchendo o imenso pacote de balões que eu comprara. Thomas passou o dia todo usando minha coroa de Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o que Importa. (Ele disse que era o Rei do aniversário, aí brinquei que a Rainha era eu e ele era só o Príncipe Regente.)  Ficou feliz por conversar ao telefone com seu melhor amigo, combinando play dates e sleep overs para quando tudo isso acabar.

Comemos bolo e fomos dar, nós cinco (cachorro incluso) um longo passeio no parque vazio. Quando voltamos, ele quis comer pizza assistindo ao seu filme de dinossauros favorito.

Foi um bom aniversário. Temos muita sorte.



Thomas pedira um bolo de três camadas de tamanhos diferentes, de baunilha, com recheio de baunilha e morango, cobertura de chocolate e gelatina de morango por cima. Foi preciso todo um esforço de comunicação para convencer o menino de que não, eu não ia fazer um bolo de CASAMENTO para ele, que três camadas de tamanhos diferentes não iam rolar, e que não dava para botar gelatina de morango em cima do bolo. Ele ficou contente com apenas morangos e duas camadas iguais. E estava uma delícia.

O bolo é mais do mesmo. O bolo de baunilha da Alice Medrich que se faz no processador (mas que quero testar fazer na mão ou na batedeira um dia), o Chocolate Fudge Frosting também dela, e o creme de confeiteiro do mesmo livro. Acho que todos esses componentes eu já postei aqui de uma forma ou de outra, mas para não deixar ninguém louco procurando, vou colocar tudo aqui de uma vez. Fiz a cobertura de chocolate de memória, no entanto, e errei o chocolate: era para usar chocolate 100% e usei 70%. Fiquei feliz em saber que, ainda que fique mais doce, a cobertura funciona da mesma forma. 

BOLO DE ANIVERSÁRIO DO MATADOR DE DRAGÕES
(receitas separadas tiradas do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Ingredientes:
(bolo)
  • 1 xic farinha de trigo (125)
  • 3/4 xic + 2 colh (sopa) açúcar (175g)
  • 1 1/4 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 3 ovos grandes
  • 1/3 xic creme de leite fresco
  • 3 colh (sopa) manteiga (45g), derretida e ainda quente
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha

(creme de confeiteiro)
  • 1 colh. (sopa)farinha de trigo
  • 1 colh (sopa)amido de milho
  • 2 colh. (sopa)açúcar
  • 2 ovos
  • 2/3 xic leite
  • 1/2 colh (chá) baunilha 

(cobertura de chocolate)
  • 55g chocolate de 70 a 100%, picado
  • 2 1/2 colh (sopa) manteiga (40g)
  • 1/2 xic creme de leite
  • 1/2 xic açúcar
  • 1 pitada de sal
  • Morangos para decoração e recheio

Preparo:
(bolo)
  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e aqueça o forno a 180oC. Unte as laterais de uma forma de 20cm com manteiga, polvilhe com farinha, e forre o fundo com papel-manteiga.
  2. No processador, coloque a farinha, açúcar, sal e fermento e pulse algumas vezes para misturar. 
  3. Junte o creme e a manteiga e pulse 8 a 10 vezes até que esteja tudo misturado. 
  4. Junte os ovos e a baunilha e pulse mais 5 a 6 vezes. Raspe as laterais com uma espátula e pulse mais 5 vezes, apenas até que fique homogêneo.
  5. Passe para a forma, alisando a superfície, e asse por 30 a 35 minutos, até que esteja dourado e um palito saia limpo quando espetado no bolo. Deixe esfriar numa grade por 10 minutos antes de desenformar. 
  6. Quando frio, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira até o dia seguinte, quando será mais fácil cortá-lo ao meio com uma faca serrilhada.
(creme de confeiteiro)
  1. Numa tigela, misture com um batedor de arame a farinha, o amido e o açúcar. Junte os ovos e bata bem até que fique claro e homogêneo.
  2. Numa panela pequena, aqueça o leite até que comece a borbulhar nas laterais. 
  3. Misture o leite quente aos ovos aos poucos, para que os ovos não cozinhem. Volte a mistura à panela e cozinhe em fogo médio, mexendo sempre com uma colher de pau até que comece a engrossar. Quando começar a ferver baixinho, cozinhe por 1 minuto mexendo sempre. 
  4. Imediatamente retire da panela, passando por uma peneira em uma tigela. Se houver quaisquer carocinhos, não os aperte pela peneira. Misture a baunilha e deixe que o creme esfrie completamente antes de cobri-lo com filme plástico (encostando no creme) e levá-lo à geladeira até a hora de usar.
(cobertura)
  1. Numa tigela, coloque o chocolate picado e a manteiga em pedacinhos.
  2. Numa panela, aqueça o creme de leite, açúcar e sal, mexendo sempre, em fogo médio, até que levante fervura. Abaixe o fogo e cozinhe, mexendo, por 4 minutos. 
  3. Derrame o creme sobre o chocolate, misturando com um batedor de arame até que a mistura esteja homogênea e brilhante. Deixe descansar, sem mexer, em temperatura ambiente, por 2 a 3 horas, ou até que firme. Leve à geladeira até a hora de usar.
(montagem)
  1. Corte o bolo ao meio com uma faca serrilhada e separe as metades. 
  2. Na metade de baixo, espalhe todo o creme de confeiteiro. Corte tantos morangos ao meio quantos forem necessários para cobrir o creme, a parte cortada virada para baixo. Isso vai depender do tamanho dos morangos. 
  3. Cubra com a segunda metade do bolo e aperte ligeiramente. 
  4. Espalhe a cobertura de chocolate por cima. Se ela estiver fora da geladeira há um tempo, estará mole o bastante para escorrer devagar pelas laterais. Se você quiser que a cobertura fique firme apenas em cima do bolo, leve à geladeira por uma meia hora antes de espalhar a cobertura. 
  5. Decore com morangos inteiros. 

