segunda-feira, 11 de abril de 2016

Grão de bico com pimentões e tomates assados, um celular quase perdido, uma vida que é só minha



Depois de dois meses atordoada com um imprevisto atrás do outro, sem conseguir controlar minha agenda ou seguir com sequer meio planejamento, com idas a hospitais, a dentistas, gripes acachapantes e um sem número de eventos que me deixaram de cabelo em pé, os nervos à flor da pele e um estômago queimando de gastrite nervosa, eu decidi que era hora de simplesmente abrir mão.

Naquela manhã eu disse à mim mesma que eu não me importava mais. Que não me deixaria descontrolar pelos imprevistos da vida, e que deixaria as intempéries virem e irem sem me deixar afetar tanto.

E depois de tudo o que já havia acontecido nos últimos sessenta dias, quando me inclinei para beijar a testa do meu filho na natação e meu celular escorregou da bolsa e mergulhou com um sonoro "BLUMP!" no fundo da piscina, só consegui rir, divertida com o alvoroço das pessoas à minha volta, compadecidas por minha perda e desesperadas em apanhar de volta aquele que costuma ser um enorme pedaço de suas vidas.

Olhando aquele celular embaixo do azul da piscina, borbulhando devagar, surpreendi-me ao sentir alívio. Eu vinha pensando em como era a vida na época em que eu esquecia meu celular desligado o tempo todo – e tomava bronca da família e dos amigos por isso – ou como era quando ele não tinha internet.

Àquela tarde, dirigindo para São Paulo e ouvindo rádio Cultura, uma música de Gabriel Fauré imediatamente me transportou para minha juventude, a época em que eu tocava violino e minha melhor amiga na época, flauta transversal, e tentávamos tocar juntas essa melodia, atrapalhadas, errando o tempo.

E lembrei-me de como eu era, de quem eu era, do que era importante para mim e como aquilo se perdera ao longo do tempo, influenciada pelo que eu julgava se tratar de amadurecimento, mas que na verdade era eu me perdendo no meio das cobranças por uma vida que não era a minha.

Minha única responsabilidade é educar meus filhos para que eles sejam pessoas boas e independentes. E garantir que eles tenham todos os dias um prato de comida à sua frente e um teto sobre suas cabeças. Todo o restante pareciam cobranças por comportamentos que não tinham nada a ver comigo ou com minha visão de mundo. Tudo aquilo que me estressava e fazia meu estômago queimar tinha a ver com o que o mundo esperava de mim e não com o que eu queria de mim mesma.

Eu só preciso ser a artista que eu sou.
Eu só preciso ser a mãe que eu sou.
Eu só preciso ser a pessoa que eu sou.
O tempo é meu.
De ninguém mais.

E aquela música suave retumbando em minha mente. As cobranças são sempre acerca dos resultados. Resultados, resultados... Mas eu sempre fui uma pessoa apaixonada pelos processos. O processo de aprender um instrumento. O processo de aprender um idioma. O processo de transformar uma imagem em uma pintura. O processo de apreender a realidade de um rosto em um desenho. O processo de fazer um pão. A vida lenta envolvida no ofício do artista que pára e observa. A observação de uma paisagem, de folhas ao vento, de músculos contraindo e relaxando no movimento, a observação dos sons à minha volta e da sinfonia que cada ruído individual ajuda a completar.

Eu nunca fui uma pessoa focada em resultado. Quando comento isso com meu marido, ele ri, dizendo que estou atestando o óbvio.

Talvez minha facilidade em girar sobre os calcanhares e mudar de caminho quando bem quero venha disso. E quão difícil é viver numa sociedade voltada para o resultado. Quando você tem que mostrar uma obra pronta que demonstre o resultado do seu estudo, mas não se dá o tempo do estudo porque ele não parece conter a importância do resultado que se pode mostrar. Quando você tem que mostrar através do sucesso dos seus filhos o resultado dos seus esforços de criação, e se sente uma mãe ruim quando seus filhos não têm atestados de que estão em primeiro, de que estão melhores que os outros, de que estão fadados a virar presidente do mundo. Quando sua conta bancária e seu número de seguidores nas redes sociais é seu atestado de uma vida de sucesso, um resultado palpável, mensurável, comparável, e você precisa necessariamente fotografar a si mesmo rindo para ter certeza de que o resultado daquele momento de esforço em se divertir de fato foi diversão.

