Eu sofro de um caso sério de FOMO (Fear of Missing Out), e desta vez não é nem culpa da Internet. Sim, as redes sociais e o acompanhar constante de blogs de estilo de vida e sites de cozinha e viagem com certeza intensificam essa sensação de não estar sendo / fazendo / experimentando o bastante, mas confesso que isso é mesmo um problema intrínseco à minha personalidade, muito antes do advento da conexão discada.
Há quem diga (eu digo) que é culpa dos planetas: isso de ser Libriana com ascendente em Gêmeos não me ajuda em nada na hora de tomar decisões. Se quiser me ver num momento simples de angústia, pergunte-me se quero jantar pizza ou japonês. Se eu decidir por pizza e você me perguntar quais coberturas eu quero combinar em cima da minha, partindo de um cardápio com trinta e duas opções, eu sento num cantinho e choro. Metaforicamente, é claro.
Passei os seis meses de frio dessa terra estranha ansiando pelos meses de calor que trariam alguma variedade de volta à minha mesa, um frescor, um verde que não fosse couve, cores que não viessem de beterrabas. A Primavera custou a chegar. Com a última neve em Abril (argh!), aqueles lindos ingredientes primaveris ainda eram caros e não pareciam combinar com as temperaturas geladas lá fora. Foi apenas quando os termômetros começaram a estabilizar nos vinte graus, e o calor começou a aumentar, que os preços dos aspargos e das cerejas tiveram o efeito inverso, despencando de uma forma tão convidativa quanto os gramados ensolarados nos parques.
O Verão trouxe tudo aquilo que no Brasil parecia comum e sem graça, tem o ano todo, ninguém liga muito: abobrinhas, vagens, berinjelas, melancias, melões, alfaces, milho na espiga. Você nunca se empolgou com uma abobrinha? Fique seis meses sem uma, aí a gente conversa.
Saíram as cerejas e vieram os morangos, os mirtilos, as framboesas, as amoras, e então os pêssegos e as nectarinas e uma fabulosa variedade de ameixas. E as vagens vêm amarelas, verdes e roxas. E os dentes-de-leão vêm vermelhos. Há cinco variedades de rabanetes no mercado. Há melancias de casca tão escura quanto o céu à noite e outras de polpa amarelo-forte. Há manjericão genovês, manjericão gigante, manjericão tailandês. Há tomates de todas as formas e cores e tamanhos. Há batatas jovens de nomes que nunca vi, algumas roxas (mas que não são doces), outras de cascas manchadas, há batatas Viking, batatas Mozart, batatas Fingerling. Há berinjelas gigantes e brancas como um ovo de avestruz. E outras pequeninas e esverdeadas. Há pimentões para combinar com qualquer cor de prato que você tenha em casa. Há legumes e verduras tão coloridos, que têm seu nome precedido do epíteto "Rainbow".
E uma ida ao supermercado ou ao Farmer´s Market, de repente, parece uma visita ao saldão do outlet multimarcas em véspera de Natal. Eu não sei nem o que olhar primeiro.
Tenho minha lista. Depois de um ano aqui, finalmente sou dona de minha cozinha. Sei exatamente o que a gente consome e em qual ritmo. A busca por uma rotina na mudança brusca que lhe tira o chão, e a necessidade do simples e do conforto em momentos emocionalmente complicados e desconfortáveis, transformou minha cozinha num ambiente mais previsível e ordenado, com cardápios um pouco mais fixos, que me permitiram entender melhor nosso padrão de consumo e alimentação.
