segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Você está pronta?


Na maratona de Toronto, em 2019, a piada era "Você está correndo tudo isso por uma banana!"

"Você está pronta?", perguntou Allex, com a câmera na mão, apontada para mim. A lente escura refletia um sorriso nervoso escondido pela máscara, e a lenta movimentação dos corredores pelo gramado, em direção às bandeiras que marcavam a largada. 

"Claro que não", respondi, sincera. "Mas quem é que está pronto pra qualquer coisa, de verdade?"

Um beijo. 

Boa sorte. 

A corrida aconteceu no Dundas Valley Conservation Area, um parque nos arredores de Hamilton, Ontario, no cinturão verde da Grande Toronto. Allex havia dirigido cinco horas e meia no dia anterior até o hotel ali perto, desde Ottawa, para que eu pudesse participar dessa corrida, que deveria ter acontecido em 2020, o ano cancelado. O ano em que quebrei um pé, torci um tornozelo, tive fascite plantar e fiquei seis meses sem correr. Mas ali estava eu, correndo. Devagar, "taking my time, pacing myself", olhando o formato dos troncos das árvores se entrelaçando sobre aquela trilha larga, aquela estradinha de terra e cascalho, ouvindo o pio dos passarinhos e o guinchar repetitivo dos esquilos, assustados com aqueles sessenta potenciais predadores fazendo barulho com seus tênis coloridos, suas garrafas d'água e o bater empolgado de palmas.

Já Foram 5km. Agora é só fazer isso dez vezes. Hahaha


O arco dos pés doía, mas não me deixei preocupar. Vai passar. É a tensão da viagem de carro e da noite mal dormida. Meu corpo se ajustava à corrida, como sempre se ajusta nos primeiros quilômetros. O quadril busca encaixe, os joelhos e pés sincronizam o girar dos ossos, estico o pescoço para olhar o horizonte de queixo erguido, e a coluna encontra seu prumo, como aqueles cursos de etiqueta feminina de 1950: chupa a barriga, contrai o bumbum; equilibra esse livro no topo da cabeça e vai, graciosa.

Graciosidade não é meu forte, mas perto do quilômetro dez, meu corpo entende que pretendo fazê-lo se mover daquela forma por muito tempo, e sinto os músculos dos ombros relaxando. É como uma onda num mar morno, descendo do pescoço à ponta dos pés. A tensão se dissolve e de repente não preciso mais pensar os movimentos. Eles acontecem, naturalmente, e minha mente dispersa para o verde molhado à minha volta. 

Faz 35oC. A estrada parece um rio, meus braços e pernas nadando da umidade do ar que encharca minha pele. A atmosfera densa é como areia movediça, pesando para baixo e me impedindo de prosseguir. A água que carrego comigo desaparece em minha boca e minha nuca. A equipe que organizou a prova está preocupada. A onda de calor veio inesperada. Médicos de coletes amarelo-fluorescente acompanham a trilha em bicicletas, procurando por quem possa estar passando mal.

Eles avisam que, pela primeira vez, quem quiser desistir da prova na metade vai ganhar medalha mesmo assim. 

Totem com corvo em Marmora, cidade onde paramos para almoçar.

Enxugo o suor no buff enrolado ao braço e sorrio. Vai dar tudo certo. Deu tudo certo até agora. A viagem até ali foi divertida. Contrariei os ímpetos de planejamento do marido e improvisei uma parada numa cidade desconhecida para almoçar. Boa pizza e sorvete no parque. Splash Pad para refrescar. Segue viagem. Deu tempo de pegar o kit de corrida antes de ir para o hotel. Hotel lindo, tudo novinho. Crianças felizes por poderem passear de novo, depois de quase dois anos. Pula na cama. Mas não tem piscina. Não tem, por causa do Covid. Precisa reservar horário, e é só uma família por vez, mas já está lotado. Pra hoje, só amanhã. Não são só as crianças que se decepcionam. Depois de tantas horas sentada no carro, eu queria flutuar em águas mornas para relaxar a musculatura antes de dormir. Enquanto buscamos  as mochilas no carro, penso: "Alguém vai cancelar, porque eu quero nadar hoje". De volta ao hotel, a recepcionista acena: "Houve um cancelamento! Posso botar o nome de vocês para a piscina às nove?"

