terça-feira, 21 de setembro de 2021

Uma cozinha que não é só minha, uma costela que não tem receita, e uma sopa de lentilha que não tem foto

 

Estou sentada em minha cadeira Muskoka de imitação (que eu queria muito que fosse de madeira, mas é de plástico), bebericando uma cerveja, e sentindo a última brisa morna do ano tentando virar as páginas do meu livro. "O cheiro do carvão em brasa parece incenso", diz minha vizinha, sempre simpática, ao descer as escadas de sua varanda para catar o gato velho e gordo de volta. Os galhos dos pinheiros se movem devagar. Allex desce os degraus de madeira, rangendo cada uma das tábuas que balançam para lá e para cá com seu movimento, e traz nas mãos um caixote plástico com pratos, facas, tábua de madeira, um pacote de linguiças frescas embaladas em papel de açougueiro, e um outro pacote, maior e mais delicado, contendo seu mais novo projeto de fim de semana.

Ele espalha tudo sobre a mesa com um sorriso concentrado, e vai cuidar do carvão aceso, que precisa ser reordenado na churrasqueira. Tento ler mais umas linhas, enquanto ele abre o pacote especial, revelando uma fileira de costelas de porco cruas, besuntadas em mostarda de Dijon e especiarias. 

"Tá se divertindo?", pergunto. 

Ele responde afirmativamente, e começa a me explicar seus planos para aquela peça. Ele apanha pedaços de madeira de molho em água e cobre o carvão quente, produzindo uma fumaça perfumada. Vou defumar a carne por uma hora, ele diz, e depois besuntar em Guinness e Maple Syrup e embrulhar em papel alumínio. 

"Parece bom. Era o que pedia a receita?"

"Uma delas."

"Eita. Você misturou mais de uma receita?'

"Confia em mim."

Eu resisto à tentação de opinar. Encho a boca de cerveja para engolir as palavras, e abro de novo meu livro, procurando um parágrafo perdido. Entre uma vírgula e outra, ergo a vista para observá-lo, em silêncio. 

Não é novo, esse interesse pela cozinha. O que é novo é minha não-interferência. Ele me pergunta de temos sementes de coentro, e que cara elas têm. Todos os potinhos da despensa têm sementes bege sem identificação. Fora isso, não me atrevo. Já aprendi que se eu dou sossego, ele cozinha mais. E se ele cozinha mais, eu tenho mais sossego. O ciclo Tostines da paz matrimonial. 

 

Antes da costela, foi o Chili con Carne. Minha única contribuição foi sugerir uma receita da Deb Perlman, sempre confiável. Ele passou o dia sendo babá da panela, e eu passei o dia tranquila, fazendo já nem me lembro o quê de tão importante. Para não dizer que não fiz nada, me propus a preparar os cheddar biscuits, dos quais ele não fazia questão no começo, mas que acabaram sendo um maravilhoso acompanhamento para um Chili delicioso.  

Antes ainda, veio o ragù bolognese, da Marcella Hazan, que ele já preparava em quantidades cavalares lá em Toronto, e tínhamos sempre molho congelado para comer com macarrão ou polenta durante o mês. Foi na época do ragù que o moço aprendeu a fazer Lasanha, a massa verde e tudo, e pegou gosto pelo processo de fazer massa fresca. Tanto, que no último ano, fez mais massa que eu.

Entre um festim carnívoro e outro, houve muitos hambúrgueres vegetarianos e pratos prontos e entregas, que resolveram meus dias atrapalhados e cansados sem que eu precisasse pedir. Tê-lo em casa em caráter permanente (pois a empresa manteve o home office), provocou uma mudança de ritmo e expectativas, e, de repente, a casa e o trabalho e as crianças têm um equilíbrio inusitado, mas muito desejado. A roupa aparece lavada, o chão aparece varrido. As crianças não chamam só a mamãe.

Pela primeira vez em muito tempo, eu tenho tempo de verdade para trabalhar. E descansar.


Ele corta uma pontinha da costela a pedido meu, e acha que é hora da fase dois. Pincela o molho sobre a carne dourada, e fecha o pacotinho de alumínio para ficar úmida e macia. "Corta essas linguiças fininho pra gente, e eu vou pegar outra cerveja. Qual você quer?"

"Me surpreenda", é a resposta padrão, quando estou bem humorada. 

Ele sobe a passos felizes para dentro de casa, e eu relaxo contra o espaldar da cadeira. Perna cruzada feito o número 4, os cotovelos apoiados aos braços da cadeira, as mãos segurando o livro aberto, como se eu fosse um homem velho e barrigudo lendo o jornal de domingo na poltrona. Rio alto de uma tirada de Bourdain, no capítulo em que ele está num cruzeiro de luxo. A descrição dos seus bifes e risotos me dão vontade de cozinhar. Mas a vontade passa quando preenchem meu copo vazio com uma cerveja tipo belga do Quebec, e recebo um beijo estalado na boca. Sua cerveja, amor. Obrigada. 

Uma hora, muita conversa, e uns dois capítulos lidos depois, a costela se desmancha à volta dos ossos. Lambo meus dedos como uma criança. Minhas crianças fazem o mesmo. Não há sobras. Faço minha parte, quando o vento esfria e o fim da tarde nos expulsa do quintal, e recolho pratos e copos e condimentos até a cozinha. Ninguém janta. 

"Me passa a receita que você usou pra costela pra eu postar no blog?"

"Vixe, eu inventei tudo. São umas cinco receitas, maior bagunça. Faria tudo diferente."

"Que coisa."

Nas últimas conversas, eu ouço, interessada, seus próximos planos culinários. De repente um curry de legumes, para variar. Divirto-me com sua empolgação. Quisera eu ter sido menos chata e lhe ter dado espaço na cozinha anos atrás. Ele tem jeito para a coisa. Menos controle, menos crítica, e como teria sido ter jantar pronto no fim do dia? Agora eu sei. É bom. É muito bom.

No dia seguinte, enquanto ele leva as crianças ao treino de Jiu-jitsu, preparo no silêncio da casa que interrompo com minha música favorita, uma sopa de lentilhas vegetariana da Alice Waters. Tão boa, que Laura, que não gosta de lentilhas, e Allex, que não gosta de sopa, repetem. 

Se eu estava em busca dos mistérios dessa cozinha nova, encontrei. Reencontrei o prazer da cozinha, compartilhada. 

....


Se eu soubesse que essa sopa faria tanto sucesso, teria fotografado. Fazer o quê? Antes de ir para a receita, lembro você de que meu livro, Brutta Figura, continua à venda nas principais livrarias do Brasil, e para envio internacional, no site da editora, Chiado Books. Você encontra todos os links na lateral do blog. Minha loja Etsy continua funcionando, e lá, além de poder comprar originais e versões para download das minhas artes, você também pode encomendar caricaturas em preto-e-branco, e aquarelas para quarto de bebê. Além disso, se você quiser simplesmente colaborar como quiser para que esse blog continue funcionando, pode contribuir no meu PayPal (me pergunte como). Muita coisa legal vem por aí. Meu novo livro, cheio de histórias e, quem sabe, ilustrações também, está terminando de ser escrito, e já estou montando o tão pedido livro do Diário Ilustrado. Isso será possível com tempo, tranquilidade, e, claro, dinheiro de trabalhos realizados, livros vendidos e colaborações. Agora, sopa.

DELICIOSA SOPA DE LENTILHAS COM ESPECIARIAS

(do livro My Pantry, da Alice Waters)

Rendimento: 4 pessoas

Ingredientes:

  • 1 1/2 xic. lentilhas
  • 2 colh (sopa) azeite
  • 1 cebola pequena, picada
  • 1 cenoura pequena, picada
  • 1 talo de salsão pequeno, picado
  • Sal e pimenta do reino
  • 2 ou 3 dentes de alho, fatiados fino
  • 1 colh (chá) sementes de cominho
  • 3/4 colh (chá) sementes de coentro
  • 1/4 colh (chá) pimenta caiena
  • 2 litros de caldo de legumes, frango, carne ou água (usei água)
  • 1 maço de espinafre, apenas as folhas, grosseiramente rasgadas
  • Limão, para espremer
  • 1/2 xic coentro picado grosseiramente
  • Iogurte, para servir


Preparo:

  1. Aqueça uma frigideira e coloque as sementes de cominho e coentro, mexendo até que tostem ligeiramente e fiquem perfumadas, sem queimarem. Passe para um pilão e moa. Reserve.
  2. Numa panela grande, aqueça o azeite e junte a cebola, cenoura e salsão. Tempere com sal e pimenta e cozinhe em fogo médio, mexendo, por cinco a dez minutos, até que estejam macios. 
  3. Junte as especiarias e o alho e misture, até sentir o perfume do alho. 
  4. Junte as lentilhas, o caldo ou água, e mais uma pitada de sal. Leve à fervura, abaixe o fogo e cozinhe por 25-40 minutos, retirando a espuma da superfície com uma escumadeira. Quando as lentilhas estiverem macias e desmanchando, está pronto.
  5. Junte o espinafre, mexa, e cozinhe apenas até que as folhas murchem na sopa. Desligue o fogo, ajuste o tempero, e apenas antes de servir, esprema um pouco de limão a gosto, polvilhe com o coentro, e sirva com uma colher de iogurte no centro do prato. 



segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Você está pronta?


Na maratona de Toronto, em 2019, a piada era "Você está correndo tudo isso por uma banana!"

"Você está pronta?", perguntou Allex, com a câmera na mão, apontada para mim. A lente escura refletia um sorriso nervoso escondido pela máscara, e a lenta movimentação dos corredores pelo gramado, em direção às bandeiras que marcavam a largada. 

"Claro que não", respondi, sincera. "Mas quem é que está pronto pra qualquer coisa, de verdade?"

Um beijo. 