Sei o que vale a pena comprar no atacado e o que vale a pena pegar em pequenas quantidades toda semana. Sei também exatamente quantas patacas posso gastar toda semana no horti-fruti. Lá vou eu com meu folhetinho do mercado com todas as frutas e verduras em promoção. A meta é comprar três frutas, dois legumes, duas verduras, e repor qualquer básico que esteja faltando, como salsão, cenoura, cebola e alho, salsinha, cebolinha e coisas como pepino e abacate que são consumidos feito água aqui em casa. Lá vou eu, acreditando em minha disciplina e força de vontade zen. E lá me lasco, assim que vejo que já tenho ameixas, melancia e amoras pretas na cesta, mas os pêssegos estão num preço incríiiiiiivel, e pode ser que semana que vem eles não estejam mais aí, afinal, as cerejas sumiram de um dia para o outro, e aquele melão óoooootimo de duas semanas atrás também não deu mais as caras. E pego minhas vagens roxas, minha acelga suíça de talos amarelos, meu pézinho de alface (eita! tá pequeno, essa semana!), e meus tomates coloridos, mas então vejo aqueles pepinos pequeninos que há tempos eu queria transformar em picles, e lembro que precisava de folha de repolho para cobri-los, e olha lá! O repolho está por 99 centavos o pound! Pô! Mas será que levo mesmo essas ameixas? Estão mais baratas porque é época, ou porque não estão tão boas quanto as outras? Porque não pego as outras, amarelas, Mirabeille, que ainda estão aí e a Laura adorou? Será que vou mesmo deixas os pêssegos? As nectarinas estão mais doces que as ameixas? E morango? O morango está sumindo. Vixe. Morango. Será que levo abobrinha de novo? Seis meses sem abobrinha, Ana, seis meses! Nunca comi berinjela branca. Será que tem o mesmo gosto? Vou levar manjericão. Fiz muito pouco pesto nesse verão, e preciso fazer mais pesto. Cogumelos. Não, péra, deixa os cogumelos para o Outono, que combina mais. Ai! Meu! Deus! Olha aquelas batatas roxas!!! Eu lembro da receita do primeiro livro do Jamie Oliver usando aquelas batatas roxas e eu achava que eram batatas doces e não eram! Caraca!!! Ieeeei! PRECISO EXPERIMENTAR! PODE NÃO TER MAIS SEMANA QUE VEM!
Lou-ca.
Nunca mais na vida critico gente enlouquecida em Shopping com vinte e oito sacolas. Tá? Nunca mais.
Quando cheguei em casa e coloquei tudo na fruteira e na geladeira, tendo carregado uma melancia inteira dentro da minha mochila, porque eu não aguentava mais o peso das duas imensas sacolas da Ikea rasgando meus dedos, Allex começou a rir. "Caramba! O que aconteceu? Estamos estocando para a guerra?"
Pois é. Só que não. Ainda bem.
No dia seguinte, comento com minha amiga: "Eu sou minha melhor versão sob restrição, isso com certeza. Essa abundância de opções me deixa completamente desbaratinada. No Inverno, quando eram só batatas, couve e maçã, eu resolvia a compra da semana em quinze minutos, voltava pra casa e já sabia tudo o que ia cozinhar todos os dias, e a parte mais divertida era criar pratos diferentes com aqueles mesmos ingredientes, pra não enjoar, não encher o saco. Agora, minha geladeira tá tão entulhada que eu não consigo enxergar a luzinha no fundo, e pareço daquelas mulheres com closets do tamanho de quartos de hotel, que dizem que não têm o que vestir: olho para a comida e não sei o que cozinhar."
De fato, fiquei longos períodos de tempo em pé em frente à geladeira aberta, braço apoiado à porta, escaneando todas as frutas e verduras ali e tentando montar na minha mente o melhor quebra-cabeça culinário. A acelga suíça vai murchar antes do repolho, tenho que usar antes. Mas tenho dois tipos de batata e os rabanetes, que vão começar a soltar raízes por conta da umidade. Hmmm... os tomates que deixei na fruteira para amadurecerem estão passando do ponto. Não vou abrir a melancia, porque essa geladeira queima tudo, congela tudo, então vou oferecer as uvas e as amoras antes para as crianças. O que eu faço com essa acelga? Gratin de novo? Afe, a gente comeu gratin semana passada. Mas não quero fazer torta. Tá quente demais para abrir massa. Meu Deus! As crianças voltam às aulas daqui a dois dias! O que elas vão levar de snack?? Rabanete? Hmmm...
Acho muito difícil não cair nessa pegadinha, e acho difícil porque sempre caio quando a oferta é muita. No Inverno, a restrição de comprar apenas "Local" e "Da Estação" (que por conta dessas duas qualidades, também existem em abundância, e, portanto, estão sempre "Em Promoção" - win-win situation), evitava olhar para aquela abobrinha vinda do outro hemisfério e custando um quilo de ouro. Mas no Verão, TUDO é local e da estação, e tudo está com preços relativamente bons. Que é que eu faço? Convenço-me de que todas aquelas verduras vão durar duas semanas, então está tudo bem. Mas a verdade é que compro mais perecíveis do que consigo consumir em uma semana, e acabo preparando legume acompanhado de legume em todas as refeições para não deixar nada estragar, e acabo esquecendo de usar os feijões e o arroz da despensa, que normalmente entram justamente para "dar sustância" e baratear a refeição. Daí que na última semana do mês, acabou a verba do horti-fruti, e rola solto um arroz-feijão-e-ovo, ou spaghetti cacio e pepe. É para essas semanas de prato bege, que eu acabo guardando sempre um potinho de pesto no freezer ou ervilhas congeladas. Ou pelo menos um pouco de salsinha para ter algum frescor no prato. A parte boa é que quando vira o mês, todo mundo está louco para comer salada de novo. ;)
O fato é que eu nunca tinha DE FATO me dado conta disso tudo.