Café da manhã dos campeões. Mingau de aveia e café.


Unagui, já disse Ross Geller. 

Piscina. Uma cerveja no pátio do hotel antes de dormir. Deu tudo certo.

Olho o visor embaçado do relógio: 11km e tudo vai bem. Tudo deu certo e vai continuar dando certo. O calor não vai ser um problema. Vai na manha. Bebe água. Come a primeira bananinha. Bananinha, aquele doce de banana escuro recoberto de açúcar, com gosto de infância brasileira, e que minha mãe sempre traz ao Canadá aos montes, porque é um bocadinho maravilhoso para comer durante as corridas longas, quando a energia baixa. Uma bananinha a cada 10km, como fiz na Maratona de Toronto.

Pronto, olha que maravilha. Nem parece que você está subindo uma ladeira. Está indo tudo bem. Seu tempo está ótimo. Você vai terminar a prova. Mas não, não pensa em terminar a prova. Falta muito ainda, se você ficar pensando em quanto falta, vai entrar em pânico. Não, só precisa chegar até a próxima estação de água. Um pedacinho por vez. Assobio enquanto corro, como sempre faço, para manter a velocidade constante e a respiração regular. E porque é divertido. Segundo meu filho, é preciso se divertir na vida enquanto você está vivo, ou quando você morrer, sua vida terá sido muito chata. Sábio Thomas. 

"She's a maniac, maniac, oh no no. And she's dancing like she's never danced before!"

Canto alto. Não há ninguém à minha volta. Aos 15km, os corredores dispersaram pela trilha. Às vezes ultrapasso um. Às vezes uns dois vêm na direção contrária, já no retorno da primeira volta. "Good work!", eles dizem. Com o tempo, esses encontros ficarão mais motivacionais, entre respirações entrecortadas: "You're doing great! Keep on going!". 

A Foxtail Hundred é a prova de trail running mais reta do Canadá. Reta no percurso e na altimetria: apenas 189 metros de elevação total, numa estrada de terra bastante larga, muitas vezes aberta ao sol. O que quer dizer que ela não tem montanhas nem ladeiras íngremes. Excelente para iniciantes. Não fosse pelo calor. A largada aconteceu no meio do percurso, e a prova consistia em idas e voltas. Uma ida e volta até uma estação de água a 5km de distância, e outra ida e volta até a outra estação a 7,5km, totalizando uma volta de 25km. Cada corredor faria quantas voltas fossem necessárias para completar a distância em que se havia inscrito. Havia pessoas cruzando meu caminho que completariam 100km. Outras, 100 milhas (160km) e algumas 50 milhas (80 km). Eu me sentia café com leite. Eu e mais trina e quatro outros corredores faríamos o percurso duas vezes, totalizando "apenas" 50km. 

Você só precisa chegar na estação de água, pensei. São só 7,5km. Você faz 7,5km. Olhe a floresta na ravina. Ouça o Cardinal e o Chickadee. Você está aqui. Fique aqui. Fique agora. Não deixe a mente dispersar para problemas que não estão aqui. Não pense em depois. Não pense no que foi. Sinta os cascalhos sob os pés. O cheiro da terra quente e do carvão fumegando num quintal distante. As cigarras estão cantando. Há um pica-pau preto-e-branco, com um desenho intrincado nas penas das costas, no alto de um carvalho jovem enrolado em videiras carregadas de uvas selvagens azedas demais para se comer. 

"Good job!", sorri uma mulher numa bicicleta, passando por mim. "É uma corrida?", pergunta uma senhora pequena, curiosa com a bandeirola cor-de-laranja pendurada num galho de árvore ao lado da estrada. 