Boa sorte. 

A corrida aconteceu no Dundas Valley Conservation Area, um parque nos arredores de Hamilton, Ontario, no cinturão verde da Grande Toronto. Allex havia dirigido cinco horas e meia no dia anterior até o hotel ali perto, desde Ottawa, para que eu pudesse participar dessa corrida, que deveria ter acontecido em 2020, o ano cancelado. O ano em que quebrei um pé, torci um tornozelo, tive fascite plantar e fiquei seis meses sem correr. Mas ali estava eu, correndo. Devagar, "taking my time, pacing myself", olhando o formato dos troncos das árvores se entrelaçando sobre aquela trilha larga, aquela estradinha de terra e cascalho, ouvindo o pio dos passarinhos e o guinchar repetitivo dos esquilos, assustados com aqueles sessenta potenciais predadores fazendo barulho com seus tênis coloridos, suas garrafas d'água e o bater empolgado de palmas.

Já Foram 5km. Agora é só fazer isso dez vezes. Hahaha


O arco dos pés doía, mas não me deixei preocupar. Vai passar. É a tensão da viagem de carro e da noite mal dormida. Meu corpo se ajustava à corrida, como sempre se ajusta nos primeiros quilômetros. O quadril busca encaixe, os joelhos e pés sincronizam o girar dos ossos, estico o pescoço para olhar o horizonte de queixo erguido, e a coluna encontra seu prumo, como aqueles cursos de etiqueta feminina de 1950: chupa a barriga, contrai o bumbum; equilibra esse livro no topo da cabeça e vai, graciosa.

Graciosidade não é meu forte, mas perto do quilômetro dez, meu corpo entende que pretendo fazê-lo se mover daquela forma por muito tempo, e sinto os músculos dos ombros relaxando. É como uma onda num mar morno, descendo do pescoço à ponta dos pés. A tensão se dissolve e de repente não preciso mais pensar os movimentos. Eles acontecem, naturalmente, e minha mente dispersa para o verde molhado à minha volta. 

Faz 35oC. A estrada parece um rio, meus braços e pernas nadando da umidade do ar que encharca minha pele. A atmosfera densa é como areia movediça, pesando para baixo e me impedindo de prosseguir. A água que carrego comigo desaparece em minha boca e minha nuca. A equipe que organizou a prova está preocupada. A onda de calor veio inesperada. Médicos de coletes amarelo-fluorescente acompanham a trilha em bicicletas, procurando por quem possa estar passando mal.

Eles avisam que, pela primeira vez, quem quiser desistir da prova na metade vai ganhar medalha mesmo assim. 

Totem com corvo em Marmora, cidade onde paramos para almoçar.

Enxugo o suor no buff enrolado ao braço e sorrio. Vai dar tudo certo. Deu tudo certo até agora. A viagem até ali foi divertida. Contrariei os ímpetos de planejamento do marido e improvisei uma parada numa cidade desconhecida para almoçar. Boa pizza e sorvete no parque. Splash Pad para refrescar. Segue viagem. Deu tempo de pegar o kit de corrida antes de ir para o hotel. Hotel lindo, tudo novinho. Crianças felizes por poderem passear de novo, depois de quase dois anos. Pula na cama. Mas não tem piscina. Não tem, por causa do Covid. Precisa reservar horário, e é só uma família por vez, mas já está lotado. Pra hoje, só amanhã. Não são só as crianças que se decepcionam. Depois de tantas horas sentada no carro, eu queria flutuar em águas mornas para relaxar a musculatura antes de dormir. Enquanto buscamos  as mochilas no carro, penso: "Alguém vai cancelar, porque eu quero nadar hoje". De volta ao hotel, a recepcionista acena: "Houve um cancelamento! Posso botar o nome de vocês para a piscina às nove?"

Café da manhã dos campeões. Mingau de aveia e café.


Unagui, já disse Ross Geller. 

Piscina. Uma cerveja no pátio do hotel antes de dormir. Deu tudo certo.

Olho o visor embaçado do relógio: 11km e tudo vai bem. Tudo deu certo e vai continuar dando certo. O calor não vai ser um problema. Vai na manha. Bebe água. Come a primeira bananinha. Bananinha, aquele doce de banana escuro recoberto de açúcar, com gosto de infância brasileira, e que minha mãe sempre traz ao Canadá aos montes, porque é um bocadinho maravilhoso para comer durante as corridas longas, quando a energia baixa. Uma bananinha a cada 10km, como fiz na Maratona de Toronto.

Pronto, olha que maravilha. Nem parece que você está subindo uma ladeira. Está indo tudo bem. Seu tempo está ótimo. Você vai terminar a prova. Mas não, não pensa em terminar a prova. Falta muito ainda, se você ficar pensando em quanto falta, vai entrar em pânico. Não, só precisa chegar até a próxima estação de água. Um pedacinho por vez. Assobio enquanto corro, como sempre faço, para manter a velocidade constante e a respiração regular. E porque é divertido. Segundo meu filho, é preciso se divertir na vida enquanto você está vivo, ou quando você morrer, sua vida terá sido muito chata. Sábio Thomas. 

"She's a maniac, maniac, oh no no. And she's dancing like she's never danced before!"

Canto alto. Não há ninguém à minha volta. Aos 15km, os corredores dispersaram pela trilha. Às vezes ultrapasso um. Às vezes uns dois vêm na direção contrária, já no retorno da primeira volta. "Good work!", eles dizem. Com o tempo, esses encontros ficarão mais motivacionais, entre respirações entrecortadas: "You're doing great! Keep on going!". 

A Foxtail Hundred é a prova de trail running mais reta do Canadá. Reta no percurso e na altimetria: apenas 189 metros de elevação total, numa estrada de terra bastante larga, muitas vezes aberta ao sol. O que quer dizer que ela não tem montanhas nem ladeiras íngremes. Excelente para iniciantes. Não fosse pelo calor. A largada aconteceu no meio do percurso, e a prova consistia em idas e voltas. Uma ida e volta até uma estação de água a 5km de distância, e outra ida e volta até a outra estação a 7,5km, totalizando uma volta de 25km. Cada corredor faria quantas voltas fossem necessárias para completar a distância em que se havia inscrito. Havia pessoas cruzando meu caminho que completariam 100km. Outras, 100 milhas (160km) e algumas 50 milhas (80 km). Eu me sentia café com leite. Eu e mais trina e quatro outros corredores faríamos o percurso duas vezes, totalizando "apenas" 50km. 

Você só precisa chegar na estação de água, pensei. São só 7,5km. Você faz 7,5km. Olhe a floresta na ravina. Ouça o Cardinal e o Chickadee. Você está aqui. Fique aqui. Fique agora. Não deixe a mente dispersar para problemas que não estão aqui. Não pense em depois. Não pense no que foi. Sinta os cascalhos sob os pés. O cheiro da terra quente e do carvão fumegando num quintal distante. As cigarras estão cantando. Há um pica-pau preto-e-branco, com um desenho intrincado nas penas das costas, no alto de um carvalho jovem enrolado em videiras carregadas de uvas selvagens azedas demais para se comer. 

"Good job!", sorri uma mulher numa bicicleta, passando por mim. "É uma corrida?", pergunta uma senhora pequena, curiosa com a bandeirola cor-de-laranja pendurada num galho de árvore ao lado da estrada. 

A estação de água parece um oásis. Esvazio o resto da minha garrafa sobre minha nuca quente, e preencho metade dela com uma bebida isotônica sabor artificial de laranja. Consigo sentir os sais minerais preenchendo lugares vazios em meu corpo. A equipe oferece gelo, para abaixar a temperatura do corpo. Enrolo uns pedaços no buff, que vai ao redor do pescoço. O gelo apoiado à nuca me provoca arrepios. Apanho mais umas outras pedras e, rindo deslizo para dentro do top. Ar condicionado pessoal. Tchoc, tchoc, tchoc, faz o gelo dentro do top. Não faz mais sentido ficar de camiseta. Arranco a regata que me pesa e amarro à pochete que carrega a garrafa, o celular e as bananinhas. Há muitos anos que não estou na minha melhor forma estética. Meu excesso sobra por cima do elástico da legging preta. Quem se importa? Meu corpo é forte e está correndo sob o sol, e por isso é lindo como ele é. Meu corpo funciona. Eu me lembro de quando ele não funcionou. Um corpo que funciona é maravilhoso.

Agradeço à equipe e começo a voltar para o meio do caminho, empolgada com a perspectiva de começar o segundo loop.

Aos 21km, corro solta, e meu corpo parece ter se conformado com a distância. Não há mais dúvida: minhas pernas sabem que vamos correr longe. Faço 25km em menos de três horas, o que é empolgante.Talvez eu consiga fazer 50km em menos de 6. Vamos ver. Talvez se eu acelerar um pouco. Isso, vou correr mais rápido. Olha só, estou indo super rápido. Pára. Pára tudo. Você está louca? Faz 36oC sob o sol do meio dia, e a última refeição que você fez foi um pratinho de mingau às nove da manhã. Vai com calma. Você nunca fez isso. O importante é terminar. E terminar bem, sem se machucar. Que é que tempo importa? O que você está tentando provar? E para quem? Isso é seu ego falando, tentando ferrar com você. Vai na manha. Está quente pra burro. Bebe água. Esfria o corpo. Vai. Na. Manha. Devagar e sempre.

Na estação da largada, do meio do caminho, há uma bica. Abro a torneira e enfio a cabeça inteira embaixo da água gelada, que resfria minha pele em ebulição e me acorda como café de manhã. É como se tivesse começado a correr agora. 

Vai na manha. 

Começo a segunda volta assobiando outra música: "Slow ride...Take it easy..." 