No meio disso, tenho revisitado meu caderno de receitas antigas, antigas, que anda desmontando, perdendo páginas, e resolvi começar a finalmente cozinhar alguma coisa dele para só deixar as receitas que valem a pena. Porque tenho receita ali de desde antes de juntar os trapos, coisa de vinte anos atrás, que recortei e colei no caderno para fazer depois e ficou lá, só ocupando espaço no meio do bolo de cenoura da minha mãe e da receita de panetone da minha tia-avó que nunca funcionou. Tem receita da época em que eu achava que minha vida comportava sobremesa com oito técnicas de confeitaria diferentes, ou sorbet de tomate. Tem a desgraça do linguado com molho de maracujá e risotto de alho poró da revista Gula que eu guardei porque queria fazer um Dinner Party e cozinhar isso para os convidados, mas nunca fiz porque morria de medo de fazer risotto. E a receita ficou lá, e a ironia da coisa é que hoje não preciso mais de receita para fazer nem o risotto nem o linguado.

Quero preparar tudo o que couber na minha realidade. Estou estabelecendo uma guilhotina culinária: se não for DELICIOSO, tá cortado. Fora do meu caderno.

Essa semana resolvi fazer esses "pães de leite condensado". Que, no fim, são apenas pincelados com o leite condensado e não levam nenhum na massa. Ficaram bonitos e ficaram gostosos.



Mas também ficaram absurdamente maçudos e essa pincelada de leite condensado no pão pronto NUNCA seca, escorre no prato ainda por dias e mela a mão de um jeito irritante quando você vai comer. GUILHOTINA. Foi para a guilhotina um bolo de maçã que também não rolou, cujo processo coloquei lá no Instagram. (@anaelisagg)

No meio disso, estou com planos de transformar as receitas vencedoras do caderno, as que passaram pela guilhotina, em algo especial lá na minha loja da Etsy. (Aliás, tem muita arte à venda ali disponível para download e impressão, que não precisa de frete nem nada, inclusive um poster da Nonna que eu sei que muita gente já me pediu. https://www.etsy.com/shop/AnaElisaGG)
Enfim.

Se as coisas por aí andam mais difíceis, primeiro de tudo, lembre-se de respirar. Devagar. Prestando atenção no ar que entra e no ar que sai.

Segundo, ao invés de tentar estabelecer uma rotina, tenta estabelecer pequenos rituais. Rituais seus. Só para marcarem melhor o modo como você passa no tempo. Um guia. Aí vai encaixando as necessidades da família em volta dos seus rituais. Assim você tem certeza de que, nessa maré incerta, não vai nem ficar à deriva, nem desaparecer.