A estação de água parece um oásis. Esvazio o resto da minha garrafa sobre minha nuca quente, e preencho metade dela com uma bebida isotônica sabor artificial de laranja. Consigo sentir os sais minerais preenchendo lugares vazios em meu corpo. A equipe oferece gelo, para abaixar a temperatura do corpo. Enrolo uns pedaços no buff, que vai ao redor do pescoço. O gelo apoiado à nuca me provoca arrepios. Apanho mais umas outras pedras e, rindo deslizo para dentro do top. Ar condicionado pessoal. Tchoc, tchoc, tchoc, faz o gelo dentro do top. Não faz mais sentido ficar de camiseta. Arranco a regata que me pesa e amarro à pochete que carrega a garrafa, o celular e as bananinhas. Há muitos anos que não estou na minha melhor forma estética. Meu excesso sobra por cima do elástico da legging preta. Quem se importa? Meu corpo é forte e está correndo sob o sol, e por isso é lindo como ele é. Meu corpo funciona. Eu me lembro de quando ele não funcionou. Um corpo que funciona é maravilhoso.

Agradeço à equipe e começo a voltar para o meio do caminho, empolgada com a perspectiva de começar o segundo loop.

Aos 21km, corro solta, e meu corpo parece ter se conformado com a distância. Não há mais dúvida: minhas pernas sabem que vamos correr longe. Faço 25km em menos de três horas, o que é empolgante.Talvez eu consiga fazer 50km em menos de 6. Vamos ver. Talvez se eu acelerar um pouco. Isso, vou correr mais rápido. Olha só, estou indo super rápido. Pára. Pára tudo. Você está louca? Faz 36oC sob o sol do meio dia, e a última refeição que você fez foi um pratinho de mingau às nove da manhã. Vai com calma. Você nunca fez isso. O importante é terminar. E terminar bem, sem se machucar. Que é que tempo importa? O que você está tentando provar? E para quem? Isso é seu ego falando, tentando ferrar com você. Vai na manha. Está quente pra burro. Bebe água. Esfria o corpo. Vai. Na. Manha. Devagar e sempre.

Na estação da largada, do meio do caminho, há uma bica. Abro a torneira e enfio a cabeça inteira embaixo da água gelada, que resfria minha pele em ebulição e me acorda como café de manhã. É como se tivesse começado a correr agora. 

Vai na manha. 

Começo a segunda volta assobiando outra música: "Slow ride...Take it easy..." 

O céu começa a encobrir, e a sombra cinzenta das nuvens escurece a trilha mas não traz descanso. A chuva é uma promessa sem lastro, que não se cumpre, apenas oprime meu corpo, tornando o ar mais denso, como um cobertor molhado. Enxugo o suor que escorre por minha testa e é recolhido por minhas sobrancelhas, apenas para despencar numa gota gorda pela curva de meu nariz e em direção a meus olhos. O sal arde minha vista feito água do mar. 

Começo a me lembrar das trilhas onde vinha correndo, em Ottawa. A Trans-Canadian Trail, uma trilha larga que corta o país de ponta a ponta, era exatamente como aquele caminho da prova. Terra seca, poeirenta, grudando nas panturrilhas e entrando pelo nariz. Cascalho que rola sob os pés. E uma retidão falsa, que engana, que causa um cansaço que vem não sei de onde, até você se dar conta de que há uma ligeira inclinação, pequena mas constante, por quilômetros e quilômetros, que vai acumulando no esforço das panturrilhas que te empurram num invisível morro acima. Dou-me conta de que quase todo aquele percurso de 5km até a estação de água é uma ladeira como a Trans-Canadian.

Mais água, mais isotônico, mais gelo. A volta é ladeira abaixo, e solto o corpo. As nuvens liberam meia dúzia de gotas finas que evaporam tão logo tocam meus ombros, quentes como asfalto no sol. Resta um calor grudento e pesado, cheirando a pântano, como o bafo de um cachorro grande antes de lamber seu rosto. Olho o relógio. 32km. Quem corre maratonas chama essa marca de "O Paredão". The Wall. Se você vai quebrar durante uma maratona, há grandes chances que seja no quilômetro 32. Passo por esses números alegre. Meu corpo está bem. Eu estou bem. Está tudo bem. Eu não vou quebrar. Não vou. Mas quem disse? Há quanto tempo você não corre mais que 32km? Você correu exatamente 32 lá em Ottawa  na semana passada e ficou exausta. Você já está exausta. E ainda tem que correr mais 18km! DEZOITO! Sabe quanto é isso? Onde você estava com a cabeça quando se inscreveu nessa prova? Você fez  UMA maratona há dois anos atrás! Ficou seis meses sem correr. Você tem fascite plantar! Isso com certeza vai arrebentar seu pé pra sempre! Tá sentido essa dor na lateral dos joelhos? Isso é DESPREPARO. Você não fez os agachamentos que deveria ter feito. Você vai quebrar. Fez duas corridas de 30km nos últimos seis meses e acha que vai fazer 50km? Você é idiota? 