O céu começa a encobrir, e a sombra cinzenta das nuvens escurece a trilha mas não traz descanso. A chuva é uma promessa sem lastro, que não se cumpre, apenas oprime meu corpo, tornando o ar mais denso, como um cobertor molhado. Enxugo o suor que escorre por minha testa e é recolhido por minhas sobrancelhas, apenas para despencar numa gota gorda pela curva de meu nariz e em direção a meus olhos. O sal arde minha vista feito água do mar. 

Começo a me lembrar das trilhas onde vinha correndo, em Ottawa. A Trans-Canadian Trail, uma trilha larga que corta o país de ponta a ponta, era exatamente como aquele caminho da prova. Terra seca, poeirenta, grudando nas panturrilhas e entrando pelo nariz. Cascalho que rola sob os pés. E uma retidão falsa, que engana, que causa um cansaço que vem não sei de onde, até você se dar conta de que há uma ligeira inclinação, pequena mas constante, por quilômetros e quilômetros, que vai acumulando no esforço das panturrilhas que te empurram num invisível morro acima. Dou-me conta de que quase todo aquele percurso de 5km até a estação de água é uma ladeira como a Trans-Canadian.

Mais água, mais isotônico, mais gelo. A volta é ladeira abaixo, e solto o corpo. As nuvens liberam meia dúzia de gotas finas que evaporam tão logo tocam meus ombros, quentes como asfalto no sol. Resta um calor grudento e pesado, cheirando a pântano, como o bafo de um cachorro grande antes de lamber seu rosto. Olho o relógio. 32km. Quem corre maratonas chama essa marca de "O Paredão". The Wall. Se você vai quebrar durante uma maratona, há grandes chances que seja no quilômetro 32. Passo por esses números alegre. Meu corpo está bem. Eu estou bem. Está tudo bem. Eu não vou quebrar. Não vou. Mas quem disse? Há quanto tempo você não corre mais que 32km? Você correu exatamente 32 lá em Ottawa  na semana passada e ficou exausta. Você já está exausta. E ainda tem que correr mais 18km! DEZOITO! Sabe quanto é isso? Onde você estava com a cabeça quando se inscreveu nessa prova? Você fez  UMA maratona há dois anos atrás! Ficou seis meses sem correr. Você tem fascite plantar! Isso com certeza vai arrebentar seu pé pra sempre! Tá sentido essa dor na lateral dos joelhos? Isso é DESPREPARO. Você não fez os agachamentos que deveria ter feito. Você vai quebrar. Fez duas corridas de 30km nos últimos seis meses e acha que vai fazer 50km? Você é idiota? 

CALA A BOCA! CALA A MERDA DA SUA BOCA!

Está tudo bem. Pernas, vocês conseguem. Ali na frente está a estação de água de novo, e a gente vai completar 35km. E vai ficar tudo bem. Eu ainda tenho fôlego. Eu consigo cantar enquanto corro. Vocês estão cansadinhas, pernas, mas se vocês me ajudarem nessa, eu vou tratar vocês muito bem depois. Vai ter massagem, vai ter creminho, vai ter banho de banheira e muito descanso. Vocês conseguem. 


Mas as pernas doíam. Eu lembrava daquilo, de como o corpo muda depois dos trinta e poucos quilômetros. Lembrei de como me senti aos 37km na Maratona de Toronto. Aquela sensação de musculatura enrijecendo, movimentos travando, feito engrenagens sem óleo. Pensei em Murakami. Em como ele descreve suas ultra-maratonas.Em como ele se convence de que seu corpo é uma máquina que não sente, para assim seguir em frente. 

Mas eu não sou uma máquina. Meu corpo é de carne, e é natural, é selvagem. Meu corpo foi feito para isso. Minhas pernas foram feitas para correr na floresta. É minha mente, meu racional, meu ego de apartamento e televisão que quer me convencer do contrário. Inspira fundo. Traz atenção para a fontanela, aquele pontinho no topo da sua cabeça. Fica lá. Você não é seu corpo. Você é essa floresta inteira. Você não é o seu corpo. Deixa ele seguir. Sente esse formigamento no topo da cabeça. Esse calor gelado, essa luz. Só vai. 

"Slow ride.. Take it easy..."

Quando atravesso o meio do caminho novamente, ouvindo as palmas de quem assiste, olho com desejo para a estrada do outro lado. A última volta. "You're almost there!", gritam."You're doing great!" 

Mas de repente há uma ladeira ali. Como eu não havia percebido que esse caminho tinha um inclinação, na primeira vez em que passei por lá? Assim como o braço de 5km, aquele era uma ladeira constante que se estendia por 7,5km até a estação de água. Os 7,5km mais longos de minha vida. Diminuí o passo e segui correndo, ou me movimentando da forma mais semelhante a uma corrida possível, estrada acima. Muitos participantes andavam. Alguns estrategicamente, outros com olhares desistentes. O calor nos arrastava, como se tentássemos escalar um paredão de lama. Os pés quase não saíam do chão. Minhas panturrilhas ardiam.

Você vai quebrar. Eu falei que você ia quebrar. 

Não vou.

Vai sim. Não vai nem completar uma maratona. Você vai ver.

Você não sabe de nada. Eu vou terminar a prova. 

Olha que vergonha, subir uma ladeira a 9min/km. 

Mas eu vou terminar.

Você não vai fazer em menos de 6 horas.Que vergonha.

Foda-se. Eu vou terminar. Não me importa o tempo. 

Suas panturrilhas vão rasgar ao meio. Você vai ter uma lesão e nunca mais vai correr. 

Fontanela. Fica na fontanela. Eu só preciso chegar na estação de água. Se eu chegar na estação de água, eu sou obrigada a voltar. É assim que eu sempre corri longe. Eu vou e sou obrigada a voltar. Se eu corri 5km pra longe de casa, eu tenho que voltar, e aí eu corri 10km. Se eu correr 15km, na verdade corri 30km. Quando você chegar na estação de água, já fez os 50km. Terminou. Nem que você tenha que andar os últimos 7km. Você fez. Você conseguiu. Fontanela. Fontanela. 

Vai dar tudo certo. Olha em volta. Fica aqui. Fica agora. Olha os gafanhotos abrindo asas de borboletas à sua volta. Ouve as folhas.

Os 42km chegaram no meio da ladeira. E a partir daí o território era desconhecido. Nunca havia corrido mais do que 42km. Meu corpo, de repente, não sabia o que fazer com aquilo, como se comportar, como continuar. Mas eu ria. Eu ainda tinha fôlego e energia. Eu havia corrido 42km. Uma maratona inteira. Cada passo extra que eu dava, repetia: "você é uma ultramaratonista; você é uma ultramaratonista".A míseros 1,5km de distância a estação de água me esperava. Eu podia continuar correndo aqueles 1,5km ladeira acima, sem saber o que aconteceriam nos últimos 7,5, para provar um ponto a meu ego ferido que não me permitia andar, ou poderia apanhar minha última bananinha e comer com calma, caminhando um pouco, para me preparar para o final.

O que era mais importante?

O quê?

Apanhei minha bananinha e comecei a andar aquele último quilômetro até a estação de água. "You're almost there!", gritavam os que desciam na direção contrária. Meus passos se alargavam e galgavam mais distância, enquanto eu mastigava e terminava de beber o que ainda havia de água em minha garrafa. Eu ultrapassava outros corredores que se arrastavam, pálidos, na lateral da estrada. "Good job!", eu dizia. "We are almost done!"

Chegar à estação encheu meu corpo de energia, como seu pudesse absorver alegria pelos pés. 

"Are you ok?", perguntou um rapaz da equipe. Pergunta padrão para todos os corredores que chegavam. 

"Eu estou excelente, na verdade. Da cintura pra cima, estou fantástica. O problema é que minhas pernas não concordam!", eu ri. "Mas essa é a última vez que eu vejo vocês!", brinquei. 

"É seu último loop? Ieeei! Parabéns!"

"Descer agora vai parecer que você está em alta velocidade!", disse uma corredora que fazia 160km, e já estava em seu terceiro ou quarto loop. 

"Você quer água ou isotônico? Quer gelo?", ofereceu uma mulher da equipe. 

"Quero tudo. Mas o que eu queria mesmo era uma cerveja!" Ela riu. "Próxima vez, vocês tem que fazer um "bonus track", em que o corredor termina a prova, mas se correr até aqui de novo, ganha cerveja!"

"Boa ideia! Hahah! Quanto você está fazendo?"

"50km. É minha primeira vez."

"Uuuuuuh. Dia difícil pra tentar 50 pela primeira vez."

"Pois é."

Agradeci à equipe e comecei a descida. Alguns passos. Você já terminou. É só descer. Você conseguiu. Sorria. Sorrir relaxa. Deixa a alegria vir. Você conseguiu.

Minhas pernas soltaram, devagar. Eu estava correndo de novo. Eu estava correndo bem. Surpreendentemente bem. No mesmo ritmo em que eu começara aquela corrida, mais de seis horas antes. Faltam 7km. Você consegue. Aqui. Agora. Sente essa brisa soprando de repente. Ergue os braços. Que delícia. Ouça o Cardinal. Assobie de volta. Faltam 6. Um corvo sobrevoa minha cabeça e para num galho nu à minha frente. Faltam 5,5. Se joga. Você conseguiu. Você conseguiu. Divirta-se. Faltam 4. Puta que pariu, você correu 50km. Faltam 3. Você disse que ia fazer, você foi lá e fez. Faltam 2. Você é uma ultramaratonista. Sabia disso? 50km! Sabe quanto é isso! É muita coisa! Falta 1km.UM QUILÔMETRO. Corre. Corre solto. Você consegue ver a linha de chegada. Aquele de camiseta amarela é seu filho! Vai, corre!

"Corre comigo até a chegada, Thomas!"

