quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Sonhos, uma canção de acordar, um fim de ano, duas sopas.

Durante os cinco dias que estive em Portugal, em Junho do ano passado, eu me levantava ao sentir finos raios de sol trespassando as persianas. Trocava de roupa com as luzes apagadas, dobrava meus lençóis, montava o sofá-cama de volta ao seu estado natural de palavra simples e não composta e fazia meu alongamento sobre o tapete fino e claro que escorregava pelo piso de azulejos. Ao que minha amiga entrava na sala, sorridente sempre, e começava o processo de abrir as persianas da casa, passar o café e colocar sua vasta coleção de frutas, queijos e presuntos sobre a mesa da sala. Por esses cinco dias, ela o fez cantando uma musiquinha alegre que dizia: "bom dia começa com alegria, bom dia começa com amor". Eu ria, pois ela cantava com verdadeiro entusiasmo, quase que como uma paródia de si mesma. Rimos juntas quando ela me contou que ouvira outra amiga cantando a mesma coisa nos breves dias como sua hóspede, e que a pequena canção nunca mais saíra de sua cabeça.

Canção de bruxa, deve ser, pois desde que voltei a Toronto, essa tem sido a trilha sonora de todas as minhas manhãs.

Primeiro eu me vi a cantarolar os dois versos como mera provocação. Todos achavam meio ridículo, mas aquilo que é ridículo é risível, e o riso veio, e as manhãs passaram a ficar leves com o sorriso fácil que acompanhava a música. Logo as crianças seguiram, e comecei a despertar com o canto delas, vindas do quarto, felizes pelo novo dia.

Quem fica em casa agora é igualmente amaldiçoado (ou bendito) pela canção da bruxa, e esse desejo de alegria e amor prossegue se expandindo a outros lares.

Naquela manhã, Laura entrou no quarto carregando nas duas mãos minha xícara rosa como nascer do sol repleta de cappuccino, cantarolando feliz aquelas palavras, como os pássaros de Aldous Huxley. Pulou sobre minha cama sem derramar uma gota, sentou-se ao meu lado e, passando a xícara às minhas mãos com cuidado, disse:

"Mamãe, quer saber o sonho que eu sonhei?"

Assenti com um ronronar por traz do café quente que eu sorvia.

"Sonhei que eu estava no meio da floresta. Eu tava pendurada numa árvore bem alta, num galho, porque meu casaco tava enroscado no galho. Aí tinha um monte de gente em volta, lá embaixo no chão, gritando que eu ia hurt myself, e que aquilo era muito dangerous. Mas eu não achava dangerous. Eu disse que tava tudo bem, que eu sabia o que tava fazendo, mas ninguém acreditou em mim. Aí eu cansei daquilo, porque era muito silly, e pulei pra fora do meu casaco para o galho, e saí correndo nas árvores, pulando nos galhos, lá em cima. Só que aí eu fiquei com frio. Aí eu voltei pra pegar meu casaco, que tinha caído do galho no chão, e pedi pro pessoal lá embaixo, que tava assim, em volta de mim lá embaixo, pra ver se o casaco era meu e me devolver. Mas ninguém me respondia. Aí eu gritei pra todo mundo, e eles ainda não me respondiam. Aí você apareceu, mamãe. Você pegou o casaco, viu que tinha meu nome nele, dobrou e colocou na minha mochila. Aí eu fui embora porque eu sabia onde tava o meu casaco."

"E como você se sentiu no sonho, querida?"

"Muito feliz."

"Que bom. Agora vai lá tomar café da manhã que hoje tem escola."

Muito feliz. Foi como me senti ao ouvir aquele relato. Laura sonha sonhos muito claros, de metáforas muito explícitas. Nos primeiros meses de mudança de país, sem falar a língua ou entender costumes, Laura tinha todas as noites o mesmo pesadelo: que brincava num parquinho e descia pelo escorregador, mas que no fim dele, ao invés de chão firme, era o mar aberto e arisco que a esperava. E nele ela caía, sem saber nadar, sem saber para que lado havia terra.

Naquela tarde, contei a Allex o sonho de Laura.