CALA A BOCA! CALA A MERDA DA SUA BOCA!

Está tudo bem. Pernas, vocês conseguem. Ali na frente está a estação de água de novo, e a gente vai completar 35km. E vai ficar tudo bem. Eu ainda tenho fôlego. Eu consigo cantar enquanto corro. Vocês estão cansadinhas, pernas, mas se vocês me ajudarem nessa, eu vou tratar vocês muito bem depois. Vai ter massagem, vai ter creminho, vai ter banho de banheira e muito descanso. Vocês conseguem. 


Mas as pernas doíam. Eu lembrava daquilo, de como o corpo muda depois dos trinta e poucos quilômetros. Lembrei de como me senti aos 37km na Maratona de Toronto. Aquela sensação de musculatura enrijecendo, movimentos travando, feito engrenagens sem óleo. Pensei em Murakami. Em como ele descreve suas ultra-maratonas.Em como ele se convence de que seu corpo é uma máquina que não sente, para assim seguir em frente. 

Mas eu não sou uma máquina. Meu corpo é de carne, e é natural, é selvagem. Meu corpo foi feito para isso. Minhas pernas foram feitas para correr na floresta. É minha mente, meu racional, meu ego de apartamento e televisão que quer me convencer do contrário. Inspira fundo. Traz atenção para a fontanela, aquele pontinho no topo da sua cabeça. Fica lá. Você não é seu corpo. Você é essa floresta inteira. Você não é o seu corpo. Deixa ele seguir. Sente esse formigamento no topo da cabeça. Esse calor gelado, essa luz. Só vai. 

"Slow ride.. Take it easy..."

Quando atravesso o meio do caminho novamente, ouvindo as palmas de quem assiste, olho com desejo para a estrada do outro lado. A última volta. "You're almost there!", gritam."You're doing great!" 

Mas de repente há uma ladeira ali. Como eu não havia percebido que esse caminho tinha um inclinação, na primeira vez em que passei por lá? Assim como o braço de 5km, aquele era uma ladeira constante que se estendia por 7,5km até a estação de água. Os 7,5km mais longos de minha vida. Diminuí o passo e segui correndo, ou me movimentando da forma mais semelhante a uma corrida possível, estrada acima. Muitos participantes andavam. Alguns estrategicamente, outros com olhares desistentes. O calor nos arrastava, como se tentássemos escalar um paredão de lama. Os pés quase não saíam do chão. Minhas panturrilhas ardiam.

Você vai quebrar. Eu falei que você ia quebrar. 

Não vou.

Vai sim. Não vai nem completar uma maratona. Você vai ver.

Você não sabe de nada. Eu vou terminar a prova. 

Olha que vergonha, subir uma ladeira a 9min/km. 

Mas eu vou terminar.

Você não vai fazer em menos de 6 horas.Que vergonha.

Foda-se. Eu vou terminar. Não me importa o tempo. 

Suas panturrilhas vão rasgar ao meio. Você vai ter uma lesão e nunca mais vai correr. 

Fontanela. Fica na fontanela. Eu só preciso chegar na estação de água. Se eu chegar na estação de água, eu sou obrigada a voltar. É assim que eu sempre corri longe. Eu vou e sou obrigada a voltar. Se eu corri 5km pra longe de casa, eu tenho que voltar, e aí eu corri 10km. Se eu correr 15km, na verdade corri 30km. Quando você chegar na estação de água, já fez os 50km. Terminou. Nem que você tenha que andar os últimos 7km. Você fez. Você conseguiu. Fontanela. Fontanela. 