Palmas. Torcida. Estou voando. "É a mamãe!", grita Laura. Meu rosto se abre num sorriso grande que faz minha cabeça formigar. Passo pela linha de chegada com três passos largos que me fazem quase cair sobre o organizador que me esperava com a medalha de participação. "Congratulations! You've done it!" Eu esqueço de parar o tempo no meu relógio, porque o tempo, de verdade, não importa. 

50km. 

Depois de um ano acreditando que meu corpo havia começado algum estranho processo de decomposição e esfarelamento que jamais me permitiria correr novamente. Um ano em que minha mente me convenceu de que eu não conseguiria. 50km. 50km para me dar conta de que minha mente tem esse poder de me quebrar e me reconstruir, e que eu só preciso colocar a atenção no lugar certo. Não é o corpo que desiste. É a cabeça.

Fica aqui. Fica agora. Você consegue. 

"E aí? Foi difícil?"

Olho para Allex e rio. Laura tenta me abraçar mas desiste quando me vê grudenta. 

"Foi. Mas foi muito bom."

"Você correu 50km."

"Pois é. Na verdade, 51,5km. Tinha a margem de erro."

"Você correu tudo?"

"Andei 1km, no fim da ladeira do 42 pro 43. Então dos 51km, eu corri 50 e andei 1. Haha"

"Boa. Vem. Eu te trouxe comida. Vou te levar numa cervejaria pra gente comemorar antes de ir pra casa." 

"Oba!"

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O lado de fora


"Vai pra rua e volta na hora do almoço!", minha mãe ouvia quando criança, nos idos de 1900 e Guaraná com rolha. Rio alto quando ouço a frase deixando minha boca, num berro já semi-ouvido alcançando orelhas já idas na distância. 

"Vai brincar lá fora, que o dia tá bonito e logo logo é inverno", Allex emenda. Terrorismo climático aplicado ao parenting.

No primeiro dia em que as crianças sumiram, ficamos inquietos. Nossa casa fica num "Crescent", que é como chamam essas ruas que levam nada a lugar nenhum, onde não passa ônibus, só tráfego local. Rua tranquila, com jeito de vila do Chaves. As casas aqui não têm muros. Muitos dos quintais, inclusive o nosso, são abertos, com cercas que nos separam dos vizinhos, mas não do trecho de bosque que corre atrás das casas. "Lá fora" é um conceito amplo, pois não tem limites. Lá fora é a rua, é o quintal, é o bosque, é o parquinho da rua de trás, é o quintal do vizinho, o jardim da frente do amigo, a trilha que leva ao mercado. E enquanto eu bebericava minha caipirinha de domingo no lado de fora que eu considero o quintal, e Allex colocava o queijo Haloumi (que bem substitui o Coalho) na churrasqueira, nos perguntávamos quando as crianças pretendiam voltar pra casa. 

"Vão voltar quando tiverem fome", sugeri. 

"Espero que sim", respondeu.

"Acho que é assim que se sente mãe de adolescente."

"Vai se acostumando." 

A alegria de uma rede.

Demorou um dia inteiro de mudança para tirar as crianças do apartamento, mas uma semana inteira para tirar o apartamento de dentro das crianças. Na primeira semana, aproveitaram os seus quartos, cada um com o seu, pela primeira vez na vida. Desapareceram em seus mundos de Lego, gibis, cadernos e lápis de cor. Os adultos, com trabalho pra fazer, móveis pra montar, casa pra limpar, agradeceram esse momento introvertido dos pimpolhos. 

Conforme a casa foi tomando forma, porém, ficou claro que nossos filhos já não se lembravam de como era morar em uma casa-casa. A lembrança do quintal da casa do Brasil e a rua do condomínio era muito longínqua. Os últimos quatro anos de apartamento-gaiola cortaram as pontas de suas asas, e agora era preciso ensiná-los a voar novamente.

Rio Ottawa.

Vocês sabem que vocês podem ir no quintal quando quiserem, né?

Vocês sabem que podem brincar no bosque, né?

Vocês sabem que podem brincar na rua, né?

Vocês sabem que podem pegar a bicicleta e explorar o bairro, né? 

É só avisar que está saindo, dizer aonde vai e a que horas volta. 

Vai sair pra andar. Nem precisa ser de bicicleta.

Dá uma volta no quarteirão. Aí dá uma volta ao contrário. Aí vai até a próxima rua. Lê o nome na placa. Olha pra trás pra saber voltar, que nem na trilha. 

Você sabe o seu endereço de cor? Pra perguntar o caminho, se precisar? 

Só não pode entrar na casa de ninguém, tá? Nem no carro.

Vai, pode ir. Olha quanta criança da idade de vocês andando sozinha tem por aqui! 

Sai. Vai lá falar com as crianças. Pode brincar. Tudo bem que é depois do jantar. Criançada aqui sai pra brincar mais tarde mesmo. Vai lá fazer amigos.Volta às nove. 

Em dois dias, os dois já tinham aprendido o que era ser livre. Porque liberdade tem disso de não matar sede com gole pequeno. Depois do café, pulam pro quintal da vizinha para fazer carinho nos gatos. Depois do almoço, correm para a casa da esquina para chamar os novos amigos. Desaparecem por duas, três horas, e voltam para pegar a arminha de água, fazer xixi ou devolver a bicicleta na garagem. E, de repente, há um estranho silêncio e uma ausência boa de infância acontecendo, em algum lugar, sem a constante supervisão parental que foi tão estressante durante o último ano e meio de escola online. 

O momento agora é de parar e escutar e entender o novo ritmo que a casa pede, pois cada casa dança de um jeito. Essa casa baila gostoso. Respeita as pausas. Minha cozinha tem sentido isso, ou eu tenho sentido minha cozinha assim. Essa casa, no verão, pede comida no jardim. Pede churrasco e acepipes, comida leve e sem horário. Come-se quando se tem fome. Aquela rigidez de outrora dispersou no vento. As crianças curtem a noite clara dos dias longos de verão, e me alimento dos risos que entram pela janela, enquanto invento um jantar com alguma coisa que comprei meia hora antes no mercado, no improviso do meu apetite imediato. A brincadeira acaba quando a luz muda através do galhos das árvores. Janta-se à mesa da sala de jantar. Muito adulto, sala de jantar. Banho e cama. Às vezes às nove. Às vezes às onze, que eles estão brincando tranquilos no quarto, ou vendo desenho na sala, e eu só quero continuar o papo lá fora, ouvindo o som estalado dos troncos das árvores balançando no vento, e estapeando os vorazes mosquitos canadenses que insistem em se alimentar de minhas pernas. 

 Só os mosquitos continuam "snacking". 

"Posso ter um snack?", foi a frase que mais ouvi durante o ano e meio de quarentena. Criança entediada matando tédio com a boca. Conheço bem. Fui a rainha de lanchar tédio durante minha primeira década de vida. Lá fora, ninguém lembra de fazer lanche. E quando o estômago está nas costas, que coincidência, é justo a hora de sentar pra comer. Refeição-refeição. Cafe, almoço, jantar. 

Talvez seja a cozinha diferente que ainda não se abriu pra mim, talvez seja o mercado novo que pouco conheço. Mas minha geladeira anda vazia de qualquer coisa que não seja de café da manhã. No meio do dia me dá umas vontades, e sigo o cheiro delas até o mercado. Compro o que quero comer, volto, preparo, como. No dia seguinte, tudo de novo. Feito descobrir trilha no parque, vou andando devagar pelas comidas que essa casa pede. Entre um churrasco e outro, um macarrão. Arrisco um peixe, mas já deu pra ver que o forte desse mercado não é peixe não. Bora lá achar peixeiro longe. Ando a esmo pelo mercado, sem imaginar prato nenhum. Falta inspiração. Tipo fotógrafo que ainda não achou o ângulo, que ainda não entendeu a luz. 

Tentando decifrar fomes e ingredientes na luz da minha cozinha.
 

Nesta manhã, vou ao mercado pegar ovos, e dou de cara com favas. Favas! Que não encontro desde que me mudei para o Canadá, e que já confundi com pacotinhos de edamame um sem número de vezes. Favas! Lembro que tenho Pecorino na geladeira.Fava fresca com pecorino! Olho os tomates coloridos e apanho uma Burrata. Abobrinhas para rechear. Alcachofras! Uma miríade de pratos que eu gostava de preparar me vêm à mente de repente, uma enxurrada de memórias do meu primeiro apartamento e da casa no Brasil. É inspiração que faltava? Achei.

Essa casa tem disso, de parecer um amálgama de todos os lugares em que morei. Parece que moro aqui há décadas. O crocitar dos corvos ao fim do dia desperta criaturas adormecidas. Lembranças de quem fui brotam da terra onde danço descalça. Surpreendo-me fazendo coisas como se nunca tivesse deixado de fazê-las, como quem por acaso encontra conhecidos em viagens ao exterior. Nossa, você por aqui! Quanto tempo! 

Encontro o lado de fora, meu velho conhecido, amigo distante que admirei naquela viagem à Itália que virou livro (já comprou o seu?), e ele me olha e olho para ele, e nos abraçamos forte, a memória muscular daquela liberdade, daquele ar, daquele céu, fazendo cócegas em minha alma. Minha alma se alimenta de árvores ao vento e passarinhos, de um chá silencioso refletindo nuvens.

Iogurte com fruta e chá depois da corrida, e uma enxurrada de lembranças de quem eu sou.
 

Retorno. Resgate. Pode uma sensação ser concreta? A roda dando a volta completa. Que nem filme de fantasia, quando a engrenagem estala e uma porta secreta é aberta. 

No meio da tarde, as crianças aparecem, assim, vindas pelo lado de trás, do bosque para o quintal. 

"Tem almoço? Tô com fome."

"Falei que eles viriam quando tivessem fome! Tem sim. Tem milho, queijo coalho, linguiça."