Todas as vezes que persegui o resultado fui infeliz. Não por não obtê-lo. Mas porque perseguir um resultado é ignorar a fluidez da vida. A vida não é uma série de resultados. Ela é um processo. Estar no processo é estar imerso na vida enquanto ela acontece. Eu não leio livros para terminá-los. Eu gosto de lê-los. Apenas.

Aquela música deliciosa em minha mente me lembrou da época em que eu não me sentia massacrada pelas responsabilidades de gerir o que eu julgava ser uma vida adulta correta e simplesmente me preocupava em estudar violino porque era o que eu amava aprender, descobrir, entender. Eu não queria tocar em uma orquestra. Eu sequer queria tocar para os outros. Era para mim. Era sentir meu cérebro expandir e relaxar toda vez que eu finalmente ENTENDIA aquela melodia. Eu gostava de estudar. Sempre gostei de estudar.

É aquilo que eu mais amo hoje quando estudo desenho e pintura. Quando o tempo pára e eu estou naquela imagem, na resolução daquele problema, completamente mergulhada no processo de compreender como o modo como seguro o lápis afeta a compreensão do peso e da massa daquela figura. Como eu preciso mudar o jeito como enxergo um rosto para poder retratar os pensamentos por trás daqueles olhos. É um processo lento. Exaustivo às vezes. Um caminho de observação e disciplina. Mas que me faz sentir que estou no mundo e que aquele meu tempo está valendo a pena. Estou compreendendo o mundo através daquele desenho. Observando. Sem me preocupar com o resultado do desenho. Se vai ficar bonito ou feio. Certo ou errado. Porque quando me preocupo com o resultado, eu me engesso, eu me preocupo com o certo e o errado, o bonito ou feio, e paro de prestar atenção ao que aquele desenho pede, preocupada em como aquele desenho será julgado.

Se preocupar com o resultado é se preocupar com o que os outros pensam de você. E preocupada com o resultado da criação dos meus filhos, com o resultado dos meus esforços profissionais, com o resultado dos meus esforços em gerir uma agenda complexa e cheia de imprevistos... eu me vi atropelada pelas cobranças. Cobranças que me impediam de relaxar e cuidar da vida que é minha de verdade, cobranças que me impediam de observar com cuidado, cobranças que me impediam de sentar e ler um livro, que me impediam de simplesmente estudar sem me preocupar com quantas obras prontas serão vendidas, cobranças que me faziam enxergar apenas o que eu não estava conseguindo fazer, ao invés de ver tudo o que eu já estava fazendo.

Eu parei de me divertir.

A vida tem que ser divertida. TEM QUE SER. Senão, o que estamos fazendo aqui?

Quando o professor de natação me devolve meu celular encharcado, quase me pego triste em ver que, milagrosamente, ele ainda está funcionando. As pessoas em volta continuam preocupadas com aquele tijolinho de plástico na minha mão. Sorrio, agradeço, enxugo o celular com uma toalha, com preguiça de abri-lo como me recomendam, e enfio o bicho de volta na bolsa.

O celular continuou funcionando enquanto eu comia biscoitos de polvilho e conversava com minha mãe, levantando os olhos às vezes para ver o pimpolho nadando, contente.

No dia seguinte, acordo com a certeza de que terei um dia bom. Passo tempo com minha filha na aula de música da escola, vou tomar um café com as mães da escola sem me preocupar uma eficiência mecânica de quem trabalha em escritório, e dou um pulo no mercado para comprar linguiças para fazê-las assadas com cebolas, pimentões e batatas, aquela receita feita pela terceira ou quarta vez do livro Easy do Bill Granger, um dos que mantive na estante com prazer. O almoço é delicioso e exatamente o que eu queria, acompanhado de suco de maracujá feito na hora. Um almoço de dia de sol, com todos os amarelos e vermelhos vibrando no meu prato.