Daí que durante o último mês assisti a um excelente programa da TV canadense, meio que sem querer, pois eu estava procurando informações sobre a segunda temporada do The Great Canadian Baking Show. O programa, chamado Back In Time for Dinner, mostrava uma família típica canadense, que concordara em ver sua casa, suas roupas e seus hábitos (principalmente alimentares) transformados por uma semana como se vivessem na década de 40. E depois 50 e 60, e assim sucessivamente até os tempos atuais. A série, que depois descobri que se trata da versão canadense do original da BBC britânica (a versão original tem no YouTube!), é muito bem produzida, e mostra a progressão da indústria alimentícia, o impacto da tecnologia e das guerras na produção e disponibilidade de comida, e sobre a relação estreita entre comida e as relações familiares. É muito bom.
Uma das coisas mais interessantes da série, para mim, foi ver a economia doméstica não apenas em tempos de guerra, mas no momento em que a classe média britânica e norte-americana se viu sem a ajuda (cozinheira e empregada) que costumavam ter antes. Foi toda uma geração de mulheres se vendo sozinhas na cozinha, sem nenhum conhecimento ou orientação, tendo que fazer duzentos gramas de carne render uma semana toda para cinco pessoas, correndo o risco de serem multadas ou irem para a cadeia por jogar no lixo uma fatia de pão.
Faz pensar no desperdício de comida, na dureza da guerra e da pobreza, na importância que ganha um prato de comida (lembro as histórias de Marcella Hazan em sua autobiografia), mas essas foram elucubrações minhas e que sei que todos terão ao assistir ao programa. O ponto desse texto é outro, na verdade. Porque ao assistir àquilo, lembrei-me de um livrinho ótimo que li há muitos anos atrás, justamente a respeito da economia doméstica na época da guerra: Como Cozinhar Um Lobo, de M.K.Fisher, livro que já devo ter mencionado aqui, em tantos posts em que falei sobre desperdício de comida. (O modo como ela pedia para que se raspasse com a faquinha qualquer restinho de manteiga que pudesse ter caído do pão, para que pudesse ser usada em outra refeição faz você pensar naquele resto de macarrão que ninguém quis e que você jogou no lixo despreocupadamente.)
Durante as guerras, os governos criaram cartilhas ensinando como transformar quase nada em uma refeição para sua família. Uma vez ganhei de um amigo uma dessas cartilhas britânicas. Foi esclarecedor ler aquelas palavras e aquelas receitas, não porque eu quisesse implantar uma economia de guerra aqui em casa - ainda que exista sim a piada interna de que nossa despensa parece uma de 1940, mas porque me fez repensar completamente o modo como eu enxergava os ingredientes e montava meus cardápios.
Foi naquele momento em que comecei a pensar minha cozinha com a seguinte restrição: não pode haver desperdício.
Durante anos, esforcei-me, dentro de toda a minha esquizofrenia culinária, alterando completamente a despensa cada vez que conhecia novos sabores e gastronomias, sempre sem muita rotina no que eu decidia cozinhar, a nunca jogar fora o que podia se transformar em refeição. Até chegar ao ponto em que meu lixo da cozinha só contivesse partes realmente não comestíveis. Foi preciso devagarinho educar a família a nunca se servir de mais do que se vai comer, que é melhor repetir do que jogar fora. Pegue pouco, digo às crianças, e depois, se estiver com fome ainda, você pode se servir de mais, ou esperar pela sobremesa. E nunca há sobras no prato a ir para a lixeira. Se sobrou Maple Syrup no prato, repito sempre, é porque tem Maple demais para pouca panqueca. Certa vez, para ilustrar o tamanho do desperdício, cheguei a juntar todo o xarope restante em seus pratos num medidor. Havia mais de três colheres de sopa de Maple Syrup ali, indo para o ralo. Ao ver a quantidade ali numa medida que eles compreendiam, passaram a ser mais cuidadosos na hora de se servirem. Quando exageram, alerto mas não estresso a respeito: boto as minhas panquecas em seus pratos e deixo que elas absorvam aquela pocinha açucarada enquanto eles saem para brincar.