Lembra das sortes que você tem. Eu sei que a gente anda falando muito em privilégios, e é lógico que muito da sua situação se baseia em quanto privilégio você tem. E eu sei que esse papo faz a gente se sentir culpado porque tem gente sofrendo mais que a gente. Se você pode ajudar, ajude. SE a única coisa que pode fazer, dentro da realidade e das diretrizes do país e da cidade em que mora, é ficar em casa, então FICA EM CASA. Mas se cuide. Cuide dos seus. Encontre pequenas alegrias. Encontre um propósito que faça você passar por isso com mais leveza. Porque ficar sofrendo pelo que está acontecendo lá fora não vai fazer isso passar. No fim, a gente só consegue controlar o modo como passamos por isso, como nos sentimos e como reagimos a toda essa bizarrice.

Escolhe leveza. Como puder. Não é poliana, não é ignorar tudo de ruim que está acontecendo. É ter consciência da sua sorte. Das pequenas coisas. Se agarra nelas. As pequenas coisas não te deixam afundar.

Muito amor e luz a todos vocês.  

sábado, 21 de março de 2020

Quarentena, PFs veganos, divisão de tarefas e chocolate chip cookies

Uma foto bonita para tempos estranhos

Esta noite sonhei que me empurravam para dentro de um compactador de lixo e fechavam as portas. Era noite, e me haviam pego de surpresa. Imediatamente após a aniquilação de meu corpo em meio a outros resíduos, eu me refazia, magicamente, e ainda formada apenas de ossos e uma intensa luz azul, abria as portas num movimento explosivo, como quem busca ar depois de muito tempo submerso, e tinha então meus ímpetos de vida e liberdade empurrados de volta  ao compactador de lixo pelas mesmas mãos masculinas que me haviam colocado ali em primeiro lugar. Portas fechadas. Corpo destruído. Renascimento. Libertação. Mãos me empurrando de volta. Durante toda a noite, a mesma cena repetida, até finalmente conseguir despertar no meio da noite para a realização de que o sonho descrevera em imagens exatamente como me sinto nesse momento.

Não posso reclamar. Penso nisso o tempo todo, como não posso reclamar. O governo canadense tomou medidas duras mas preventivas, garantindo que a situação no país nunca chegue aos extremos da Itália, por exemplo. Estamos em segurança e o Canadá tem sido considerado modelo de gestão da crise. O pânico inicial que fez com que a população corresse aos mercados e esvaziasse as gôndolas foi subitamente substituído por alguma solidariedade. Meu prédio tem uma lista na porta de moradores que se disponibilizaram para fazer as compras de mercado para os residentes mais vulneráveis. Há muito pouca gente desacreditando o vírus ou se comportando de forma irresponsável.

As escolas foram as primeiras a fecharem. Então os museus e casas de show. Depois bares e restaurantes. Agora, andar na rua parece um eterno domingo de manhã: todas as lojas estão fechadas. Há pouca gente na rua. Mas ao contrário dos domingos de manhã de café devagar e alívio promovido pela promessa de morosidade, há um silêncio pouco reconfortante vindo do lado de fora.

Não posso reclamar. Ainda posso sair para correr. Correndo, vejo os primeiros sinais da primavera. Vejo um coelho. Os Robins, meus sabiás-laranjeira canadenses, retornando às árvores à nossa volta. As primeiras florzinhas minúsculas, cor de leite fresco pingando de estames verdes e frágeis que destoam dos castanhos e cinzas secos restantes do longo inverno.

Ainda posso levar as crianças pelas trilhas do parque. Santo parque. Abençoado parque. Laura me pergunta se pode encostar nas árvores. Pode, pode sim. Vejo-nos abraçando árvores e tocando a terra gelada com os dedos, como que pedindo ajuda, uma luz, uma solução. Que a natureza se arranje, se reequilibre, traga a harmonia que talvez não temos tido há tempos.

Não posso reclamar. Podemos trabalhar de casa. Ele se enfia no quarto, no computador, e tem reuniões e manda emails e faz seu trabalho muito bem. Numa quarta-feira, ouço o marido explicando a Thomas de que é um dia normal, e que papai está trabalhando. Um dia normal. Não é um dia normal. Meu dia correria de uma forma completamente diferente se fosse um dia normal. Acostumadas ao ocasional home office do pai antes da quarentena, as crianças não ousam interrompê-lo, e mesmo quando lhes explico que mamãe precisa de uns minutinhos para descansar a cabeça ou para trabalhar, seus gritos sempre soletram MÃE em letras garrafais, o som esticado como uma corneta alta diretamente em meu ouvido. Uma, duas, quatro, oito, setenta e duas vezes em uma hora, interrompendo minhas ideias, meus pensamentos, meus impulsos, minha criação, minhas pinceladas.