"Ela faz o que quer", disse ele.
"Ela SABE o que faz", corrigi. "Conhece suas capacidades. O medo dos outros não são os dela."
"And mom's got her back", acrescentou.
"Sim. Isso foi o que me deixou mais contente. Ela sabe, lá no insconscientezinho dela, lá no coração, que mamãe está lá dando suporte para o que ela precisar. Não é lindo? Não é o que a gente mais queria? Pelo menos era o que EU queria. Que eles soubessem que eu sempre vou apoiá-los."

Desde que li Man In Search For Meaning, de Viktor Frankel, comecei a pensar no que é que me movia. Ao cabo de tudo, no meu âmago, despida de todas as cobranças da sociedade, de todos os meus objetivos materiais, o que é que mantinha meu coração batendo, o que me fazia levantar de manhã e correr, e pintar, e escrever. O que é que me impelia a tentar ser hoje um ser humano menos babaca do que ontem. Então caí nessa frase, não sei bem original de quem, mas que tem sido muito usada pela Eliana Rigol em seu Instagram (que por sinal, tem sido fonte de excelentes indicações de livros): "Seja uma boa ancestral".

Era o resumo em quatro palavras de um sentimento até então sem nome. Mas que remontava às palavras de meu guru de Kriya Yoga: dê o exemplo.

Olho para meus filhos e eles são o constante lembrete de que preciso continuar tentando ser uma pessoa melhor. Penso em tantos familiares que já se foram, com suas histórias amargas de vida, suas escolhas ruins, suas infelicidades marcadas para sempre nas histórias contadas por meus pais, e chacoalho para fora tudo isso e penso: quero ser um bom exemplo. Quero ser a louca tataravó Ana, lembra dela? A que corria maratona, a que fazia aqueles quadrinhos sobre o vovô Thomas e vovó Laura? A vó Ana que mudou pro Canadá com cachorro e tudo. A vovó Ana que ensinou a gente a cozinhar. Aquela tataravó que era feliz. Lembra dela? Quero ser um parente distante que deixa uma história boa para variar. Não tenho vocação para Cautionary Tale.

Sinto vontade de curar minhas feridas para não provocar as mesmas em meus filhos. Não passar para frente dores herdadas. Rever comportamentos e destrinchar hábitos até saber o que sou eu e o que sou dos outros. Largo o dos outros, que eu me basto se for eu de verdade.

É um processo de resgate de todos os meus melhores momentos que foram perdidos na memória dessa minha vida esquizofrênica. Tantas soluções busquei, que algumas deixei na estante empoeirando, sem me dar conta de que já eram soluções boas para mim. Contei que a maior parte dos livros que a Eliana menciona, eu tinha na estante no Brasil? Nunca tinha lido. Estava lendo outras coisas. Não couberam na mala, e foram deixados para trás. Pego eles agora na biblioteca e é quase um flagelo pensar que poderia ter lido aquilo há dez anos atrás. Tanta lição adiada, tanto aprendizado esperando por mim.

Enfim.

Dou-me conta dessa responsabilidade. De não apenas criar dois seres humanos capazes de cuidar de si mesmos. Mas criar duas pessoas essencialmente boas, capazes de gentileza. Criar seres humanos esclarecidos, capazes de pensar por si mesmos, para não caírem nas armadilhas do mundo. Criar dois indivíduos capazes de continuar abrindo os caminhos que eu, em minha existência, serei incapaz de abrir sozinha. Abrir caminhos para quem vier depois deles.

Mãe de menina. Mãe de menino. Dupla responsabilidade. De desconstruir os grilhões do feminino que me foi ensinado. De desconstruir os apelos do masculino que ainda incutem nos meninos. Responsabilidade de criar duas pessoas confiantes em si mesmas e de pensamento livre.

Muitas vezes acho que o trabalho é impossível. Mas então me dou conta de que preciso começar não com eles, mas comigo. É desconstruindo isso em mim e me construindo de volta em novas imagens, que mostro a eles, pelo exemplo, o que é ser adulto. O que é ser mulher. O que é ser mãe. O que é ter relacionamentos de amor e carinho e respeito. O que é correr atrás de seus objetivos. O que é estar feliz.