"A gente pode ir lá fora de novo depois de comer?"

"Claro que pode. Volta às nove."

....

 

Num momento inspirado, apanhei o livro da Suzanne Goin para preparar essa salada de tomates, que, de verdade, é mais sugestão que receita. Às vezes, tomate com sal basta. Às vezes, vale a pena ser meio metida à besta. 

SALADA DE TOMATES METIDA À BESTA

(quase nada adaptada do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes: 

  • 150g pão amanhecido, rasgado em pedacinhos
  • 1/2xic. azeite
  • 1 colh (sopa) orégano seco (eu não tinha e usei tomilho fresco)
  • 1/2 dente de alho
  • 1 1/2 colh (sopa) de vinagre de vinho tinto (usei de maçã, tanto faz)
  • 1 colh (sopa) vinagre balsâmico
  • 1,5kg tomates de cores e formas diferentes, ou simplesmente os tomates mais bonitos e maduros que você encontrar
  • 1 colh (chá) sal
  • um punhado de folhas de manjericão (pode ser de cores diferentes, ou todas iguais)
  • 500g burrata ou mozzarella de búfala
  • 1/2 xic. echalotas fatiadas fino (ou cebola roxa)
  • 1/4 xic. salsinha picada (confesso que esqueci de colocar e não fez falta)
  • pimenta-do-reino a gosto

Preparo:

  1. Coloque duas colh. (sopa) do azeite numa frigideira que comporte todos os pedacinhos de pão e leve a fogo médio, misturando às vezes, até que todos os pedacinhos estejam agradavelmente dourados. Tire do fogo e reserve os croutons. 
  2. Num pilão ou mini processador, bata o orégano (ou tomilho), alho, 1/4 colh (chá) sal até virar uma pasta. Junte os vinagres, e misture até que a pasta se dissolva neles. Misture 6 colh. (sopa) de azeite, experimente e acerte o tempero. 
  3. Corte os tomates em fatias ou cunhas ou ao meio, dependendo de seu tamanho e formato, retirando qualquer parte verde e dura próxima ao centro. Tempere os tomates com uma pitada de sal. Disponha os tomates na travessa onde você vai servir a salada, intercalando formas e tamanhos, colocando alguns pedaços da burrata ou mozzarella entre os tomates, e temperando com metade vinagrete. 
  4. Polvilhe a salada com as echalotas fatiadas, os croutons, as ervas (manjericão e salsinha) uma pitada de sal e pimenta e o restante do vinagrete. Sirva.


terça-feira, 27 de julho de 2021

Abraça o perrengue e vai: a jornada épica de uma mudança


Ready.
Set.
Go.

Acordamos às seis da manhã. Bem, honestamente, acordar não é o termo correto. Acordar infere um anterior estado adormecido, que, no caso, nunca aconteceu. Num misto de ansiedade e excesso de adrenalina pela noite passada desmontando móveis e encaixotando coisas, o sono nunca veio. 

Fomos buscar café da manhã no Tim Horton's, a Starbucks canadense, enquanto as crianças terminavam de acordar. Elas sim acordaram, uma vez que de fato dormiram. Um copo de café e um english muffin com presunto e queijo para cada um parecia suficiente. O plano era sair de Toronto ao meio-dia e meia, e almoçar na estrada. O apartamento tinha cheiro de empolgação e aquele excesso de confiança que deveria ativar um sensor interno de que tudo está prestes a dar errado. 

Mais uma vez, deixamos as crianças e seus english muffins, e levei Allex de carro até a garagem da U-Haul, para que fizesse o check-out do caminhão que havíamos reservado para as 7:30. "Volte para casa e me espere nos fundos do prédio, para me ajudar  dar ré ali", disse ele, e foi o que fiz. Pedi às crianças que tirassem os lençóis de seus colchões para que eu os colocasse na mala com os meus, e descemos todos para esperar o papai e seu caminhão.

Assim que fui ao fundo dos prédios, dei-me conta de que a equipe de manutenção havia deixado todas as caçambas de lixo na entrada do prédio, e que o caminhão não poderia passar. Também não tínhamos tido nenhum contato com o responsável por nos ensinar como travar um dos elevadores para que apenas nós pudéssemos usá-lo. Enquanto as crianças corriam pela área comum do prédio, se dependurando em corrimãos e fazendo buquês de flores arrancadas do jardim do condomínio, eu telefonava para o Serviço ao Residente, tentando fazer com que alguém removesse as caçambas e viesse falar comigo sobre os elevadores, intercalando as musiquinhas de espera com minha delicada gritaria com os pimpolhos hiperativos: "Pára de arrancar as flor do jardim, cáspita, e vê se não se pendura aí que isso não aguenta o teu peso e eu não tenho tempo de te levar no hospital se você quebrar teus dentes no chão!"

Respira. Minha paciência é inexistente quando estou com sono.

Enquanto isso, na U-Haul, Allex inspecionava o caminhão, para descobrir que o cadeado que trancaria nossa vida inteira estava quebrado. Depois de esperar na fila por vinte minutos para reclamar do cadeado, a senhora fofa que o atendeu foi tão delicada com ele quanto eu era com as crianças: "O problema não é meu. Se você quer um cadeado que funcione, pode comprar esse por dez dólares."

Dez dólares a menos, Allex chegou dando ré no caminhão nos fundos do prédio. Fazia trinta e dois segundos que um faxineiro me havia ajudado a empurrar as caçambas e ensinado a operar a trava do elevador. 

Ainda assim, tínhamos sorrisos no rosto e tudo parecia perfeitamente alinhado com os planos. Estava tudo pronto para começarmos e eram exatamente nove horas, como previsto.


It's show time.

As crianças ficaram de olho no caminhão, enquanto nós dois subíamos até o apartamento para descer as primeiras caixas pesadas de livros com a ajuda de carrinhos de mão igualmente alugados.

Esse é aquele momento em que você deve estar se perguntando: mas cadê a equipe de mudança? 

A equipe de mudança custa caro num país em que os serviços são bem remunerados. América do Norte: terra do Do It Yourself. Sabe todas aquelas séries e filmes passadas em Nova Iorque, em que o personagem principal chama os melhores amigos para descer a poltrona e as caixas de livro pro caminhãozinho? Pronto. Você entendeu. Sim. Nós estávamos fazendo a mudança inteira sozinhos. Nós dois. De encaixotar livros, embalar louça, desmontar mesa e sofá, a transportar tudo para o caminhão e então dirigir o caminhão até a casa nova, descarregar tudo, remontar e reguardar. O plano era descer tudo para o caminhão das nove ao meio-dia, dar aquela última limpadinha no apartamento, largar as chaves no escritório da manutenção e, à uma da tarde, partir para Ottawa. Allex dirigiria o caminhão,  e eu, o carro, com as crianças, e os itens mais frágeis. 

Esse era o plano. 

Conforme carregávamos o caminhão, no entanto, algo ficou dolorosamente claro: a caçamba era muito pequena. "Temos poucas coisas", eu havia dito. "Vai ser fácil", ele concordara.

Não foi. 

"Sobe você e vai trazendo tudo, e eu fico aqui montando o quebra-cabeça", eu disse, depois de cinco minutos de discussão sobre termos ou não desmontado os bancos, ter ou não comprado mais caixas, levar ou não minhas plantas e P*TA QUE PARIU, PÁRA DE ARRANCAR PLANTA E DESCE DO CARRINHO DE MÃO QUE SE VOCÊ PERDER OS DENTES VOU TE DEIXAR BANGUELA PRO RESTO DA VIDA, CÁSPITA!

Mudança é super divertido, eu sempre disse. Né?

As crianças desta vez foram gentilmente obrigadas a carregar tralha do apartamento para o caminhão junto com o pai. Não porque eles poderiam ajudar muito, mas como estratégia para pararem de aprontar. Enquanto eles ficavam no sobe e desce de elevador, eu desmontava todo o caminhão e remontava tudo de novo, como apenas uma criança que jogou Tetris na cadeira do dentista durante oito diferentes obturações conseguiria. Ana Elisa: oito cáries na boca, mas campeã de Tetris. Há!

Com precisão cirúrgica e velocidade que me fez sentir como aqueles japoneses em competição de resolver cubo mágico, fui combinado as variáveis peso, fragilidade, tamanho, resistência e flexibilidade, para criar paredões herméticos de caixas, objetos e partes de mobília do chão ao teto do caminhão.

"Não vai caber tudo. Ainda tem as bicicletas e aquele monte de coisa solta que sobrou lá em cima", resmungou Allex, exasperado. Coisas soltas. Mudança tem disso de ser afrodisíaca par tralha que não cabe em lugar nenhum, e, nos quarenta e cinco do segundo tempo, elas se reproduzem feito coelhos.  "Cabe sim", eu disse, tentando encontrar no meu eu sonolento alguma esperança de não ter de me desfazer das minhas plantas."Não cabe", ele disse. "Vou buscar o carro pra deixar aqui e ver o que cabe nele e P*RRA, TUA MÃE JÁ NÃO DISSE QUE O CARRINHO DE MÃO NÃO É SKATE, CARAMBA?"

Enquanto ele buscava o carro na garagem, eu tentava explicar para as crianças porque é que já eram duas da tarde e a gente ainda não tinha almoçado, e porque apesar de estar todo mundo com fome, a gente não tinha tempo de parar pra comer, porque iam cancelar nosso elevador e tinha um caminhão de construção querendo a nossa vaga e a gente ia ser expulso dali sem ter terminado de carregar tudo.

Allex estacionou o carro atrás do caminhão, e começou a tentar encaixar a maior quantidade de tralha lá dentro entre a TV e a cafeteira, enquanto as crianças e eu trazíamos a tralha solta do apartamento usando o elevador comum, pois nosso tempo de elevador acabara, mesmo com a boa vontade do pessoal da manutenção, e agora tínhamos os moços da reforma no nosso pescoço. 

