terça-feira, 27 de julho de 2021

Abraça o perrengue e vai: a jornada épica de uma mudança


Ready.
Set.
Go.

Acordamos às seis da manhã. Bem, honestamente, acordar não é o termo correto. Acordar infere um anterior estado adormecido, que, no caso, nunca aconteceu. Num misto de ansiedade e excesso de adrenalina pela noite passada desmontando móveis e encaixotando coisas, o sono nunca veio. 

Fomos buscar café da manhã no Tim Horton's, a Starbucks canadense, enquanto as crianças terminavam de acordar. Elas sim acordaram, uma vez que de fato dormiram. Um copo de café e um english muffin com presunto e queijo para cada um parecia suficiente. O plano era sair de Toronto ao meio-dia e meia, e almoçar na estrada. O apartamento tinha cheiro de empolgação e aquele excesso de confiança que deveria ativar um sensor interno de que tudo está prestes a dar errado. 

Mais uma vez, deixamos as crianças e seus english muffins, e levei Allex de carro até a garagem da U-Haul, para que fizesse o check-out do caminhão que havíamos reservado para as 7:30. "Volte para casa e me espere nos fundos do prédio, para me ajudar  dar ré ali", disse ele, e foi o que fiz. Pedi às crianças que tirassem os lençóis de seus colchões para que eu os colocasse na mala com os meus, e descemos todos para esperar o papai e seu caminhão.

Assim que fui ao fundo dos prédios, dei-me conta de que a equipe de manutenção havia deixado todas as caçambas de lixo na entrada do prédio, e que o caminhão não poderia passar. Também não tínhamos tido nenhum contato com o responsável por nos ensinar como travar um dos elevadores para que apenas nós pudéssemos usá-lo. Enquanto as crianças corriam pela área comum do prédio, se dependurando em corrimãos e fazendo buquês de flores arrancadas do jardim do condomínio, eu telefonava para o Serviço ao Residente, tentando fazer com que alguém removesse as caçambas e viesse falar comigo sobre os elevadores, intercalando as musiquinhas de espera com minha delicada gritaria com os pimpolhos hiperativos: "Pára de arrancar as flor do jardim, cáspita, e vê se não se pendura aí que isso não aguenta o teu peso e eu não tenho tempo de te levar no hospital se você quebrar teus dentes no chão!"

Respira. Minha paciência é inexistente quando estou com sono.

Enquanto isso, na U-Haul, Allex inspecionava o caminhão, para descobrir que o cadeado que trancaria nossa vida inteira estava quebrado. Depois de esperar na fila por vinte minutos para reclamar do cadeado, a senhora fofa que o atendeu foi tão delicada com ele quanto eu era com as crianças: "O problema não é meu. Se você quer um cadeado que funcione, pode comprar esse por dez dólares."

Dez dólares a menos, Allex chegou dando ré no caminhão nos fundos do prédio. Fazia trinta e dois segundos que um faxineiro me havia ajudado a empurrar as caçambas e ensinado a operar a trava do elevador. 

Ainda assim, tínhamos sorrisos no rosto e tudo parecia perfeitamente alinhado com os planos. Estava tudo pronto para começarmos e eram exatamente nove horas, como previsto.


It's show time.

As crianças ficaram de olho no caminhão, enquanto nós dois subíamos até o apartamento para descer as primeiras caixas pesadas de livros com a ajuda de carrinhos de mão igualmente alugados.

Esse é aquele momento em que você deve estar se perguntando: mas cadê a equipe de mudança? 

A equipe de mudança custa caro num país em que os serviços são bem remunerados. América do Norte: terra do Do It Yourself. Sabe todas aquelas séries e filmes passadas em Nova Iorque, em que o personagem principal chama os melhores amigos para descer a poltrona e as caixas de livro pro caminhãozinho? Pronto. Você entendeu. Sim. Nós estávamos fazendo a mudança inteira sozinhos. Nós dois. De encaixotar livros, embalar louça, desmontar mesa e sofá, a transportar tudo para o caminhão e então dirigir o caminhão até a casa nova, descarregar tudo, remontar e reguardar. O plano era descer tudo para o caminhão das nove ao meio-dia, dar aquela última limpadinha no apartamento, largar as chaves no escritório da manutenção e, à uma da tarde, partir para Ottawa. Allex dirigiria o caminhão,  e eu, o carro, com as crianças, e os itens mais frágeis. 

Esse era o plano. 