O que finalmente me dei conta, assistindo àquele programa, foi como essa meta de não desperdiçar me ajudou a entender a cozinha, mudou meu olhar em relação à comida e, invariavelmente, tornou-me uma cozinheira melhor, mais prática, mais rápida, e com certeza mais econômica. E percebi que essa é a parte difícil: PENSAR a cozinha. Quando converso com amigos que eu considero ótimos cozinheiros, que gostam de preparar bolos e tortas e criar boas refeições, as reclamações são sempre as mesmas: como é difícil pensar os cardápios todos os dias, criar esse quebra-cabeças com a sua despensa. Seguir a receita é fácil. Executar a técnica aprendida é fácil. Olhar a geladeira e criar algo com o que está lá: essa é a parte complicada.
E é CLARO que é complicada. Porque esse é o tipo de coisa que se aprendia com sua família, observando e ajudando, você via sua avó transformando o arroz de ontem em bolinho, fritando as aparas de massa fresca de macarrão, polvilhando açúcar e servindo de lanche. Ou que se aprende na prática, ao longo de anos cozinhando e cozinhando e cozinhando. Há dez anos atrás, eu precisava dos meus 267 livros de cozinha e mais duas dúzias de sites e blogs para me dizer o que fazer com uma berinjela. Hoje, confesso, quase nunca abro os poucos livros que trouxe, a não ser que a memória traga à tona aquela receita que eu vira um dia enquanto folheava o livro há meses atrás e que parecia usar os ingredientes que eu tenho.
Isso não quer dizer nada. Não faz de ninguém melhor ou pior cozinheiro. Só tornou minha vida mais fácil.
Se você não teve uma mãe, um pai, uma avó, um amigo para ensiná-lo o pulo do gato na cozinha, só a experiência vai trazer. Aprendi muito com minha mãe e com minhas avós, e até hoje lembro de meu pai me dizendo que um bom cozinheiro não joga comida fora. Mas foi o livro de Tamar Adler, An Everlasting Meal, presente de uma leitora querida, que de fato mudou tudo. Trata-se de, grosso modo, um livro sobre sobras. O que fazer com o arroz que empapou, como usar o óleo do vidrinho de anchovas, como transformar um frango só em diversas refeições diferentes. Há quem diga (eu digo) que Tamar Adler é a M.K.Fisher na nossa geração. Se você lê em inglês, leia esse livro. Infelizmente, não acho que exista em português, mas deveria. (Tenho recomendado a todas as pessoas que vêm se queixar dessa dificuldade de pensar a cozinha, e até peguei o livro de novo na biblioteca para reler, pois o meu está com minha irmã, emprestado. Aliás, peguei todos os da M.K. Fisher também.)
O que esse livro me mostrou, e que foi genial na minha evolução como cozinheira, foi que as sobras são (voltando à metáfora do closet cheio de roupa e nada para vestir) uma espécie de peça obrigatória. Você tem que ir a esse evento, mas tem que ser de calça jeans. E o resto? Sei lá, mas tem que ser de jeans. É uma restrição que elimina uma decisão da sua vida e facilita tudo. As sobras funcionam do mesmo jeito: elas precisam ser usadas e já estão lá, muitas vezes já no meio do caminho, até poupando seu tempo na cozinha. São uma base já pronta e obrigatória para se construir algo novo em cima. O que dá pra fazer com a carne de panela que sobrou? Botar no sanduíche? Cobrir de purê e transformar em escondidinho? Misturar a molho de tomate e servir com macarrão? Ou com polenta? Juntar as carninhas a uma alface romana e alguns picles e fazer uma salada, guardando o caldinho da carne para dar sabor a um molho de massa ou uma sopa? Misturar aquela colherada de arroz que sobrou, temperar com coentro e rechear tortillas de trigo? Ou crepes? Que tal crepes de farinha de milho? Ideias infinitas. Mas a base está lá, e se você estiver no pique de ser criativo e construir algo novo ao invés de só requentar no microondas, a brincadeira fica bem mais fácil do que olhar a geladeira cheia de coisa nova e caçar receita para fazer tudo do zero, coisa que, pelo menos para mim, costumava ser mais estressante, porque achava mais receitas para um mesmo ingrediente e nada para outro, e começava a ficar aflita porque precisava de três abobrinhas mas só comprei duas, ou tenho iogurte mas não tenho sour cream, ou porque a receita pedia coentro e só comprei salsinha, ou porque não vou conseguir usar TODAS as berinjelas na torta e aí vai sobrar uma mísera berinjela e eu não queria que sobrasse porque depois vou ter de pensar o que fazer com ela, e ela vai murchar... enfim. Já viu.