Num dado momento, o colchão king size escorregou e empurrou pra fora do caminhão minha poltrona amarela, que caiu de ponta cabeça no chão, a dois centímetros do monitor do computador.

Gente, que divertido que é fazer mudança! Né?

"Termina de espremer tudo aí dentro eu vou limpar o apartamento!", berrei, correndo para o lobby. Varre varre varre, esfrega esfrega esfrega. Olha o lago pela última vez. Tchau lago. Tchau, apartamento. A foto mal enquadrada e fora de foco dá uma ideia da pressa que eu tinha de fechar tudo e ir embora.

 

"Coube tudo?", perguntei, apanhando a chave do Allex para juntar ao restante e devolver no escritório. "Sim. Espero que não quebre nada."
"E a TV? Tá no carro?"
"Tá. Eu abaixei um lado do banco e coube em pé."
"Vamos?"
"Vamos."

Fui até o carro, apanhei duas plantinhas que iam pro lixo e enfiei nas laterais das portas do carro. Plantinha muquiada. Beijoca, te amo, se cuida na estrada, vou te seguindo, a gente pára no On Route de Port Hope pra comer.

O bom humor e a paciência foram restaurados com o fechar do cadeado de dez dólares na porta do caminhão e o ligar dos motores.


"Mãe, tô com fome".
"Eu sei, filho. Eu também."

A pessoa lembrou de deixar um lanche pronto pra emergência? CLARQUENÃO.

Quando deixamos os fundos do prédio em direção à estrada, eram QUATRO E MEIA DA TARDE.

Port Hope fica a 89km de Toronto. Às quatro e meia da tarde numa quinta-feira, adivinhe só, havia um trânsito digno da Marginal Pinheiros com chuva. Não fosse o carro e o caminhão serem automáticos, seriam uma hora e meia de engata primeira, engata segunda, primeira, segunda, primeira, segunda. 

Já contei que a Laura enjoa? Laura enjoa. Desde bebê. Ela enjoa e vomita muito bem vomitado toda vez que seu transporte chacoalha ou fica nesse anda e pára, anda e pára. Ela já vomitou até no bonde de Toronto uma vez. É super divertido. Né? Uhú! É claro que eu dei remédio de enjoo pra ela antes de a gente sair. É claro que não funcionou porque ela estava de estômago vazio. Ieeei. 

"Mamãe, eu tô enjoada".  

Olho pelo espelho retrovisor e a criança está cinza. Olho em volta. Numa estrada de seis pistas, estou presa no trânsito bem no meio, sem a menor chance de chegar num acostamento. Abro as janelas, ligo o ventilador no máximo, começo a usar o acelerador e o freio com a delicadeza de uma bailarina.

"Tá melhor, Laura?"
"Um pouco. Mas eu ainda tô enjoada."
"Você vai vomitar?"
"Talvez."
"Ok. Deixa eu pensar. Não tem nenhuma sacolinha plástica aqui. Laura! Laura! O cesto de roupa suja tá do seu lado, não tá?"
"Tá."
"Enfia a mão nele e vê se você acha alguma camiseta grande da mamãe ou uma toalha."
"Achei uma toalha."
"ÓOoooooooteeeemo! Espalha ela no colo, aberta, e se for vomitar, vomita na toalha, please."
"Tá bom."

Laura é muito boa de vomitar com mira. Desde pequena ela sabe quando vai vomitar e sempre dá tempo de ela correr no banheiro e vomitar no vaso, sem sujar nada. Muito prático. 

Mas no fim não precisou. O trânsito aliviou, o enjoo passou e ela acabou pegando no sono. Não sem antes eu pedir pra que ela por favor deitasse a cabeça no ombro do irmão, porque do outro lado estava a tela da TV embalada em plástico-bolha.

Chegamos ao posto de conveniência de Port Hope às seis e meia, doze horas depois de nossa última refeição. Ninguém reclamou dos hambúrgueres de fast food e da batata frita. Nem eu, veja só. Quando comentei do meu cansaço para Allex, ele sugeriu açúcar no lugar do café. Antes de voltar para o carro, compramos chocolates para as crianças, e eu me dei o drink de café mais doce que encontrei no Starbucks antes de voltarmos à estrada. 

"Quanto tempo falta, mamãe?", Thomas perguntou, querendo acertar o timmer no seu relógio novo.
"Três horas e meia, filho." Laura ficou consternada. Por conta do trânsito até ali, uma viagem que costumava levar quatro horas e meia, demoraria cinco e meia no total. "Mas agora não tem trânsito, Laura", expliquei. "Só que agora troca o assento: Thomas vem pro meio, Laura vai pra janela, que eu não quero que ela enjoe mais."

A viagem seguiu tranquila. O super Caramel Vanilla Cookie Crunch Açúcar Com Mais Açúcar Coffee Frappuccino com Chantilly da Porcaria Toda do Starbucks funcionou, e pelo menos eu não sentia mais o cansaço da noite insone e das SEIS HORAS carregando peso. É lógico que eu esqueci de baixar no celular uma playlist de música para ouvir na estrada. Mas o Universo foi meu amigo e me ajudou a encontrar uma estação de rádio de Napanee que parecia uma seleção de karaoke feita sob medida para meu gosto musical eclético. As crianças já se acostumaram com a mãe cantando e dançando nas viagens de carro, e só sentiram falta da coreografia dramática dos braços enquanto eu me jogava em Roxette, Kelly Clarkson, Erasure, Backstreet Boys e Taylor Swift. Afinal, eu estava dirigindo. Só rolava chacoalhar os ombrinhos, como toda pessoa crescida nos anos 80 sabe fazer.

"Gente, olha pela janela. Esses bosquezinhos no meio das fazendas são ótimos para ver Deer (veado)!"
Laura suspirou.
"Ih, mamãe, eu tava aqui pensando que a gente justamente não viu NENHUM bicho na estrada até agora. E isso é muito estranho, porque a gente SEMPRE vê bicho na estrada. Aí eu pensei que é porque você tá dirigindo. Você não pode olhar em volta pra achar bicho, então a gente não vê nenhum. Depois disso só o papai vai dirigir, porque você tem que achar os bichos no caminho!"
"Hahah. Mamãe bruxa dos bichos."

Meia hora depois, numa estradinha menor e mais tranquila, apontei um campo de trigo ao lado da estrada, onde meia dúzia de veados com filhotes pastavam tranquilos. 

"Tá vendo só, mamãe? Você tem olho de ver bicho."
"Pois é."

A noite veio devagar, e as crianças foram silenciando no escuro. Ao nosso lado, uma lua cheia alaranjada do tamanho de um prato de bolo se escondia sob fiapos de nuvens cor de chumbo, feito uma lenta dança dos sete véus. Eu continuava seguindo o caminhão, agora de coração leve. A lua foi dormir e deixou em seu lugar uma chuva fina que sussurrava nos vidros.

Faltando uma hora para chegarmos, olho pelo retrovisor e me dou conta de que os dois adormeceram. Suspiro feliz por um segundo, até me dar conta de que Thomas está com o cabeção apoiado à tela da TV. Chamo seu nome. Chamo mais uma vez. Mais alto. Jogo o braço pra trás e cutuco sua perna. Leves tapinhas. Thomas. Thomas. THOOOOOOMAAAAAAAS. Lembro quando ele era pititico na cadeirinha do carro, e sua cabeça adormecida pendia para frente, sobre o cinto de segurança, e eu, aflita no meio da Marginal ou da Castelo Branco, esticava o braço para trás sem tirar o olho da direção, e ajeitava sua cabeça numa posição melhor, quase deslocando o ombro sobre o assento. THOOOOOOOMAAAAAAAS! Ele acorda. "Joga a cabeça no ombro da Laura, filho!" Ele obedece, sem dizer nada, e volta a dormir. TV sã e salva.

Chegamos à casa às onze da noite. A casa em que dormimos um mês antes, nos sacos de dormir que ainda estão ali nos quartos. Tiro tudo do carro, menos a TV e a cafeteira. As crianças vão à cozinha e se fazem um sanduíche com o pão e o salame comprados na estrada, e comem sobre os pratinhos de acampamento que havíamos deixado ali. Enquanto isso, Allex procurava uma vaga na vizinhança para estacionar o caminhão, já que nossa rua é rota de caminhão de bombeiro e não pode ter nada estacionado no meio-fio. O plano de descarregar o caminhão no mesmo dia foi pra cucuia.

"Vão escovar os dentes e cama, agora", diz Allex, quando volta da rua. Eu rio de nervoso. "O que foi?"
"As escovas estão num tupperware... no caminhão."
"Eita, p*rra."
"Pimpolhada, enxagua bem a boca e vai pra cama."
"E os nossos colchões?', Thomas pergunta.
"Estão no caminhão, ué."
"E a gente não vai pegar?"
"São onze e meia da noite, Thomas. A gente vai pegar amanhã, com todo o resto."

Beijo, abraço, abraço de novo, Thomas vai dizer boa noite pra Laura, pois estão separados pela primeira vez, e em dez minutos estão completamente adormecidos.

E foi assim que, depois de uma noite insone, seis horas carregando peso, cinco horas e meia dirigindo, e uma cerveja dividida no chão de nossa nova sala vazia, fomos todos dormir em sacos de dormir.


A pessoa dormiu? CLARQUENÃO.

Às seis e meia da manhã seguinte "acordamos" e fomos andar até a Starbucks a 500 metros dali para comprar café. Um cappuccino gigantesco e um croissant com queijo, levado de volta para comer em casa. Meu corpo inteiro se move como um brinquedo antigo cujos parafusos enferrujaram. Minha mente continua evitando pensar no trabalho que vai dar descarregar o caminhão. Mas quando levo meu café para a varanda da sala, abro um sorriso largo e solto um grito. "UM COELHO! Tem um COELHO no quintal!" Nhóin. Este brinquedo velho usa pilhas recarregáveis à base de fofura.