Toda criança aprende pelo exemplo. Ela repete aquilo que ouve. Ela repete aquilo que vê. Se ela não conhece ninguém feliz, como ela vai aprender o que felicidade é? Olho para mim mesma e me pergunto o que meus filhos têm a aprender comigo hoje. O que eles vêm. Que lição eles tiram ao me ver ali, fazendo o que quer que esteja fazendo. O que eu quero que eles imitem? O que eles herdarão de mim? O que eles deixarão para os seus?   

Essa noite tive um sonho. Sonhei que Laura era bebê, e eu a carregava aninhada em meus braços, enroladinha em um xale azul claro, enquanto caminhava perdida por uma imensa estação de trens. Uma amiga me incumbira de ciceronear um grupo de adultos por aquela cidade desconhecida, e eu me desesperava por dentro: como posso cuidar desse bando de adultos? Eles não veem que tenho de cuidar de minha filha e sequer sei ainda o caminho? Ao fim do sonho, avisei ao grupo que eu não era responsável por eles, abracei minha Laura e saí a passos firmes buscando que trem tomar.

O caminho do que é ser mulher hoje ainda é indistinto para mim. Continuo buscando, para que minha filha tenha caminhos menores a percorrer.   

Acordei com Laura cantando ao meu lado e com cheiro de café. Bom dia começa com alegria. Bom dia começa com amor!

.....

E Novembro e Dezembro e Janeiro e a comida?

Os meses voaram. Eu tinha intenção de escrever em Dezembro, mas o mês desapareceu entre preparação para uma exposição nova, a infinidade de eventos de fim de ano da escola, e a chegada de meus pais perto do Natal. Novamente eu queria ter feito torrone, panforte, panettone, e toda a pataquada, e no fim só saiu Spekulatius dia 6 de Dezembro e uma batelada imensa de biscoitos sortidos para presentear os professores e levar no lanchinho comunitário de fim de ano da classe das crianças. Também fui convidada pela classe de ESL (English as a Second Language) do Thomas para participar de uma festa com todos os pais estrangeiros, em que cada um tinha que levar um prato típico, e escolhi Bolo de Fubá, que foi sucesso absoluto (apesar do milho norte-americano ser doce a ponto de ter gosto de açúcar, NINGUÉM usa o bendito pra sobremesa, então o bolo foi uma surpresa para todo mundo.)

A parte divertida. Decorando com Royal Icing e cranberries secas.

No meio da bagunça, teve UM projeto culinário que deixei para fazer com meus pais aqui, pois achei que eles gostariam de participar e porque me parecia um bom plano B para um dia de tempo feio: Gingerbread House. Já havíamos feito no ano passado, e resolvi repetir a receita, mas desta vez usando só Royal Icing. (No ano anterior eu resolvera ir pela rota da preguiça e comprara uns tubos de icing colorido, mas eles tinham gosto de bala velha. As crianças comeram todo biscoito decorado, mas eu não cheguei nem perto.) A receita do gingerbread que mais gosto é essa de Martha Stweart, que tem uma pancada de especiarias e fica deliciosa. Só precisa de um pouco de engenharia para fazer os moldes da casa e cortar a massa dos tamanhos certos antes de assar. O Royal Icing que eu uso é esse aqui do Alto Brown.
 
DESAPEGO é o nome dessa casa: largo na mão das crianças, a única coisa que eu faço é deixar o bicho de pé.

Esse ano, resolvi que faria toda a comilança natalina diferente: como aqui o Papai Noel chega enquanto as crianças dormem, toda aquela ceia para esperar meia-noite não fazia sentido. Bem melhor botar pimpolhada cedo na cama, para descansar direitinho e poder abrir presente de manhã cedo e brincar o dia todo, sem mau humor de sono. Mas também para não passar batido e ser o mesmo arroz com feijão de sempre, inventei de fazer Cappelletti in Brodo. Afinal, é tradição minha fazer pela primeira vez na vida alguma coisa num dia especial em que nada pode dar errado. 
Apesar dos cappelletti terem ficado desengonçados, NENHUM abriu durante o cozimento, o que considero um sucesso!
Saí com meus pais para comprar os ingredientes, e no dia 24, munidos de uma taça de vinho e olhando o dia desaparecer rapidamente lá fora, comecei a preparar tudo. O recheio é bastante simples e fácil, carnes refogadas, misturadas a queijos e temperos. A massa é onde o bicho pega. Massa recheada para seis pessoas. Já contei que aqui em Toronto a umidade do ar chega a 20% durante o inverno? Que alegria! Imagina o que acontece com massa fresca esperando nessa umidade desértica? Aquela linda fita de massa amarela fresquinha e macia vira Biju em um piscar de olhos. Para prevenir isso, pensei em chamar a família toda para fechar cappelletti, mas calhou que meu pai estava cochilando, as crianças viam desenho e Allex passeava o cachorro, e sobramos minha mãe e eu para rechear e fechar bem uns duzentos cappelletti em tempo recorde. 
Aquela refeição que parece a simplicidade em pessoa, mas que deu um trabalho do cão pra fazer.