O que foi? O que você precisa?
O Thomas não quer me emprestar o lápis.

Suspiro.

Sinto falta dos meus pequenos rituais solitários que mantinham minha cabeça no lugar, que me ajudavam a repor minha energia. Pequenas coisas da minha rotina que eram só minhas, que não tinham nada a ver com o restante da família, que não tinham absolutamente nenhum impacto neles, e que, portanto, mantinham em minha mente essa imagem clara de quem eu sou, independente de ser mãe, de ser esposa, de ser filha, de ser irmã.

Pensar "isso vai passar" e esperar pelo retorno da "vida normal" me causa mais ansiedades. Tenho tentado enxergar a situação atual como definitiva. E se fosse assim para sempre? E se essa for sua vida até o fim dela? Como eu posso tornar isso melhor e conviver de forma mais saudável com uma quarentena que não tem data para terminar?

Como recriar meus rituais?
Como me reinventar?
Como me resguardar e me preservar num momento que pede tanta doação principalmente das mulheres?

PF delícia: arroz, feijão preto, saladinha de tomate cereja e abóbora e couve-flor que foram assados na mesma assadeira.


Assim que anunciaram o fechamento das escolas e todas as famílias correram aos mercados em pânico, um pânico quase justificado, considerando que a maior parte da comida consumida no Canadá vem de outros países, caí na mesma armadilha de sempre. Acuada feito um bicho, ameaçada por sombras desconhecidas e dominada por um medo estranho, juntei minha família sob minhas asas e me recolhi em minha domesticidade.

Em poucos dias meus rituais desapareceram. Vi-me sublimada pelo cozinhar, limpar, cuidar. Em menos de uma semana minha insônia voltou e eu sumi. E se meu corpo inteiro tremia de raiva do vírus que provocara aquilo, minha mente foi categórica: olha para as suas escolhas.

Conversando com minha amiga no Brasil, ouvindo meu próprio falar, dei-me conta das desculpas que me inventava, de novo e de novo, para me manter no papel de vítima, culpando o patriarcado mas sem olhar para aquilo que era minha inteira responsabilidade.

Refiz minhas escolhas. Pequenas, pequenas escolhas. Assim, sem DR, sem grandes alardes, sem braveza, sem raiva, sem ser passivo-agressiva nem manipuladora.

Continuei acordando cedo para meditar e correr. Porque Toronto tem a densidade populacional de um sítio com galinhas caipiras, e a gente consegue sair na rua sem ficar se esbarrando nem respirando no cangote um do outro. Então saio para correr. Correr até suar para fora toda a raiva e tensão. E se isso me deixar exausta no meio do dia (e eu com sono viro um monstro), tudo bem: marido está em casa e eu POSSO parar e descansar. 

Marido em casa. Não, não é um dia normal. Num dia normal de home office, eu estaria trabalhando e fazendo minhas coisas e as crianças estariam na escola. Não é um dia normal. As crianças estão aqui o dia todo, e cuidar de criança em tempo integral CANSA, mesmo quando você está se divertindo com eles. Cada pequena briga, cada birra, cada interação exige atenção total de sua parte para não simplesmente cair no lugar de reação não-pensada. Ele sabe disso. Ele reconhece isso. Ele fala para os colegas homens como nós mulheres nos lascamos de verde e amarelo com essa quarentena, e como isso não é justo. Ele me conta de reuniões por skype sendo interrompidas por crianças pulando em cima dos pais ou pedindo para a mãe limpar seus bumbuns no banheiro, e como ele consegue ver através das telas quem está dividindo essa carga com o parceiro e quem não. Estamos todos no mesmo barco. Ao menos todos nós, classe média, brancos, de trabalhos estáveis que permitem home office. Tenhamos noção que nosso barco é pequeno e comporta bem pouca gente do mundo. Que sorte temos. Não é? Não posso reclamar.