Vai dar tudo certo. Olha em volta. Fica aqui. Fica agora. Olha os gafanhotos abrindo asas de borboletas à sua volta. Ouve as folhas.

Os 42km chegaram no meio da ladeira. E a partir daí o território era desconhecido. Nunca havia corrido mais do que 42km. Meu corpo, de repente, não sabia o que fazer com aquilo, como se comportar, como continuar. Mas eu ria. Eu ainda tinha fôlego e energia. Eu havia corrido 42km. Uma maratona inteira. Cada passo extra que eu dava, repetia: "você é uma ultramaratonista; você é uma ultramaratonista".A míseros 1,5km de distância a estação de água me esperava. Eu podia continuar correndo aqueles 1,5km ladeira acima, sem saber o que aconteceriam nos últimos 7,5, para provar um ponto a meu ego ferido que não me permitia andar, ou poderia apanhar minha última bananinha e comer com calma, caminhando um pouco, para me preparar para o final.

O que era mais importante?

O quê?

Apanhei minha bananinha e comecei a andar aquele último quilômetro até a estação de água. "You're almost there!", gritavam os que desciam na direção contrária. Meus passos se alargavam e galgavam mais distância, enquanto eu mastigava e terminava de beber o que ainda havia de água em minha garrafa. Eu ultrapassava outros corredores que se arrastavam, pálidos, na lateral da estrada. "Good job!", eu dizia. "We are almost done!"

Chegar à estação encheu meu corpo de energia, como seu pudesse absorver alegria pelos pés. 

"Are you ok?", perguntou um rapaz da equipe. Pergunta padrão para todos os corredores que chegavam. 

"Eu estou excelente, na verdade. Da cintura pra cima, estou fantástica. O problema é que minhas pernas não concordam!", eu ri. "Mas essa é a última vez que eu vejo vocês!", brinquei. 

"É seu último loop? Ieeei! Parabéns!"

"Descer agora vai parecer que você está em alta velocidade!", disse uma corredora que fazia 160km, e já estava em seu terceiro ou quarto loop. 

"Você quer água ou isotônico? Quer gelo?", ofereceu uma mulher da equipe. 

"Quero tudo. Mas o que eu queria mesmo era uma cerveja!" Ela riu. "Próxima vez, vocês tem que fazer um "bonus track", em que o corredor termina a prova, mas se correr até aqui de novo, ganha cerveja!"

"Boa ideia! Hahah! Quanto você está fazendo?"

"50km. É minha primeira vez."

"Uuuuuuh. Dia difícil pra tentar 50 pela primeira vez."

"Pois é."

Agradeci à equipe e comecei a descida. Alguns passos. Você já terminou. É só descer. Você conseguiu. Sorria. Sorrir relaxa. Deixa a alegria vir. Você conseguiu.

Minhas pernas soltaram, devagar. Eu estava correndo de novo. Eu estava correndo bem. Surpreendentemente bem. No mesmo ritmo em que eu começara aquela corrida, mais de seis horas antes. Faltam 7km. Você consegue. Aqui. Agora. Sente essa brisa soprando de repente. Ergue os braços. Que delícia. Ouça o Cardinal. Assobie de volta. Faltam 6. Um corvo sobrevoa minha cabeça e para num galho nu à minha frente. Faltam 5,5. Se joga. Você conseguiu. Você conseguiu. Divirta-se. Faltam 4. Puta que pariu, você correu 50km. Faltam 3. Você disse que ia fazer, você foi lá e fez. Faltam 2. Você é uma ultramaratonista. Sabia disso? 50km! Sabe quanto é isso! É muita coisa! Falta 1km.UM QUILÔMETRO. Corre. Corre solto. Você consegue ver a linha de chegada. Aquele de camiseta amarela é seu filho! Vai, corre!

"Corre comigo até a chegada, Thomas!"

Palmas. Torcida. Estou voando. "É a mamãe!", grita Laura. Meu rosto se abre num sorriso grande que faz minha cabeça formigar. Passo pela linha de chegada com três passos largos que me fazem quase cair sobre o organizador que me esperava com a medalha de participação. "Congratulations! You've done it!" Eu esqueço de parar o tempo no meu relógio, porque o tempo, de verdade, não importa. 