Os cappelletti foram servidos em caldo de frango que eu deixara já preparado e congelado duas semanas antes, e, modéstia à parte, ficaram uma delícia. Achei que fosse sobrar alguma coisa, que fosse cappelletti demais para a gente que não é de comer muito, mas não teve um ser vivo na mesa que não tenha repetido o prato e só restou mesmo foi um panelão vazio.

CAPPELLETTI IN BRODO
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan. No livro, ela chama a receita de Tortellini, mas a gente sabe que é a mesma coisa, o nome muda conforme a região. Na minha casa, em que a família veio toda do Veneto, isso chama Cappelletti.)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes:
(recheio)
  • 110g carne de porco moída
  • 180g peito de frango moída
  • 2 colh (sopa) manteiga
  • sal a gosto
  • pimenta do reino
  • 3 colh. (sopa) mortadela picadinha
  • 1 1/4 xic. ricotta fresca
  • 1 gema
  • 1 xic. queijo parmesão ralado
  • noz moscada para ralar
(massa)
  • 4 ovos grandes
  • 400g farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) leite
(para servir)
  • 2,5 litros caldo de frango ou carne caseiro
  • parmesão ralado

Preparo:
  1. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio. Quando começar a espumar, junte as carnes de porco e de frango, uma pitada de sal e pimenta, e cozinhe por seis ou sete minutos, quebrando os grumos e mexendo com uma colher de pau, até dourar. Retire da panela e deixe esfriar em uma tigela. 
  2. Junte a mortadela, ricotta, gema, o parmesão e cerca de 1/8 colh (chá) de noz moscada ralada. Misture muito bem e corrija o tempero. 
  3. Prepare a massa. Não vou dar muitos detalhes a respeito da massa por dois motivos: se você nunca fez pasta fresca na vida, essa não é a que você vai usar pra começar. Faça um fettuccine. Então se você está fazendo Cappelletti, imagino que já saiba misturar os ovos à farinha e sovar a coisa toda. O que você precisa saber é que o leite vai junto com os ovos na hora de misturar à farinha. Você vai sovar a massa até ficar lisa, embrulhar bem e deixar meia hora fora da geladeira para o glúten relaxar. Abra com o rolo ou com a máquina, seu método favorito, até que fique bem fino. Para massa recheada, costumo ir até o penúltimo número da máquina. Não faça toda a massa de uma vez, ou as tiras vão secar antes que você possa recheá-las. Você vai dividir a massa em 4 porções e abrir e rechear cada porção enquanto as outras ficam quietas embrulhadas. Se precisar de ajuda para entender como abrir a massa, há um zilhão de videos internet afora que vão ser mais úteis do que qualquer coisa que eu escreva aqui. Mesmo seguindo a receita da Marcella Hazan, eu aprendi a fazer massa vendo minha avó fazer. Ver alguém fazer é o que tira as dúvidas.
  4. Quando tiver a primeira tira de massa, apare a massa e corte em tiras compridas de 3cm de largura. Corte no sentido da largura, produzindo quadradinhos de 3cm.  Distribua 1/4 colh.(chá) de recheio sobre os quadradinhos. Dobre-os ao meio, fazendo triângulos e apertando bem pra selar. Essa parte tem que ser feita rapidamente para a massa não secar. Apoie o dedo indicador onde está o recheio, deixando a ponta maior para cima, e dobre as outras duas pontas uma sobre a outra, por sobre seu dedo. Sério, vídeos de gente fazendo tortellini. Serve o Jamie Oliver. Pelo texto é muito difícil visualizar. Como minha massa estava secando muito rápido, acabei me atrapalhando e a massa saiu cortada maior do que deveria. Mas como minha massa estendeu bem fininha, consegui produzir todos os cappelletti de que precisava. 
  5. Uma vez que você faça os cappelletti, deixe-os espalhados em uma assadeira polvilhada com farinha, sem se encostarem, para que sequem, e comece tudo de novo com o restante da massa. Você pode deixar os cappelleti secando ali em temperatura ambiente pelo dia todo até a hora de cozinhar. Eles têm menos risco de se abrirem no cozimento se tiverem secado um pouco. Ao final, você deve ter cerca de 200 cappelletti.
  6. Na hora de servir, leve o caldo à fervura. Com cuidado, coloque os cappelletti, que não devem demorar mais que 3 minutos para cozinharem, mas vai depender da espessura da massa e do quanto secaram. Vá retirando um e testando. Quando estiverem cozidos, leve à mesa IMEDIATAMENTE e sirva com parmesão ralado.
No dia seguinte, aquela bagunça de criança e presente, café da manhã, e mal deram onze horas e começamos a petiscagem. Minha família é do petisco, do antipasto, do acepipe, do cicchetti, dos tapas, e a gente consegue ficar no pãozinho com qualquer coisa em cima o dia todo e pular almoço e jantar. E era esse o objetivo: petiscagem até o meio da tarde, para só colocar o assado no forno para o fim do dia. 
Eita, foto fora de foco!
Servi salames e presuntos, incluindo um exótico salame de alce com mapple syrup que comprara especialmente para meus pais. Brinquei que mais canadense que salame de alce com mapple, só se o alce tivesse sido morto por um lenhador canadense barbudo, usando camisa de flanela e chapéu de guaxinim. Servi também patê de fígado de frango, que é um clássico familiar, uvas, tomates, queijos e castanhas. E vinho. E caipirinha, claro. As crianças passaram o dia petiscando junto, entretidas com seus presentes, e sobrou para os adultos a arte da conversação.