Seja um arroz com feijão ou um peixe tchananans com verduras exóticas e molho complicado, minha mente se acostumou a esse quebra-cabeça, de pensar o que dá pra fazer com o que sobrar depois. Vida corrida de mãe (mas que também podia ser vida corrida de quem tem um emprego fora o dia todo e fica três horas no trânsito todo dia), ensinou-me a pensar além daquela refeição, e cozinhar alguns itens a mais para poder recombinar as sobras nos dias seguintes ou simplesmente congelar para uma semana bege de orçamento estourado. Essa restriçãozinha, que parece tão pequena, foi o que me tornou uma cozinheira mais inteligente. E há anos tenho esse desafio comigo mesma, que me faz sentir criativa e virtuosa: na última semana do mês só cozinho com o que tem em casa, até ver todos os potes da despensa e da geladeira vazios; nesses dias costumam sair os pratos mais interessantes, e recorro muito à cucina povera italiana, para transformar um maço de salsão ou meia dúzia de cebolas em algo delicioso, quando não há mais nada de fresco disponível. Acredite, você só pensa em salsão gratinado quando é só isso que sobrou na geladeira.
O não poder desperdiçar fez também com que ao longo dos anos as refeições fossem ficando mais tranquilas, com menos pressão para ter o Selo Internacional de Aprovação dos Chefs Nutricionistas Gourmets Convidados de Fim de Semana e Aquele Seu Primo que Cozinha Bem Doadores de Likes Infinitos da Suprema Rede Social Regente da Vida de Todos os Seres Humanos da Internet e Além.
Um jantar improvisado que parecia impossível para mim há dez anos atrás. |
Afinal, tem vezes em que me sinto super esperta, transformando 1/4 de xícara de painço esquecido na despensa há um ano (porque nunca mais comprei painço), uma abobrinha, um ovo e um naco de queijo, em uma refeição para quatro pessoas (o ovo foi na receita dos crepes de sarraceno, que preparei enquanto o painço cozinhava; refoguei a abobrinha com cebola e alho até quase desmanchar, misturei ao painço e ao queijo e recheei os crepes, que foram ao forno com manteiga e foram acompanhados do que sobrara do - pequeno - pé de alface e meio tomate. Alimentou nós quatro e sobrou para o marido levar na marmita no dia seguinte). E tem vezes que pego meia porção de spaghetti, requento na frigideira com azeite e um punhado grande de ervilhas congeladas para dar volume, acompanho com a colher de sopa que sobrou da salada de ontem, e completo com uma torrada com a uma fatia de presunto e queijo que restava, passada no grill pra gratinar. Eu ri muito quando vi que a foto tinha ficado bonita. Porque é macarrão com pão.
O pior foi Laura, olhando para o prato, uma sobrancelha erguida, as mãos na cintura: "Mamãaaae! Macarrão com sanduíche?? Isso não faz o menor sentido! Macarrão NÃO TEM acompanhamento! A gente come ele sozinho!"
Toma essa.
"Não é pra fazer sentido, Laura. É pra ser comida. Parece ruim?"
"Não. Tá com uma cara gostosa."
"Então, pronto. Coma."
E a vida segue.
A melhor parte de aprender a pensar as sobras, os restos, as aparas, é relaxar e lembrar que não precisa ter vinte e quatro ingredientes, não precisa ter cara de restaurante, não precisa ter quinze super-foods virtuosos do momento. Pode ser só um prato de comida gostoso. Mesmo que seja macarrão com sanduíche. Ficou todo mundo alimentado para poder correr lá fora no parque nos últimos dias de férias. Não precisa mais que isso. A nossa geração que se encantou de novo com a cozinha como hobby e não como obrigação, que cresceu vendo os programas de culinária mais deliciosos de chefes famosos, e que depois foi massacrada por uma avalanche de informações nutricionais conflitantes e alertas de saúde, às vezes se perde um pouco nisso tudo, e acredita que cozinha é só técnica e receita exata e um amontoado de nutrientes.