Mas ouvi-lo a respeito dos outros pais e mães me fez relaxar os ombros. A gente que foi criada em país latino e machista tem disso de síndrome de super-mulher-Martha-Stewart-toda-poderosa, que, dentro de sua posição submissa, encontra uma sensação de falsa superioridade ao taxar os homens de incompetentes no trato dos filhos e da casa. "Ah, sem mim ele não acha uma meia!" Veneno, veneno puro. Ele acha sim. Se você deixar, ele acha a meia. E se não achar, ele é um homem adulto com cartão de crédito e pode mandar entregar um pacote de meia comprado na internet. Essa ideia de nos sentirmos indispensáveis mantendo homens adultos dependentes e infantilizados é a chave que tranca nossas próprias correntes.

Quando estou cansada, cansada mesmo, precisando de uns minutos de silêncio que meus filhos, por mais amor que tenhamos uns pelos outros, não podem me dar, sem a menor culpa eu cato o cachorro para um passeio longo no parque e deixo as crianças ao cargo do pai, independente da reunião por skype em que ele esteja metido. E sabe o que descobri? Que ele é plenamente capaz de lidar com essa situação.

Pense nas suas pausas como a "pausa do café" ou a antiga "pausa do cigarro" nos escritórios. Uma vez trabalhei numa agência em que quase todos eram fumantes menos eu. Todos faziam pausas de cigarro e continuava eu lá, tonta, trabalhando. Revoltada que sou,  resolvi que sempre que meus colegas levantassem da cadeira para sua pausa de cigarro, eu faria minha pausa do café. Justo.

Mãe também precisa de pausa do café. Ok? Dê-se uma pausa do café. 

Como sou eu quem cozinha, eu decidi, assim, de supetão, que não sou mais responsável pela louça. Eu nunca achei que a louça era MINHA responsabilidade, mas era algo que eu fazia no automático: terminar de comer, tirar os pratos, guardar os restos. Dei-me conta de que todo mundo levantava da mesa e ficava eu lá, tonta, fazendo tudo sozinha, depois de já ter passado a última hora e meia do meu dia fazendo jantar.

Agora levanto da mesa sem culpa. Peço com educação para que deem um jeito nos pratos e guardem a comida. E tento não ficar irritada se isso não acontece imediatamente. E se ninguém tirar a louça limpa da lava-louça imediatamente, não vou sair guardando daquele jeito passivo-agressivo bufante que a gente bem conhece. Vai ficar lá e ponto. Até alguém (que não sou eu) fazer.

E sabe o que descobri? Que as coisas tem sido feitas. Talvez não perfeitamente e COM CERTEZA não do MEU jeito. Mas são feitas. E que se eu peço com leveza e educação, todo mundo é super capaz de tirar o lixo ou dar comida para o cachorro.

No tempo de desenho ou video-game das crianças, tenho sentado à minha mesa para pintar e desenhar. Tento, sento, pinto, desenho, escrevo no meu caderno a letras tortas, sentindo falta do meu tempo no computador, pois só temos um, irritada com a lentidão com que meus dedos arrastam o lápis sobre o papel. Tento, apesar da sensação acachapante de que isso não faz o menor sentido, de que todos os meus projetos perderam importância diante das circunstâncias.

Ainda assim faço. Sempre gostei de trabalhar em silêncio, mas agora, acompanhada do batuque incessante dos dedos do marido no teclado do computador ao meu lado, tenho colocado uma música no celular, ou um podcast, e, isolada em meus fones de ouvido, consigo produzir. As crianças começaram, devagar, a entender que porta fechada quer dizer que papai e mamãe estão trabalhando e só devem ser interrompidos por coisas importantes. Quando desperto do meu transe criativo, desligo a tv das crianças e podemos fazer alguma coisa juntos com mais tranquilidade, pois mamãe botou para fora tudo aquilo que borbulhava dentro dela.

Cevadinha com grão-de-bico, tomate cereja e salsinha, espinafre refogadinho, abacate.

Estou tentando não me refugiar à cozinha como fiz durante tantos anos. Não usar bolos e tortas e pães como desculpa para não lidar com meus problemas. Decidi cozinhar apenas uma refeição por dia. Seja almoço ou jantar, o que for necessário, mas apenas uma. E manter simples. Um cereal, uma leguminosa, e tantos vegetais quanto puder cozinhar ao mesmo tempo e rapidamente. E na refeição seguinte, a não ser que eu realmente tenha vontade de comer uma reinvenção específica, cada um monta seu prato com o que quiser do que sobrou e esquenta no microondas.
Isso pode parecer besta, mas essa configuração é completamente nova em minha casa. Eu SEMPRE reinventei as sobras, pois não gosto de simplesmente requentar comida. Mas em nome de minha sanidade mental e meu tempo, abri mão da minha frescura. Requentamos comida. Completamos com saladas.