O jantar principal foi simples, um lombo assado com batatas e uma salada de folhas amargas com maçã, que eu já tinha tido trabalho o bastante no dia anterior. Sobremesa foi uma torta de peras e chocolate que prometia muito mas não achei aquilo tudo não. 
Passado o Natal, vêm os passeios no parque, no museu, almoço aqui e ali, e pronto, que já é Ano Novo! Recebemos um casal de amigos que trouxeram um Caldo Verde para complementar a já sabida petiscagem, repeteco do Natal, acrescida de guacamole com tortillas e uma quiche de brócolis que acabou sobrando inteira para a ressaca do dia seguinte. Brownie com sorvete sempre dá conta do recado com a criançada (e com os adultos), e foi uma noite maravilhosa, com karaokê improvisado e todo mundo acompanhando Bon Jovi e Backstreet Boys com Kazoos, e dobrando no chão de tanto rir. Tem que ser criativo em Reveillon canadense, que aqui mal se soltam fogos e ninguém "vai pra Paulista" nem pula sete ondinhas a doze graus negativos.

Os dias que se seguiram exigiram criatividade também. Que eu programara diversos passeios que dependiam dos trocentos centímetros de neve que sempre caem no início de janeiro. Mas o que tivemos (e continuamos tendo) é um inverninho mixuruca, ameno e chocho, sem neve nem dia bonito, com muita chuva que vira gelo na calçada e tempo cinza-depressão. Daí que nada de fazer snow-shoeing, nada de descer barranco com trenó, nada de boneco de neve no parque. Pelo menos teve um dia, antes do lago descongelar, que, de confiança alimentada pela marca de passos sobre a neve antiga depositada no lago, fomos Allex, meu pai e eu caminhar por sobre o lago congelado. Que afinal, se você vai para um lugar em que um lago inteiro vira uma pedra de gelo, não dá pra perder a oportunidade de ficar em pé em cima dele, mesmo que morrendo de medo de cair lá dentro e virar picolé. 