Num outro livro de Tamar Adler (acho que recém-lançado, não sei, catei na biblioteca), ela comenta justo sobre isso, sobre a prisão que às vezes é se cozinhar com precisão: 100g disso, 1 colher de chá daquilo, cubinhos de 2cm. As receitas antigas não tinham medidas exatas e muitas vezes sequer instruções muito claras. Lembro sempre das receitas de minhas avós: farinha o quanto baste, coloque na forma e asse até ficar pronto, um cálice de leite, uma colher (qual colher???) de fermento, um pires de açúcar, ou tão somente uma lista de ingredientes, um título e NENHUMA instrução. Essa cozinha intuitiva, aprendida com a observação, com o cozinhar junto e absorver a experiência dos outros, é a coisa mais difícil de se conseguir hoje em dia. Mesmo. Demorei quinze anos para fazer pão sem medida nenhuma, ou pra saber quantos maços de espinafre cru equivalem ao bastante dele cozido para encher uma torta. Ou quanto de cada especiaria colocar no meu curry improvisado para aquela quantidade de lentilhas.
Mas todo mundo chega lá. Tamar Adler e M.K. Fisher me ajudaram muito nisso. E não desperdiçar nada foi o empurrão que eu precisava para continuar. Porque há momentos em que simplesmente não há receita de livro ou de internet que use o desconjunto absurdo de ingredientes e sobras do fundo da sua geladeira, e você tem que simplesmente se jogar e inventar alguma coisa, ao contrário de fazer o que eu fazia há anos atrás, que era sair ao mercado para comprar dez itens que compusessem um prato com aquela uma berinjela na geladeira. O que isso faz é gastar dinheiro e criar mais sobras. E você continua preso à receita. Eu costumava recalcular receitas para fazê-las todos os dias só para duas pessoas, quando não tinha filhos. Hoje, adoro preparar receitas que alimentam seis ou oito bocas, porque sei que terei muitas sobras para reaproveitar e que me pouparão MUITO tempo e trabalho nas próximas refeições.
A melhor coisa é se jogar na aventura de combinar o que tem disponível, usando o que você já sabe fazer como inspiração. Às vezes fica muito bom. Às vezes sua família que te ama come por pura educação (muitas vezes). Outras vezes, na tentativa de não desperdiçar cascas de bananas, você usa vários outros ingredientes para criar algo tão pouco comestível que tudo vai para o lixo mesmo assim, e você se sente uma nhaca, mas aprende que aquilo, daquele jeito, não dá muito certo e não faz mais. Não se sinta mal se ficar ruim. Noutro dia, ao invés de ler livros, Thomas me pediu para contar histórias de todas as comidas ruins que eu já preparara na vida. Olha... dava para virar a noite contando. Muitas dessas histórias viraram piadas de família. Ria, coma como for possível (ketchup serve pra isso), aprenda, siga em frente.
Mas quase sempre, tio Google está aí para receber com carinho as perguntas mais escalafobéticas no seu celular, enquanto volta da escola com as crianças já tarde, sabendo que daqui a uma hora o jantar precisa estar na mesa e que você não tem a mais parca ideia do que fazer: "O que fazer com 1 xícara de curry + 1 batata + meio pepino?" Sempre vai ter uma bizarrice por aí que sirva pelo menos de inspiração para aquela comida virar algo bom e não ir para o lixo.
Senão, quase tudo pode ser transformado em sanduíche.
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ALGUMAS DICAS ÚTEIS E IMPERTINENTES...
Se sobrar tanta salada de batata, que não dá para comer tudo no dia seguinte, coloque tudo dentro de uma boa e velha torta de liquidificador ou transforme em um purê e junte a ovo e farinha e fermento e frite como panquequinhas em manteiga. Se sobrou super pouco, tipo mal dando pra uma pessoa, junte abacate, tomates, pepinos e alface, tempere com azeite e limão e se esbalde (foi meu almoço hoje).
Sobras de verduras ficam ótimas não só em frittatas, mas em massas de panqueca americana, sem açúcar. Tempere com sal e pimenta, misture às verduras à massa e frite. Comecei a fazer isso inspirada nessas blinis de agrião, que usavam fermento biológico.
Quando compro verduras e legumes a mais, pego um momento ocioso e preparo todos de um jeito básico: as folhas de rabanete já estavam refogadas e guardadas num potinho, esperando uso ao longo da semana.
Clafoutis de acelga suíça com milho. |
Moral da história: ADAPTE. Adapte o quanto puder. Use o que você já sabe e confie mais nisso do que na receita. Substitua livremente ingredientes que você sabe que têm propriedades semelhantes uns com os outros. Esse clafoutis ficou um desbunde, super cremoso e saboroso, e eu tive de prometer sorvete de sobremesa para fazer as crianças pararem de se servir para que sobrasse um teco pra marmita do Allex no dia seguinte (que foi clafoutis e o que sobrou daquela salada de batata roxa).