E me sobra vontade de entrar na cozinha com amor, não rancor, para fazer uma torta de maçã ou biscoitos de chocolate. Se eu quiser.
Arroz cateto integral com legumes refogados em óleo de gergelim, alho e gengibre, e temperados com shoyu, cebolinha e gergelim. Ao lado, falafel de feijão moyashi. Ficaram uma delícia, mas só no dia em que foram feitos: depois, não importava o jeito de requentar, ficaram borrachudos.

Manter a maioria das refeições veganas tem ajudado um bocado no meu planejamento. Tem sido muito mais fácil cozinhar assim. E o mais engraçado é que ninguém percebeu que eu não ando botando mais queijo e ovos nas coisas. De quebra, o mercado está um pouco mais em conta, já que queijos aqui custam caro.

O fim de semana agora é o mais diferente. Já tinha um tempo que eu praticamente parara de cozinhar aos fins de semana. É a vez dele. Se ele quiser preparar waffles de manhã, se quiser fazer macarrão de almoço, ótimo. Se quiser pedir comida ou comprar algo pronto, a escolha é dele. Eu não digo nada nem torço o nariz. Afinal, ele não reclama quando faço sopa de abóbora de jantar, que as crianças adoram mas que ele come apenas por respeito e educação, profundo inimigo da abóbora como sempre foi. Hoje ele pediu Lámen de almoço. Eu não estava super afim de comer porco, tenho preferido a leveza do vegetariano, mas alguém botou um prato de comida quente na minha frente que eu não tive de preparar, então obrigada pela refeição, come e volta ao computador.

Arroz cateto integral que refoguei com folhas de beterraba, batata-doce assada com alecrim e ervilhas refogadas em cebola e tomilho e salsinha.

A diferença é que agora reclamo o tempo do fim de semana completamente para mim. É minha vez no computador. Minha vez de sentar e escrever por horas a fio, digitalizar ilustrações ou resolver pendências de trabalho. Trabalhar no fim de semana? Sim, pois não pude fazer isso durante a semana. Reclamo para mim meu silêncio e minha paz, pois no fim de semana papai está totalmente disponível para criar as brincadeiras, apartar as brigas, passear cachorro e resolver o almoço. Nesse momento estou ao computador enfim escrevendo, jazz nos ouvidos, vinho num copo, cachorro dormindo aos meus pés. A porta do quarto está fechada e eu não faço A MENOR IDEIA do que está acontecendo na sala ou do que meus filhos e meu marido estão fazendo. Pedi que ele lavasse roupa e pendurasse o que não pode ir na secadora, e acredito que ele tenha feito. Hoje é responsabilidade dele, não minha, então não vou perder meu tempo gerenciando os outros. Estou tendo um "dia de homem", contei a uma amiga, rindo. Não é um dia de homem. É um dia de pessoa adulta que compartilha responsabilidades domésticas com outra pessoa adulta.
Arroz integral misturadinho com feijão Apache e coentro, farofa de banana da terra, couve-flor e abóbora assada e couve refogada em alho e cebola.

Não posso reclamar. Meu marido sempre fez sua parte. Aí é que entra a minha responsabilidade. Esse controle louco que faz a gente criar na nossa cabeça o "jeito certo de fazer as coisas" e não botar homem para fazer nada porque "eles não sabem fazer direito". Bom, eles sabem. E se não sabem, veja só, aprendem. Que nem criança: se você não deixar fazer com desapego ao resultado, a criança não aprende. Bom, homem também. Por muito tempo me sabotei puxando todas as atividades domésticas para mim com essa desculpa de querer "fazer do meu jeito", e fazendo direito, só fiquei sobrecarregada e ressentida. Totalmente à toa, porque tenho do meu lado um cara que sempre esteve disposto a dividir essa carga.

De novo, não posso reclamar. Outro dia estava mostrando às crianças um video do papai ninando Thomas e passando aspirador de pó na sala ao mesmo tempo. Bebê num braço, aspirador no outro. E a gente diz que só mulher sabe fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Eu decidi não ser vítima da quarentena nem mais vítima de coisa nenhuma. Decidi parar de ter raiva, tanta raiva do que foi, do que é, do que pode ser que eu não gosto e não quero. Minha rotina virou de pernas para o ar, então tenho de encontrar uma nova. Sem raiva, sem rancor. Com leveza, amor, educação. Uma rotina que seja boa para meus filhos, para minha família, mas também boa para mim, que mãe triste cria filhos tristes.