Meu pai trouxe os tênis de corrida, depois de eu muito insistir durante o ano todo, e foi uma das coisas mais legais que fiz poder correr 9km do lado dele, ao longo do lago, em temperatura negativa. Orgulho do papai! Setenta anos e firme e forte, melhor que muito amigo meu de quarenta!
Teve uma nevinha nos últimos dias, quase prêmio de consolação. E meus pais pelo menos puderam passear no parque e ver como fica lindo assim branquinho. Foi minha mãe quem se animou a descer no meio da noite quando a neve caiu mais forte e brincar de snowball fight. Bando de adulto de pijama na frente do prédio rindo e tomando bola de neve na cara, e canadense passando por nós com aquela cara de quem não entende o por quê de tanta alegria. 

Alegria foi também levar minha mãe no The Rex, o bar de jazz mais antigo de Toronto. Com cara de de pub velho atrás de igreja, lotado da terceira idade no domingo na hora do almoço, surpreendeu pela qualidade da banda. Uma banda igualmente composta por gente que passou por duas guerras, tocando um Dixieland delicioso, num show animado e divertido por três horas. De deixar o sorrido no rosto até doerem as bochechas. Acho que nunca vi minha mãe tão contente, e esse foi para mim o ponto alto da visita toda. 
Quando eles foram embora bateu aquela depressão, a casa vazia e não saber quando vou vê-los de novo. Eles voltaram para o Brasil no mesmo dia em que as crianças voltaram para a escola e Allex para o trabalho, e de repente eu estava sozinha, olhando para a cara do cachorro. Vou retomar minha rotina, pensei. Corrida, meditação, pintar feito louca, procurar um novo lugar de exposição, terminar meu livro, montar minha loja no Etsy, participar daqueles concursos, fazer aquelas aulas. 

Só que não. 

Passou Ano Novo, tem aniversário da Laura. SETE ANOS. Mamãe, quero chamar minhas amigas.

E lá vou eu. Mamãe, no dia do meu birthday, quero levar a sopa da vovó de almoço na escola. E de jantar, quero cachorro-quente do papai, aquele na churrasqueira. E bolo de chocolate. E na minha festa quero pão de queijo, pipoca e cupcake de baunilha. E quero almoçar no japonês. 

Tinha que ser minha filha, só pensar na comida do aniversário.

E lá fui eu passar minha semana fazendo bolo, cupcake, comprando coisa pro cachorro-quente, lembrancinha pra escola, lembrancinha pra festinha, balão pra encher, bandeirinha pra pendurar, e o tal do kit de pintura de rosto que ela andava pedindo pra ter no aniversário dela desde o ano passado. 

Contei que também tinha trabalho encomendado pra entregar essa semana?

E que o marido ficou doente de cama um dia todo? 

Pois é. 

Veio aniversário e deu tudo certo e ela ficou felicíssima com tudo. Festa aqui no Canadá é super simples e dura duas horinhas, mais playdate que festa. Pão-de-queijo, pipoca, cupcake e suco de laranja. Pintei o rosto da criançada toda (os meus mais quatro amigas da Laura) de tudo quanto é bicho, e já vi que se tudo der errado na vida, ainda posso ganhar uns trocados fazendo face-painting em festa infantil. Talento escondido, olha só! 

Janeiro prosseguiu assim, comigo tentando voltar para a rotina e alguma coisa aparecendo pra não me deixar. Teve coisa boa, como uma viagem rápida para Ottawa, e teve coisa ruim, como a escola estar em greve por conta dos cortes na educação que o Ford, nosso digníssimo governador de direita, andou fazendo e que não anda agradando ninguém. 

E agora escrevo assim correndo, enquanto as crianças estão no banho, porque amanhã tem greve de novo, e se fosse deixar esse post para outro momento mais calmo, ele sairia apenas em março. Ufa!

A sopa da vovó é uma canja com arroz e legumes e peito de frango que comi durante a vida toda. E que aqui ocasionou grandes mudanças, pois depois de enviá-la de almoço na escola, as crianças FINALMENTE voltaram a comer COMIDA no almoço e não sanduíche. Isso me facilita horrores a vida, pois é só requentar o jantar do dia anterior e colocar na marmita deles, ao invés de ter de ficar inventando moda e me estressando com o valor nutricional do pão com queijo. 