O tempo é pouco? Salada. Salada no prato transforma uma omelete em refeição. Uma fatia grande de pão dourada do azeite, coberta com os legumes que sobraram de ontem vira refeição com uma salada do lado. Sempre tenho alface em casa e sempre tenho mostarda. Um vinaigrette de azeite, mostarda de dijon, vinagre, cebola picadinha, salsinha e cebolinha faz algumas folhas de alface ficarem robustas e satisfatórias, e é sempre assim que sirvo, pois é meu vinaigrette favorito e combina com tudo o mais que possa acompanhar o alface: o último rabanete da gaveta, cenoura ralada, um teco de pepino, umas batatas cozidas, o meio tomate que alguém esqueceu na geladeira, o talo de salsão.
Qualquer coisa vira refeição com uma salada do lado. |
(Aliás, uma das coisas que mais me entristece nessa onda do sem glúten - a moda, e não sobre quem é de fato celíaco - é o fato de o pão ter sumido das mesas. Nada completa mais um prato que uma fatia de pão, sabem bem os povos lá do Mediterrâneo. Fez o panelão de comida, achou que é pouco? Uma bela fatia de pão dourada em azeite, esfregada com um dente de alho, vai bem com qualquer coisa, principalmente se houver um molho ali esquecido no prato, pronto para ser absorvido pelo miolo do pão.)
Foram vários os dias de férias em que almoçamos milho grelhado e... uma salada de tomates. As espigas eram imensas e saborosas, e não precisavam de nada além de manteiga e sal. Os tomates vieram apenas para arrematar.
Faça crepes. Montes. O recheio que se coloca neles é super pouco (duas ou três colheres de sopa por crepe?) e faz a sobra de qualquer carne ou legume parecer algo novo e delicioso. Rende, e se sobrar, você pode servir com limão, açúcar e canela de sobremesa no dia seguinte, mesmo que a massa de crepe não leve açúcar. Ou enrolar com alface, queijo e maionese e cortar em rolinhos, e mandar de lanche para as crianças, como wrapps. Ou servir de sobremesa com sorvete e frutas. Ou congelar. Quando estiverem frios, coloque num ziplock e congele. Eles reaquecem na frigideira, um por um. Sobrou arroz e curry? Fica ótimo dentro dos crepes. Sobrou algo mais italiano, recheie os crepes, cubra com molho de tomate, queijo e forno.
Enfim, faça crepes. Muitos.
Use a água de cozimento das coisas. Branqueou verduras? Use a mesma água para fazer o arroz, que ficará perfumado e nutritivo. Algumas verduras, como espinafre e acelga suíça, deixam a água metálica e preta se deixar que esfrie, então use a água ainda quente imediatamente.
Acelga suíça gratinada, arroz cozido na água da acelga, e a boa e velha salada de tomates. |
Se não tiver nada com muita cara de elemento principal, gratine. Pegue sua verdura ou legume, meta no forno com um pouco de queijo e é isso. Esse gratin de verdura do Nigel Slater nada mais é do que verdura branqueada, coberta com um pouco de creme, mostarda e um punhado de queijo. É muito bom. E o creme que sobra no fundo da travessa fica SENSACIONAL sobre o arroz.
O feijão branco que eu descongelei, o molho de tomate que eu tinha pronto, um ovo para cada um cozido ali dentro. Achei pouco, então completei com uma fatia de pão e uma abobrinha refogada. |
Legumes refogados fazem uma porção de macarrão de ontem alimentar três bocas hoje. |
Descomplique.
Sabe arroz? Sabe feijão? Tá ótimo!
No fim das contas, depois de toda a loucura de ingredientes e cozinhas internacionais, e vegan-gluten-free-natureba pela qual minha cozinha passou, sempre que pergunto a meus filhos e meu marido quais são seus pratos favoritos de todos os tempos, a resposta é unânime: arroz, feijão, couve e ovo frito. (Com um empate técnico com spaghetti com molho de tomate.)
Simples é bom. Dá um abraço no simples e convida pra ficar, que ele é seu melhor amigo e você nem sabia.
Agora, GO CRAZY com esse clafoutis. Adorei as proporções do creme, e pretendo usar essa receita mais vezes com outros ingredientes. A quantidade de recheio parece imensa em relação ao creme, mas acho que foi isso que ficou tão bom. Você pode fazer numa travessa maior, mas isso quer dizer que vai cozinhar mais rápido: você QUER que ele fique CREMOSO, e não firme como uma frittata, e por isso gostei de assá-lo numa travessa pequena de paredes altas. Dourou em volta mas não ressecou por dentro. A receita está exatamente como fiz. Deixei na lista de ingredientes apenas o que considero "obrigatório", e meti nos processos a sugestão do que eu coloquei ou colocaria. Essa receita está escrita exatamente como eu penso, com todos os pensamentos que me ocorreram enquanto preparava a receita, de como poderia modificá-la ou adaptá-la.