São tempos estranhos, estranhíssimos, e um bocado pesados. Temos família no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália, e nos preocupamos o dia todo com eles. Mas isso está completamente fora do meu controle. Só posso controlar minhas escolhas aqui e como elas afetam minha vida e a de meus filhos. As crianças ainda não têm uma rotina certa, e isso eu vejo que as tem atrapalhado um pouco, e a mim também. Ainda preciso entender melhor essa parte, o que tem melhor efeito no humor deles e no meu e rearranjar tudo. 

Aqui a primavera começou enfim. Tempos de renovação. Que renove. Que a quarentena seja essa lua nova, esse momento de introspecção e meditação para cozinhar revoluções internas e externas. Renovações. Não tem para onde fugir. Nossos problemas estão espalhados no nosso chão, grudados em nossas paredes, pendurados pelo teto, em toda a parte, escancarados na nossa cara e não há outra coisa a fazer senão olhá-los, aceitá-los e fazer algo com eles. Nem vinte e quatro horas por dia de Netflix vai impedir você de encarar seus problemas.

Vamos pensar em começar na quarentena pequenas mudanças internas para espalhar lá fora depois, mais rápido que qualquer vírus, para que a vida não volte ao normal, pois aquele normal ninguém mais quer de volta. Inventemos uma norma nova. Um normal que seja melhor para todos.

Vai ter muito perrengue me puxando de volta para baixo para tentar me destruir durante esses tempos. Eu não vou deixar. Vou continuar me reinventando quantas vezes forem necessárias. 


CHOCOLATE CHIP COOKIES DO DAVID LEBOVITZ
Rendimento: UM MONTÃO, mas acaba rápido, que são muito bons

Ingredientes:
  • 2 1/2 cups (350 g) farinha
  • 3/4 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 xic (225 g) manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic(215 g) açúcar mascavo
  • 3/4 xic(150 g) açúcar cristal orgânico
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 2ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 2 xic(cerca de 225 g) nozes ou castanhas de sua escolha, tostadas e picadas
  • 400 g chocolate amargo ou meio-amargo, picado em pedaços de 1.5 a 3cm ou 3 xic(340 g) gotas de chocolate
Preparo:

  1. NUma tigela, misture a farinha, bicarbonato e sal. 
  2. Na batedeira, bata a manteiga, os açúcares e a baunilha em velocidade média apenas até que fique homogêneo.
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição, e então misture a farinha, seguida das nozes e do chocolate. 
  4. Numa superfície ligeiramente enfarinhada, divida a massa em quartos. Forme com cada uma um cilindro de 23cm de comprimento. Embrulhe os cilindros com filme plástico e leve à geladeira até que fiquem firmes, de preferência de um dia para o outro. 
  5. Posicione as grades do forno nos terços inferior e superior e aqueça o forno a 180oC. Forre duas assadeiras com papel manteiga ou silpat.
  6. Fatie os cilindros de massa em fatias de 2cm de espessura e coloque os discos na assadeira com 8cm de distância entre eles. Se algum chocolate ou noz se desprender, grude de volta no biscoito. 
  7. Asse, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento, por 10 minutos, ou até que estejam ligeiramente dourados por cima. 
  8. Deixe que esfriem ligeiramente na assadeira antes de retirá-los para esfriarem sobre uma grade. Repita a operação com o restante da massa.
  9. Os biscoitos de mantém frescos por vários dias num pote fechado. 

 Em tempo: pois é, eu tenho feito a maior parte das refeições da casa veganas, e sempre que posso, evito produtos animais. Tem sido engraçado que as crianças curtiram isso de colocar levedura de cerveja no macarrão no lugar do parmesão e Thomas virou o maior fã de manteigas de castanhas na torrada de manhã. Mas a pizza do fim de semana continua tendo queijo e faço ovos quentes para eles sempre que pedem no café. E sim, meus chocolate chip cookies são tradicionais e comi um montão deles, que estão deliciosos. Ninguém virou vegano nem vegetariano. Mas essa diminuída nos produtos animais tem sido boa para todo mundo aqui em casa.

Cozinhe isso também!

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