Basta colocar as linguiças, pimentões fatiados, cunhas finas de cebola, um fio de azeite, sal, pimenta, e um pouco de sementes de erva-doce em uma assadeira e assar em forno médio por 45 minutos ou 1 hora. Tempere com vinagre balsâmico, folhas de manjericão e sirva. Eu costumo colocar batatas em pedaços pequenos, previamente cozidas por uns dez minutos, para cozinhar junto até que dourem. 

Enquanto as crianças cochilam na rede, sovo rapidamente um pão de fermentação natural. Resolvo alguns emails de trabalho. E quando as crianças acordam da soneca, vamos passear de bicicleta. Eles com suas pequeninas, eu com a que peguei emprestada de minha irmã. Delícia andar de bicicleta, isso que eu não fazia desde a infância. O vento no rosto, as crianças apostando corrida e passando voando por sobre as lombadas da rua. Minha mente livre de cobranças e sobre o que eu deveria ou não estar fazendo. Quem gere o meu tempo sou eu.

"Mamãe, quero ir ao parquinho!"

Vamos. Levo um livro. Sento no balanço e de repente me dou conta de que o celular ficou em cima da mesa da sala. Dou de ombros, abro meu livro e leio. Hemingway. Paris é Uma Festa. As crianças sobem e descem pelo escorregador, e pelas escadas de cordas, e fazem castelos de areia, e colecionam pedras e gravetos. Eu leio meu livro, deliciada pela história de uma vida em Paris, numa época calma. De um artista dizendo que escrevia pela manhã e saía para passear à tarde com a esposa. E relatos de caminhadas na montanha, e jantares em bistrôs, e idas às corridas de cavalos, e conversas com outros artistas sobre literatura, e pintura, e escultura, e teatro e o ofício de artista.

Sinto o sol nas minhas costas, esquentando a pele sob a camiseta. Meus dedos dos pés tocam a areia abaixo de mim e se movimentam, empurrando o balanço para frente e para trás, devagar e suavemente. Uma cigarra canta insistente à minha direita. Tão insistente de fato, que mal chega aos meus ouvidos o ruído dos carros na rua ao lado. Sem o celular, não sei que horas são ou há quanto tempo estou ali, a não ser que preste atenção ao tom de amarelo-dourado da luz sobre as páginas do livro ou o modo como as sombras se movimentam e estendem na areia onde as crianças brincam.

A fome indica que é hora de preparar o jantar.

Voltamos para casa e Laura empurra uma cadeira para frente do fogão para me ajudar. Ela mexe o risotto, concentrada, por vinte minutos, enquanto eu pico as vagens e o pimentão amarelo e acrescento caldo ao arroz. Tento ensiná-la a pronunciar o "r" forte do risotto, mas ela ainda tem dificuldade e nos últimos dias tem arrastado seus erres com um forte sotaque do interior que só posso acreditar ter vindo dos amigos e que me diverte horrores.

Enquanto o risotto descansa na panela tampada, deito na rede. Laura pede para ler para ela o seu livrinho de cozinha favorito, aquele de bolos italianos de avós, todo ilustrado. Passo dez minutos lendo em voz alta receitas em italiano, enquanto ela observa a noite caindo, deitada na rede comigo. Thomas está em algum canto passando tempo com o pai que acabou de trabalhar.

Jantamos e as crianças sentam com o pai para ver desenhos japoneses enquanto asso meus pães para o dia seguinte. Elas vão dormir mais tarde que o habitual e capotam sob os lençóis no meio da primeira história que lhes leio.

Abro uma cerveja. Suspiro contente quando deito na rede novamente, sentindo o frescor da noite no rosto e ouvindo o silêncio das aranhas no jardim.

Um dia bom.

Penso num café filosófico que assisti outro dia, sobre a beleza. "Com o que você está alimentando sua mente?", diz ele. Se você só se alimenta de feiúra, você perde a habilidade de ver a beleza sutil da vida. Com o que você está alimentando sua mente? De feiúra do facebook? De idiotices? De música ruim? De cobranças estúpidas?