50km. 

Depois de um ano acreditando que meu corpo havia começado algum estranho processo de decomposição e esfarelamento que jamais me permitiria correr novamente. Um ano em que minha mente me convenceu de que eu não conseguiria. 50km. 50km para me dar conta de que minha mente tem esse poder de me quebrar e me reconstruir, e que eu só preciso colocar a atenção no lugar certo. Não é o corpo que desiste. É a cabeça.

Fica aqui. Fica agora. Você consegue. 

"E aí? Foi difícil?"

Olho para Allex e rio. Laura tenta me abraçar mas desiste quando me vê grudenta. 

"Foi. Mas foi muito bom."

"Você correu 50km."

"Pois é. Na verdade, 51,5km. Tinha a margem de erro."

"Você correu tudo?"

"Andei 1km, no fim da ladeira do 42 pro 43. Então dos 51km, eu corri 50 e andei 1. Haha"

"Boa. Vem. Eu te trouxe comida. Vou te levar numa cervejaria pra gente comemorar antes de ir pra casa." 

"Oba!"

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O lado de fora


"Vai pra rua e volta na hora do almoço!", minha mãe ouvia quando criança, nos idos de 1900 e Guaraná com rolha. Rio alto quando ouço a frase deixando minha boca, num berro já semi-ouvido alcançando orelhas já idas na distância. 

"Vai brincar lá fora, que o dia tá bonito e logo logo é inverno", Allex emenda. Terrorismo climático aplicado ao parenting.

No primeiro dia em que as crianças sumiram, ficamos inquietos. Nossa casa fica num "Crescent", que é como chamam essas ruas que levam nada a lugar nenhum, onde não passa ônibus, só tráfego local. Rua tranquila, com jeito de vila do Chaves. As casas aqui não têm muros. Muitos dos quintais, inclusive o nosso, são abertos, com cercas que nos separam dos vizinhos, mas não do trecho de bosque que corre atrás das casas. "Lá fora" é um conceito amplo, pois não tem limites. Lá fora é a rua, é o quintal, é o bosque, é o parquinho da rua de trás, é o quintal do vizinho, o jardim da frente do amigo, a trilha que leva ao mercado. E enquanto eu bebericava minha caipirinha de domingo no lado de fora que eu considero o quintal, e Allex colocava o queijo Haloumi (que bem substitui o Coalho) na churrasqueira, nos perguntávamos quando as crianças pretendiam voltar pra casa. 

"Vão voltar quando tiverem fome", sugeri. 

"Espero que sim", respondeu.

"Acho que é assim que se sente mãe de adolescente."

"Vai se acostumando." 

A alegria de uma rede.

Demorou um dia inteiro de mudança para tirar as crianças do apartamento, mas uma semana inteira para tirar o apartamento de dentro das crianças. Na primeira semana, aproveitaram os seus quartos, cada um com o seu, pela primeira vez na vida. Desapareceram em seus mundos de Lego, gibis, cadernos e lápis de cor. Os adultos, com trabalho pra fazer, móveis pra montar, casa pra limpar, agradeceram esse momento introvertido dos pimpolhos. 

Conforme a casa foi tomando forma, porém, ficou claro que nossos filhos já não se lembravam de como era morar em uma casa-casa. A lembrança do quintal da casa do Brasil e a rua do condomínio era muito longínqua. Os últimos quatro anos de apartamento-gaiola cortaram as pontas de suas asas, e agora era preciso ensiná-los a voar novamente.

Rio Ottawa.

Vocês sabem que vocês podem ir no quintal quando quiserem, né?

Vocês sabem que podem brincar no bosque, né?

Vocês sabem que podem brincar na rua, né?

Vocês sabem que podem pegar a bicicleta e explorar o bairro, né? 

É só avisar que está saindo, dizer aonde vai e a que horas volta. 

Vai sair pra andar. Nem precisa ser de bicicleta.