Às oito, o caminhão está estacionado em frente à casa. Allex alinha a agenda do dia comigo: "Seguinte. Eu tenho a tarde de folga, mas agora de manhã tenho dois calls da empresa. A gente vai descarregar tudo o mais rápido possível, que à tarde vêm os caras da máquina de lavar e depois o cara da internet. Quando eu estiver em reunião, você espera eu voltar pra ajudar, que a gente não tem pressa."

A gente não tinha pressa. Aí vem o vizinho novo, com quem a gente quer começar com o pé direito, e pede pra tirar o caminhão ao meio-dia, porque ele precisa sair da garagem.

"Ok, então enquanto eu estiver na reunião, você faz o que conseguir."

Desta vez, as crianças quiseram e puderam ajudar no processo todo. O que puderam carregar ou ajudar a carregar, carregaram. Esse vai na sala, esse vai na cozinha, esse vai pra garagem, esse você coloca no basement, esse vai pro meu quarto, esse pro seu, esse pro da Laura. Mas o que era pesado era pesado e ponto, e só adulto carregava. E como tinha caixa pesada! Já falei quanto livro eu tenho? Pois é. E os kettlebells? Ai, que divertido carregar kettlebelll, gente! Né? Não.

Allex, super empolgado, prepara os carrinhos de mão para descer tudo do caminhão e levar pra dentro. Eu rio. "Carrinho sobe escada, Allex?"

"Merda."

Haha. Vai tudo no braço. Um por um.

Chegou a hora do colchão de casal. Segura. Segura. Usa o carrinho pra descer o bicho do caminhão. E agora? Agora f*deu. A desgraça passou pela porta feito bala Toff entalando na garganta. Pensa um colchão PESADO. Agora vem a parte divertida. Já falei que minha casa não é térrea? Pois é. Já falei que ela é meio que feita em zigzag? Pois é. Quer dizer que ela não tem dois andares inteiros, mas que cada plano ocupa um meio-andar. Sete degraus pra sala, sete degraus pra cozinha, sete degraus pro meu quarto, sete degraus pro quarto das crianças. Praticamente uma espiral de degraus desenhada por alguém que não tinha transferidor pra fazer curva e desenhou um caracol quadrado. Agora pensa dois adultos cansados tentando subir um COLCHÃO DE MOLA KING SIZE três lances de escada acima. Ieeeeei! Divertido, né? Super. A gente ria muito, porque lembrava da cena do Friends, em que tentavam fazer curva com um sofá numa escada igualzinha. Ó. Foi ÓOOTEMO.

Depois disso, Allex foi para a reunião dele, porque é importante continuar pagando os boletos, e eu liberei as crianças para brincarem de Lego no quarto, enquanto eu terminava de descarregar as últimas caixas. Laura ainda quis me ajudar (ajuda bem-vinda) a  levar partes do sofá escada acima, e fez um ótimo trabalho. 

A última caixa de livros eu carreguei até a porta. Precisava subir um degrau para entrar. Coloquei um pé na soleira e fiz força, com a caixa nos braços. Nada. Vai, perna, sobe! Ahn-ahn. Tô mandando, perna, me obedece, cáspita! Nananinanão. Coloquei a caixa em cima do degrau e subi sem caixa nos braços, e foi desse jeito que eu fui "rolando" a caixa escada acima, usando a desgraça como se fosse um andador. A última vez em que meu corpo DESISTIU desse jeito foi quando terminei a travessia de Petrópolis-Teresópolis, acampando, e precisei que alguém me puxasse pra sair do carro pra ir à padaria tomar café, porque minhas pernas não tinham mais energia para erguer meu corpo em pé. Isso foi antes das crianças nascerem. Nem os 42km corridos na Maratona de Toronto em 2019 me cansaram desse jeito. Quando terminei a maratona, lembro de ter ido tomar banho, abrir uma cerveja e ainda ficar em pé fazendo o almoço pra galera toda. E ainda desci o cachorro.


Eram exatamente meio-dia quando eu fechei a rampa do caminhão pra que Allex o levasse para a vaga lá longe. O vizinho agradeceu. Ufa. Allex terminou de trabalhar, e veio montar a mesa da cozinha, e saímos para comprar esfihas na bakery ao lado. Almoçamos pela primeira vez no quintal, ouvindo o som dos pássaros e esquilos que habitam o minibosque que corre ao longo da parte de trás das casas. Mas o trabalho não havia terminado. Ele cuidou do cara da máquina de lavar e do cara da internet ao mesmo tempo, enquanto eu desempacotava toda a tralha da cozinha. Porque se tem um negócio que tem que estar funcionando em primeiro lugar é a cozinha. Alegria é descobrir que minha habilidade de empacotadora em mudança continua na garantia: nenhuma taça de vinho se feriu durante a mudança. 

No fim do dia, Allex instalou a cafeteira, enquanto eu descansava em minha poltrona, que não sofrera nenhum dano visível na queda do caminhão. As crianças escovaram os dentes COM MUITO CAPRICHO e foram dormir em suas camas, com lençóis fresquinhos da máquina de lavar nova. Fiquei chocada em descobrir que Thomas é um menino organizado, pois suas roupas já estavam em cabides e seu quarto estava todo em ordem, enquanto Laura parecia ter chacoalhado seu quarto com tudo dentro, feito um globo de neve. Lembrei de quando saí da casa de meus pais e minha mãe ficou igualmente chocada em descobrir que era minha irmã a bagunceira, e não eu.

Levei minha cerveja para a varanda, tentando ignorar a exaustão. Fechei os olhos para ouvir o canto dos últimos corvos atravessando os céus para se recolher ao bando, e quando os abri novamente, havia vaga-lumes por entre as árvores. Lembrei de quando havia vaga-lumes em São Paulo. Eu, pequenina, recolhendo os insetos brilhantes em caixas de fósforos, no parquinho do prédio.

Dormir no colchão que você mesma carregou escada acima tem gosto de justiça. 

Na manhã seguinte, bebericando meu cappuccino, eu brincava de ligue-os-pontos nas manchas roxas de meus braços e pernas. Eu parecia (e ainda pareço, enquanto escrevo isso) um dálmata. Minhas panturrilhas ardiam, de tanto sobe e desce degrau, e os músculos de meus antebraços estavam duros feito pedra.

"Me perguntaram por que é que a gente não pediu ajuda", comentei, rindo. "E eu disse que foi um misto de inocência com excesso de confiança."
"Ué", respondeu Allex."A gente fez, não fez? A gente fez sozinho. Chegou tudo inteiro. Foi difícil, mas deu tudo certo. Como é excesso de confiança se a gente foi lá e fez? Eu digo que a gente sabia exatamente do que era capaz."
"Você tem razão. Parabéns pra gente, então."
"Parabéns pra gente."

Epílogo: Allex pegou suas coisas, e foi dirigir quatro horas e meia de volta a Toronto para devolver o caminhão, e então pegar quatro horas e meia de trem para voltar a Ottawa, já que entregar o caminhão em outra cidade custava o dobro. "Pára de desmontar caixa", ele disse. "Descansa. Vai passear. A gente faz o resto junto depois, que vai mais rápido." Sim, senhor. Teve passeio de bicicleta pela vizinhança nova, teve visita ao mercado pra comprar flores e comidinhas, almoço no quintal, e cochilo. Merecido cochilo.

Fomos buscar Allex na estação de trem no fm do dia, e, quando atravessamos a porta, eu estava em casa.



segunda-feira, 5 de julho de 2021

Um lago por um rio.

Mensagens de Toronto


Caixas. Há caixas por todos os lados, há caixas em tudo o que eu vejo. Meu apartamento está uma bagunça. Como todo apartamento fica durante uma mudança. A vida em caixas, objetos que não sei se ainda quero, miudezas-lixo que surgem espontaneamente, em todos os cantos e todas as superfícies. Como é possível, encaixotar toda uma estante e, no dia seguinte, dezenas de minicoisas aparecerem novamente por lá? Sísifo feelings. Já que entramos no âmbito da mitologia, dá-me uma vontade de fazer a Fênix e tacar fogo em tudo e me mudar com a roupa do corpo. Recomeços bem recomeçados. 

Mas não posso, na verdade. Não é uma mudança como foi a última, do Brasil para o Canadá, em que tudo o que tínhamos foi vendido e doado e carregamos em apenas sete malas com quinze anos de história juntos. Também não é a mudança da casa dos pais para nosso primeiro apartamento, aquele da cozinhazinha que gerou esse blog. Naquela mudança, carregamos em mochilas e sacolas nossas poucas coisas que cabiam num quarto, e dois ou três móveis emprestados, levados à pé, pela rua, com pausas pra descansar as costas.

Na nossa segunda mudança, do apartamentinho para um apartamento maior, onde Thomas nasceu e onde achei que viveríamos para sempre (ironicamente foi o lugar onde menos vivemos, apenas um ano e meio), contratamos uma carretinha para levar fogão, geladeira, mesa e sofá. E botamos no porta-malas nossos livros, louças e computadores. 

Esta mudança lembra mais nossa terceira, quando saímos daquele apartamento para a casa da Aldeia da Serra, fora de São Paulo. Foi minha primeira vez morando fora da cidade onde eu nasci. Foi a primeira vez em que chorei em uma mudança. A gente precisa chorar quando uma parte da gente morre. Aquela mudança teve caminhão profissional. Teve a gente indo uma semana antes, pra dormir no colchão no chão e limpar tudo e arrumar a parte elétrica que, por algum motivo, sempre foi problema em nossas casas no Brasil. Era outra cidade, mas era perto o bastante para ir e vir de um lugar ao outro, para fazer a mudança em etapas. 