A sopa da vovó que a vovó faz fica mais soltinha, mais líquida, e mais clarinha, pois ela usa peito de frango. Eu que já tinha caldo de frango feito e todas as aparas da carcaça que eu usara o caldo (depois de cozinhar a carcaça saio tirando todo fiapinho de carne cozida dela, e você junta bem umas duas xícaras de frango desfiado), fiquei com dó de botar o peito do bicho na sopa e resolvi guardar para fazer filés. O caldo deixou a sopa mais dourada (e igualmente gostosa, ainda que mais forte.) Também errei na quantidade de arroz, que achei que era muito pouco, e a sopa quase que virou risotto. Hahah!Ainda assim, foi devorada, com parmesão ralado por cima e croutons, que é como os netos sempre comeram na casa da vó.

Prometo voltar mais rápido na próxima vez. ;) Obrigada a quem lê, por continuar por aqui.



SOPA DA VOVÓ
(A canja da minha mãe é daqueles pratos feitos a olho, com o que sobrou na geladeira, então todos os ingredientes são adaptáveis em quantidades. Quanto rende? Rende no mínimo para quatro pessoas.Você pode cozinhar o arroz direto na sopa, desde que fique de olho pra que ele não passe do ponto - você não quer que ele desmanche, apenas que fique macio. Nesse caso use 1/3xic. arroz branco cru quando as cenouras estiverem já macias e acrescente 1 xícara de água à panela para compensar a absorção de líquido do arroz. Se quiser trocar o arroz por um macarrãozinho pequeno pra sopa, pode. Se quiser não usar nem o arroz nem o macarrão, também pose. Se vc já tiver frango desfiado na geladeira, ótimo: refogue com os legumes para dourar um pouquinho, e use a cenoura ralada grossa para acelerar o cozimento.)

Ingredientes:
  • azeite de oliva 
  • sal e pimenta do reino
  • Meio peito de frango, cortado em 3 ou 4 pedaços (para cozinhar mais rápido)
  • 1 cebola, picada
  • 1 cenoura, descascada e cortada em cubinhos bem pequenos
  • 2-3 batatas médias cortadas em cubinhos 
  • 1 xícara de arroz branco JÁ COZIDO
  • salsinha picada
  • queijo parmesão ralado e croutons para servir  (minha mãe doura os cubinhos de pão em azeite e orégano)

Preparo:
  1. Numa panela grande, aqueça um fio de azeite generoso, em fogo médio, e refogue a cebola e a cenoura com uma pitada de sal até que comecem a dourar. 
  2. Junte o frango, dourando todos os lados, e temperando com sal e pimenta conforme for pegando cor. 
  3. Junte a batata, remexa algumas vezes, e então junte água suficiente para cobrir o frango e os legumes, cerca de 6 xícaras. Leve à fervura, abaixe o fogo e cozinhe por trinta a quarenta minutos. 
  4. Cheque o frango. Se ainda não estiver cozido por dentro, volte para a panela e continue cozinhando. Se já estiver bom, retire os pedaços da panela, coloque na tábua e desfie com a ajuda de garfos.
  5. Volte o frango desfiado para a panela, mexa algumas vezes e acerte o tempero. Cheque as cenouras e as batatas, que devem estar bastante macias, quase derretendo. Se já estiver tudo bom, junte o arroz já cozido, misture bem, deixe cozinhar por mais uns cinco minutos e acerte o tempero. A sopa pode ficar mais rala ou mais consistente, dependendo da quantidade de líquido. Acerte isso também, a seu gosto, lembrando de corrigir o tempero. (Minha mãe costumava usar um amassador de batatas para espremer as cenouras e as batatas, e até um pouco do frango junto, para servir uma sopa mais cremosa quando meus filhos eram bem pequenininhos.)
  6. Junte a salsinha, misture e sirva imediatamente com croutons e parmesão ralado por cima. 
 MINHA ADAPTAÇÃO: como eu tinha já uns dois litros de caldo de frango e umas duas xícaras de frango desfiado da carcaça da preparação do caldo, refoguei os legumes, o frango, juntei as batatas e cobri com o caldo. Quando os legumes estavam macios, juntei o arroz. Meu pecado foi colocar arroz demais, pois havia bastante caldo e achei que a sopa ficaria muito rala. Mas o arroz absorve bastante líquido, e a sopa terminou mais cremosa do que eu pretendia. Com o caldo de frango, a sopa fica com um gosto mais forte. A sopa da minha mãe tem um gosto mais delicado.

Cozinhe isso também!

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