Dá uma volta no quarteirão. Aí dá uma volta ao contrário. Aí vai até a próxima rua. Lê o nome na placa. Olha pra trás pra saber voltar, que nem na trilha. 

Você sabe o seu endereço de cor? Pra perguntar o caminho, se precisar? 

Só não pode entrar na casa de ninguém, tá? Nem no carro.

Vai, pode ir. Olha quanta criança da idade de vocês andando sozinha tem por aqui! 

Sai. Vai lá falar com as crianças. Pode brincar. Tudo bem que é depois do jantar. Criançada aqui sai pra brincar mais tarde mesmo. Vai lá fazer amigos.Volta às nove. 

Em dois dias, os dois já tinham aprendido o que era ser livre. Porque liberdade tem disso de não matar sede com gole pequeno. Depois do café, pulam pro quintal da vizinha para fazer carinho nos gatos. Depois do almoço, correm para a casa da esquina para chamar os novos amigos. Desaparecem por duas, três horas, e voltam para pegar a arminha de água, fazer xixi ou devolver a bicicleta na garagem. E, de repente, há um estranho silêncio e uma ausência boa de infância acontecendo, em algum lugar, sem a constante supervisão parental que foi tão estressante durante o último ano e meio de escola online. 

O momento agora é de parar e escutar e entender o novo ritmo que a casa pede, pois cada casa dança de um jeito. Essa casa baila gostoso. Respeita as pausas. Minha cozinha tem sentido isso, ou eu tenho sentido minha cozinha assim. Essa casa, no verão, pede comida no jardim. Pede churrasco e acepipes, comida leve e sem horário. Come-se quando se tem fome. Aquela rigidez de outrora dispersou no vento. As crianças curtem a noite clara dos dias longos de verão, e me alimento dos risos que entram pela janela, enquanto invento um jantar com alguma coisa que comprei meia hora antes no mercado, no improviso do meu apetite imediato. A brincadeira acaba quando a luz muda através do galhos das árvores. Janta-se à mesa da sala de jantar. Muito adulto, sala de jantar. Banho e cama. Às vezes às nove. Às vezes às onze, que eles estão brincando tranquilos no quarto, ou vendo desenho na sala, e eu só quero continuar o papo lá fora, ouvindo o som estalado dos troncos das árvores balançando no vento, e estapeando os vorazes mosquitos canadenses que insistem em se alimentar de minhas pernas. 

 Só os mosquitos continuam "snacking". 

"Posso ter um snack?", foi a frase que mais ouvi durante o ano e meio de quarentena. Criança entediada matando tédio com a boca. Conheço bem. Fui a rainha de lanchar tédio durante minha primeira década de vida. Lá fora, ninguém lembra de fazer lanche. E quando o estômago está nas costas, que coincidência, é justo a hora de sentar pra comer. Refeição-refeição. Cafe, almoço, jantar. 

Talvez seja a cozinha diferente que ainda não se abriu pra mim, talvez seja o mercado novo que pouco conheço. Mas minha geladeira anda vazia de qualquer coisa que não seja de café da manhã. No meio do dia me dá umas vontades, e sigo o cheiro delas até o mercado. Compro o que quero comer, volto, preparo, como. No dia seguinte, tudo de novo. Feito descobrir trilha no parque, vou andando devagar pelas comidas que essa casa pede. Entre um churrasco e outro, um macarrão. Arrisco um peixe, mas já deu pra ver que o forte desse mercado não é peixe não. Bora lá achar peixeiro longe. Ando a esmo pelo mercado, sem imaginar prato nenhum. Falta inspiração. Tipo fotógrafo que ainda não achou o ângulo, que ainda não entendeu a luz. 

Tentando decifrar fomes e ingredientes na luz da minha cozinha.
 

Nesta manhã, vou ao mercado pegar ovos, e dou de cara com favas. Favas! Que não encontro desde que me mudei para o Canadá, e que já confundi com pacotinhos de edamame um sem número de vezes. Favas! Lembro que tenho Pecorino na geladeira.Fava fresca com pecorino! Olho os tomates coloridos e apanho uma Burrata. Abobrinhas para rechear. Alcachofras! Uma miríade de pratos que eu gostava de preparar me vêm à mente de repente, uma enxurrada de memórias do meu primeiro apartamento e da casa no Brasil. É inspiração que faltava? Achei.