Spoiler da nova vista da janela em Ottawa.

Estamos mudando de cidade. De Toronto para Ottawa. Ottawa fica a quatro horas e meia de distância de Toronto. Já não é Aldeia da Serra pra São Paulo, ainda que a meia hora imaginária entre as duas pudesse, na realidade do trânsito da Castello Branco em dia de chuva, virar duas horas e meia. Fomos até a casa de Ottawa antes, para pegar as chaves. Dormimos no chão, em nossos sacos de dormir, e verificamos a parte elétrica, que, ainda bem, está ok.

A ideia da mudança não era nova. Desde que Allex começou a trabalhar numa empresa que se dividia entre as duas cidades, a gente tocava no assunto, às vezes. Mas parecia bobagem. Gostamos de Toronto, as crianças estão bem adaptadas na escola, nosso apartamento alugado tem uma localização maravilhosa, e tudo ia bem... até a quarentena. Essa quarentena que aqui em Ontário durou duas décadas e mais uns dias. Essa quarentena que nos fez conviver vinte e quatro horas, por um ano e meio, num espaço pequeno que não foi feito para isso. O apartamento pequeno funcionava lidamente numa situação em que todo mundo estava do lado de fora o tempo todo. Mas as crianças cresceram, e ficou claro que o espaço não comporta a energia e o tamanho de 10 e 8 anos como comportava 6 e 4.

Eu sufoquei. Meu espaço sumiu. O silêncio e harmonia externa de que preciso para manter o silêncio e a harmonia interna desapareceram. Claustrofobia. Ansiedade.

Foi numa terça de manhã, bebericando cappuccinos no quarto, enquanto as crianças se enfiavam na escola online, que o assunto surgiu de novo, de repente, mas não tão de repente assim.

Eu falava de espaço. Quando passamos uma semana em Paris, num apartamento de 21m2, esse conceito fez sentido como nunca havia feito em São Paulo: morar num lugar pequenino era possível, pois a cidade era seu quintal. Toronto tem disso de ser quintal, de chamar pra viver o lado de fora e só voltar pra casa pra dormir. Mas a quarentena matou Toronto. A quarentena fechou meu quintal e me enjaulou no meu apartamento pequeno. Toronto virou São Paulo.

Ele falava de futuro. Porque tem disso com a gente. Eu sou incapaz de me preocupar com futuro. Não sei nem o que vou jantar amanhã, como é que pode eu querer pensar em aposentadoria? Quero viver até os 120 anos, mas sei bem que a natureza faz o que quer e que eu posso morrer amanhã. Hedonista, irresponsável, sonhadora, lua em peixes, pode dar o nome que quiser. Eu estou em paz com isso e com o fato de que Allex e eu nos equilibramos bem nesse sentido, quando respeitamos nossa natureza verdadeira e nossas diferenças.

Bem, ele falava de futuro. De aposentadoria. De segurança financeira. De aluguel. De jogar dinheiro no lixo. De trocar aluguel por Mortgage (o nome do empréstimo pra comprar casa). Ele fazia contas. Ele falava de mercado imobiliário. A gente nunca conseguiu comprar nada nosso no Brasil, porque onde a bolha vai, a gente vai atrás. Estamos sempre um ano atrasados e nosso poder aquisitivo nunca pôde adquirir nada no lugar onde morávamos. E a gente tentou várias vezes. Toronto não é exceção. A cidade virou rapidamente uma das mais caras do mundo, e todos os dias os jornais mostram histórias absurdas de bangalôs minúsculos e caindo aos pedaços que foram vendidos pela bagatela de 1 milhão de dólares. 

A gente podia tentar Ottawa, ele disse. Meu trabalho já está lá, mas a bolha de Toronto ainda não. 

Pode ser, eu disse. Se isso for deixar você mais tranquilo e der mais espaço para as crianças, acho que eu topo.

O Universo tem dessas lindezas, e foi nesse instante em que o telefone tocou. Era o gerente do banco falando que nosso limite de empréstimo tinha aumentado.Oi, senhor gerente, muito obrigado por sua ligação; que coincidência, veja só, a gente tava falando justo disso. O senhor pode, por obséquio, fazer uma simulação de "mortgage" pra gente saber se a gente consegue comprar uma casinha em Ottawa?

E foi assim que a gente começou a procurar nossa casinha em Ottawa. 

Eu penso nessa história todas as vezes que minha ansiedade me impede de dormir, e que minha insônia abre a Caixa de Pandora dos pensamentos negativos. Porque essa história parece muito com aquela que nos trouxe para o Canadá. 

Toronto, vista da balsa a caminho de Toronto Islands. Muito amor.

Lá nos idos de 2015, a gente já vinha falando de sair do Brasil. De buscar não apenas a aventura do expatriamento que habitava meus sonhos, mas também oportunidades novas para nossa família. Quando ofereceram uma vaga no Panamá, Allex aceitou sem titubear. Panamá. Nunca imaginei. Mas vambora que a gente não sai olhando dente de cavalo que cai no seu colo quando você pediu. Foram meses de sonhar acordado, de pesquisar sobre o país, de imaginar nossa vida lá. Quando estávamos em Paris, eu deixei de comprar um casaco felpudo que eu amei de paixão porque "faz calor no Panamá, e eu nunca vou usar isso lá". Era tanta certeza. Faltava só assinar o contrato e a mudança estava selada. Todo o resto já havia sido negociado. No dia em que voltamos de Paris, o telefone tocou duas vezes. Na primeira vez, pra dizer que o escritório do Panamá havia sido reestruturado e a vaga não existia mais. Eu chorei. A gente tem que chorar quando uma parte da gente morre. Na segunda vez em que o telefone tocou, meia hora depois, era um amigo nosso, que comentou, assim, en passant, que havia um consultor de imigração canadense na cidade, ainda aceitando entrevistas. Eu peguei a última vaga do último dia disponível do consultor. E viemos para o Canadá.

Durante os dois anos que duraram o processo de imigração, era essa história que acalmava os pensamentos negativos liberados pela Caixa de Pandora da minha insônia.

E cá estamos nós, novamente. No meio da mudança. 

Noutro dia, resolvi ler os textos escritos durante cada uma das minhas mudanças de casa, como um "respirar no saquinho" literário. Relembrar é importante. Porque mudança é que nem filho: a gente só faz de novo porque esqueceu como foi a vez anterior. Toda mudança é bagunça, toda mudança faz a casa parecer um campo de paintball, toda mudança faz surgir dos recônditos do inferno toda sorte de minitralha que você nem sabia que habitava suas gavetas. 

Toda mudança desequilibra, desarmoniza, destrói e desfaz. 

A bagunça externa anda me bagunçando internamente, é claro. Como toda boa libriana, preciso de harmonia pra viver. Nada menos harmônico do que uma sala cheia de caixa e tralha onde não se consegue nem passar vassoura. Mas seguimos. Respira no saquinho, literária e literalmente. 

Primeira cerveja com amiga em pátio aberto do ano.

Enquanto a mudança não vem, faço um pacto comigo mesmo de curtir meu quintal-cidade como não pude durante a quarentena. A vida volta, graças à ciência e ao bom senso que trouxe vacinação em massa. Dia bonito é para ser usado, e eu vou abusar de todos os meus dias bonitos em Toronto enquanto eles existirem.

Autografando livro num café de Toronto.

Parque, piquenique, bicicleta, praia, chopp com os amigos que eu não vejo há mais de um ano apesar de serem meus vizinhos, cafés com leitores queridos que compraram meu livro aqui no Canadá e me encontram pra que eu possa escrever dedicatória. Sonho ainda com a viagem ao Brasil para minha tarde de autógrafos. Ainda não chorei, porque essa parte minha eu não matei. Ela vive, moribunda, mas ainda esperançosa. 

Faço listas de passeios em Toronto, lugares para ver. Allex encaixa a lista num calendário. Eu uso o calendário como sugestão. Hoje eu estou afim de quê?

Cato a bicicleta para comprar croissants na minha bakery favorita.

Compro passagens da balsa para a ilha durante o café-da-manhã e monto um piquenique improvisado com o que sobrou na geladeira. Pulamos ondas na praia do lago.

Quero fazer o tubbing que não fiz em 2019, quando eu tive que cuidar do cachorro enquanto Allex, as crianças e minha irmã desciam o rio de boia (tube), em Elora Gorge. Allex tira o dia de folga numa quinta e vamos. Cobro do Universo o tubbing que ele me devia.

Cerveja no meio da meia-maratona. Steamwistle é uma cervejaria no centro.

Faço minha meia-matatona da Steamwistle. Essa minha tradição inventada de correr 10,5km até a cervejaria no centro da cidade, tomar um chopp (usar o banheiro) e voltar correndo mais 10,5km pra casa. Essa meia-maratona tem um gostinho especial. Primeira vez que corro 21km desde que meu corpo resolveu se desmantelar durante a quarentena: pé-quebrado, pé-torcido, fascite plantar e nervo pinçado.

Acalmo o FOMO das listas usando dias de chuva para colocar mais coisas em caixas. 

E seguimos dizendo tchau a Toronto e às pessoas que nos acolheram aqui. Dizendo tchau à vista do lago que parece mar, ao High Park que me ensinou a correr de novo, às trilhas onde Gnocchi andava livre, sem coleira, olhando para trás para ter certeza de que eu o seguia direitinho. 


O lago. Mergulho nele mais um vez, e mais uma, cada vez podendo ser a última. Deixando minha pele dissolver em sua imensidão gelada e inerte. Deixo minha ansiedade virar imaginação, nadando para o grande rio na cidade nova. Um lago por um rio. Água parada por movimento. Fecho os olhos e me pergunto onde o rio vai me levar.

Cozinhe isso também!

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