Apanho meu livro novamente, minha cerveja, meu pedaço de pão quente fresquinho com manteiga. Decidida de me alimentar de beleza em minha vida, decidida a aproveitar os minutos que tenho nessa terra sem me preocupar se acham que sou uma artista assim ou assado, uma mãe desse jeito ou de outro, decidida a enxergar a beleza à minha volta e colecionar em meu peito essas memórias de uma vida boa.

Sinto alívio em ter eliminado o Facebook. Sinto alívio quando esqueço o celular em cima da mesa. Sinto-me feliz ao sentar e ler como lia antes, ao invés de ser sugada para o mundo da internet, da tv, do youtube. Sinto prazer na tentativa de não me cobrar mais por resultados. Prazer em mergulhar tão fundo na observação e no processo, na lentidão da vida de verdade, sem me preocupar se isso vai me trazer mais ou menos dinheiro, mais ou menos sucesso, mais ou menos amigos. Sinto um peso enorme arrancado dos ombros ao ver as coisas vendidas indo embora e meu ambiente ficando mais leve. Sinto-me justamente leve ao preparar novamente, oito anos depois (antes sozinha agora com minha filha me ajudando), aquele mesmo risotto de pimentão amarelo e vagens da Marcellla Hazan, que andava esquecido, soterrado por outros livros.

Fico contente em ver que aqueles "poucos" livros que selecionei para ficarem comigo estão sendo plenamente úteis enfim. Quando tenho grão-de-bico e pimentões para usar no jantar, apanho o livro que ficou do Nigel Slater, que sempre foi meu favorito dele, Notes From the Larder, e faço esses pimentões e tomates assados com grão-de-bico e harissa, deliciosos. Uso de inspiração as verduras e o limão em conserva que ele sugere e preparo uma farofa de couve temperada com suco de limão, deliciosamente amanteigada, e verde, e ácida para contrabalançar a doçura do grão de bico.

Fico feliz em ver a família raspando o prato. Fico feliz em me ver capaz de enfim relaxar e ter dias tranquilos, sem me estressar com minha agenda auto-imposta, sem me destemperar com os imprevistos da vida. Fico feliz em desviar os olhos dos fins para me concentrar nos meios novamente. Em lembrar que eu sou dona do meu tempo e que, estando meus filhos bem, nada mais importa, e eu posso me preocupar em amar minha vida. Fico feliz olhando para um celular debaixo d'água e sabendo que é só um celular, e que talvez perdê-lo ou vislumbrar essa possibilidade fosse a melhor coisa que poderia acontecer.



GRÃO DE BICO COM HARISSA E PIMENTÕES E TOMATES ASSADOS
(livremente adaptado do livro Notes from the Larder, de Nigel Slater)
Rendimento: 4 porções generosas

Ingredientes: 

  • 800g tomates, cortados em seis pedaços
  • 500g pimentões amarelos e vermelhos, cortados em pedaços médios
  • 1/3 xic azeite
  • 3 colh. (sopa) vinagre de vinho tinto (usei de sidra)
  • 1 colh (chá) sementes de cominho
  • 2 latas de 400g grão de bico ou o equivalente em volume de grão de bico cozido em casa
  • 1 colh (chá) harissa (o que eu tenho em casa é em pó – alguns são bem apimentados, então acrescente a gosto)
  • um punhado de manjericão fresco


Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Num refratário grande, coloque os tomates, pimentões, vinagre, azeite, cominho, sal e pimenta. Misture e asse por 50 minutos a 1 hora, at´´que os legumes estejam bem macios e comecem a dourar e chamuscar. 
  2. Junte o grão de bico escorrido e a harissa e volte ao forno por mais uns dez ou quinze minutos, até que o grão de bico esteja quente e o caldo borbulhante. 
  3. Junte o manjericão, acerte o tempero e sirva com arroz, pão ou uma farofa de couve com limão.


Para a farofa, basta refogar alho e cebola em azeite, juntar a couve fatiada bem fininha, com sal e pimenta a gosto e refogar até que a couve murche. Junte uma colherada bem generosa de manteiga e a farinha de mandioca e misture até a farinha dourar. Tempere com suco de limão a gosto.








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