Essa casa tem disso, de parecer um amálgama de todos os lugares em que morei. Parece que moro aqui há décadas. O crocitar dos corvos ao fim do dia desperta criaturas adormecidas. Lembranças de quem fui brotam da terra onde danço descalça. Surpreendo-me fazendo coisas como se nunca tivesse deixado de fazê-las, como quem por acaso encontra conhecidos em viagens ao exterior. Nossa, você por aqui! Quanto tempo! 

Encontro o lado de fora, meu velho conhecido, amigo distante que admirei naquela viagem à Itália que virou livro (já comprou o seu?), e ele me olha e olho para ele, e nos abraçamos forte, a memória muscular daquela liberdade, daquele ar, daquele céu, fazendo cócegas em minha alma. Minha alma se alimenta de árvores ao vento e passarinhos, de um chá silencioso refletindo nuvens.

Iogurte com fruta e chá depois da corrida, e uma enxurrada de lembranças de quem eu sou.
 

Retorno. Resgate. Pode uma sensação ser concreta? A roda dando a volta completa. Que nem filme de fantasia, quando a engrenagem estala e uma porta secreta é aberta. 

No meio da tarde, as crianças aparecem, assim, vindas pelo lado de trás, do bosque para o quintal. 

"Tem almoço? Tô com fome."

"Falei que eles viriam quando tivessem fome! Tem sim. Tem milho, queijo coalho, linguiça."

"A gente pode ir lá fora de novo depois de comer?"

"Claro que pode. Volta às nove."

....

 

Num momento inspirado, apanhei o livro da Suzanne Goin para preparar essa salada de tomates, que, de verdade, é mais sugestão que receita. Às vezes, tomate com sal basta. Às vezes, vale a pena ser meio metida à besta. 

SALADA DE TOMATES METIDA À BESTA

(quase nada adaptada do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes: 

  • 150g pão amanhecido, rasgado em pedacinhos
  • 1/2xic. azeite
  • 1 colh (sopa) orégano seco (eu não tinha e usei tomilho fresco)
  • 1/2 dente de alho
  • 1 1/2 colh (sopa) de vinagre de vinho tinto (usei de maçã, tanto faz)
  • 1 colh (sopa) vinagre balsâmico
  • 1,5kg tomates de cores e formas diferentes, ou simplesmente os tomates mais bonitos e maduros que você encontrar
  • 1 colh (chá) sal
  • um punhado de folhas de manjericão (pode ser de cores diferentes, ou todas iguais)
  • 500g burrata ou mozzarella de búfala
  • 1/2 xic. echalotas fatiadas fino (ou cebola roxa)
  • 1/4 xic. salsinha picada (confesso que esqueci de colocar e não fez falta)
  • pimenta-do-reino a gosto

Preparo:

  1. Coloque duas colh. (sopa) do azeite numa frigideira que comporte todos os pedacinhos de pão e leve a fogo médio, misturando às vezes, até que todos os pedacinhos estejam agradavelmente dourados. Tire do fogo e reserve os croutons. 
  2. Num pilão ou mini processador, bata o orégano (ou tomilho), alho, 1/4 colh (chá) sal até virar uma pasta. Junte os vinagres, e misture até que a pasta se dissolva neles. Misture 6 colh. (sopa) de azeite, experimente e acerte o tempero. 
  3. Corte os tomates em fatias ou cunhas ou ao meio, dependendo de seu tamanho e formato, retirando qualquer parte verde e dura próxima ao centro. Tempere os tomates com uma pitada de sal. Disponha os tomates na travessa onde você vai servir a salada, intercalando formas e tamanhos, colocando alguns pedaços da burrata ou mozzarella entre os tomates, e temperando com metade vinagrete. 
  4. Polvilhe a salada com as echalotas fatiadas, os croutons, as ervas (manjericão e salsinha) uma pitada de sal e pimenta e o restante do vinagrete. Sirva.


Cozinhe isso também!

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