Divirta-se.
CLAFOUTIS DE VERDURA E MILHO VERDE
(do NY Times - receita original AQUI.)
Ingredientes:
(creme)
- ¾ xic. leite
- ¾ xic. de crème fraìche, creme de leite, iogurte, sour cream ou uma mistura de quaisquer deles
- 4 ovos grandes
- 2 ½ colh. (sopa) farinha de trigo
- salsinha picada a gosto ou qualquer outra erva que você goste e que combine com os seus legumes
- sal a gosto (a receita original dá uma medida exata, mas isso vai depender muito do quanto você salgou seus legumes e de quão salgado é o queijo que está usando - experimente)
- pimenta do reino a gosto
- 1 xic. queijo ralado grosso (o que você tiver)
- um fio de azeite para refogar os legumes ou um naco de manteiga
- 1 alho poró grande, ou uma cebola em rodelas ou meias luas finas
- 2 xic. de milho verde fresco debulhado ou congelado (umas 2-3 espigas)
- 1 dente de alho picado
- 1 maço grande de acelga suíça, cortada grosseiramente (ou rasgue com a mão, em pedaços médios, como você rasgaria um pilha de contas vencidas - haha!) ou qualquer outra verdura verde escura que seja mais suave, como espinafre, folhas de mostarda ( se você gosta de amargo, acho que almeirão deve ficar ótimo e eu faria até mesmo com couve, branqueada antes de refogar, talvez, para que fique bem macia.)
- Pré-aqueça o forno a 190oC. Unte com manteiga * uma forma refratária com capacidade para 2 litros (a minha quadrada tem 20cm e 5cm de altura).
- Numa frigideira, aqueça o azeite ou manteiga ou qualquer gordura que esteja usando e junte a cebola ou alho-poró e uma pitada de sal para que eles liberem um pouco de água e não queimem antes de dourarem.
- Quando estiverem brilhantes e macios, junte o alho. Refogue, mexendo com uma colher de pau (sabe por que se pede colher de pau? Pra não riscar sua panela.) até que esteja tudo macio e começando a dourar.
- Junte o milho, uma pitada de sal (se quiser, um nadinha de pimenta calabresa fica ótimo), e mexa, recobrindo bem o milho com os temperos.
- Junte as verduras cortadas, uma pitada de sal para ajudar a murchá-las, misture, e cozinhe em fogo mais baixo até que as folhas estejam murchas e brilhantes. Cuidado com o fogo para não queimar as cebolas enquanto as folhas murcham por cima (já fiz isso várias vezes). Quando estiver tudo cozido, tire do fogo, experimente, acerte o sal e a pimenta a seu gosto e deixe de lado.
- Numa tigela grande, bata os ovos com um fouet até que espumem um pouco. Junte o creme (ou a mistura que estiver usando) , o leite, e misture. Junte a farinha, misture com o fouet até que ela esteja incorporada, sem pelotas, e então o queijo. Salgue cuidadosamente, pensando em quão salgado é seu queijo. Junte a salsinha e quaisquer outras ervas, pimenta-do-reino e, se quiser, um pouco de noz-moscada ralada na hora, que vai bem com tudo que leva ovo, mas que não é obrigatório. Experimente e corrija o tempero.
- Espalhe os legumes na travessa e cubra com o creme, dando uma cutucada para que o creme escorra por entre os legumes e para que os legumes flutuem um pouco no meio do creme e do queijo. Leve ao forno por 40 minutos, checando de vez em quando, dependendo do tamanho da sua forma. Quando estiver dourado nas bordas e parecer inflado e firme no meio, enfie uma faquinha no centro. Ele vai desinflar, mas a faca deve sair úmida e pegajosa de queijo. Se estiver completamente molhada e pingando, ainda está cru, e se estiver completamente limpa, assou demais - mas ainda vai ser gostoso, então nem comente nada e simplesmente tire do forno e manda o povo sentar pra comer.
- Retire, espere uns cinco minutinhos para não queimar a boca de ninguém, e sirva com uma salada.
* Um truque que aprendi com a Nigella: guardar os papéis que embrulham a manteiga para esfregar nas formas, assim você não gasta a manteiga para isso. Tenho um saco plástico na geladeira apenas para guardar as embalagens de manteiga até a hora de untar alguma coisa - a louca.