Conforme carregávamos o caminhão, no entanto, algo ficou dolorosamente claro: a caçamba era muito pequena. "Temos poucas coisas", eu havia dito. "Vai ser fácil", ele concordara.

Não foi. 

"Sobe você e vai trazendo tudo, e eu fico aqui montando o quebra-cabeça", eu disse, depois de cinco minutos de discussão sobre termos ou não desmontado os bancos, ter ou não comprado mais caixas, levar ou não minhas plantas e P*TA QUE PARIU, PÁRA DE ARRANCAR PLANTA E DESCE DO CARRINHO DE MÃO QUE SE VOCÊ PERDER OS DENTES VOU TE DEIXAR BANGUELA PRO RESTO DA VIDA, CÁSPITA!

Mudança é super divertido, eu sempre disse. Né?

As crianças desta vez foram gentilmente obrigadas a carregar tralha do apartamento para o caminhão junto com o pai. Não porque eles poderiam ajudar muito, mas como estratégia para pararem de aprontar. Enquanto eles ficavam no sobe e desce de elevador, eu desmontava todo o caminhão e remontava tudo de novo, como apenas uma criança que jogou Tetris na cadeira do dentista durante oito diferentes obturações conseguiria. Ana Elisa: oito cáries na boca, mas campeã de Tetris. Há!

Com precisão cirúrgica e velocidade que me fez sentir como aqueles japoneses em competição de resolver cubo mágico, fui combinado as variáveis peso, fragilidade, tamanho, resistência e flexibilidade, para criar paredões herméticos de caixas, objetos e partes de mobília do chão ao teto do caminhão.

"Não vai caber tudo. Ainda tem as bicicletas e aquele monte de coisa solta que sobrou lá em cima", resmungou Allex, exasperado. Coisas soltas. Mudança tem disso de ser afrodisíaca par tralha que não cabe em lugar nenhum, e, nos quarenta e cinco do segundo tempo, elas se reproduzem feito coelhos.  "Cabe sim", eu disse, tentando encontrar no meu eu sonolento alguma esperança de não ter de me desfazer das minhas plantas."Não cabe", ele disse. "Vou buscar o carro pra deixar aqui e ver o que cabe nele e P*RRA, TUA MÃE JÁ NÃO DISSE QUE O CARRINHO DE MÃO NÃO É SKATE, CARAMBA?"

Enquanto ele buscava o carro na garagem, eu tentava explicar para as crianças porque é que já eram duas da tarde e a gente ainda não tinha almoçado, e porque apesar de estar todo mundo com fome, a gente não tinha tempo de parar pra comer, porque iam cancelar nosso elevador e tinha um caminhão de construção querendo a nossa vaga e a gente ia ser expulso dali sem ter terminado de carregar tudo.

Allex estacionou o carro atrás do caminhão, e começou a tentar encaixar a maior quantidade de tralha lá dentro entre a TV e a cafeteira, enquanto as crianças e eu trazíamos a tralha solta do apartamento usando o elevador comum, pois nosso tempo de elevador acabara, mesmo com a boa vontade do pessoal da manutenção, e agora tínhamos os moços da reforma no nosso pescoço. 

Num dado momento, o colchão king size escorregou e empurrou pra fora do caminhão minha poltrona amarela, que caiu de ponta cabeça no chão, a dois centímetros do monitor do computador.

Gente, que divertido que é fazer mudança! Né?

"Termina de espremer tudo aí dentro eu vou limpar o apartamento!", berrei, correndo para o lobby. Varre varre varre, esfrega esfrega esfrega. Olha o lago pela última vez. Tchau lago. Tchau, apartamento. A foto mal enquadrada e fora de foco dá uma ideia da pressa que eu tinha de fechar tudo e ir embora.

 

"Coube tudo?", perguntei, apanhando a chave do Allex para juntar ao restante e devolver no escritório. "Sim. Espero que não quebre nada."
"E a TV? Tá no carro?"
"Tá. Eu abaixei um lado do banco e coube em pé."
"Vamos?"
"Vamos."

Fui até o carro, apanhei duas plantinhas que iam pro lixo e enfiei nas laterais das portas do carro. Plantinha muquiada. Beijoca, te amo, se cuida na estrada, vou te seguindo, a gente pára no On Route de Port Hope pra comer.

O bom humor e a paciência foram restaurados com o fechar do cadeado de dez dólares na porta do caminhão e o ligar dos motores.


"Mãe, tô com fome".
"Eu sei, filho. Eu também."

A pessoa lembrou de deixar um lanche pronto pra emergência? CLARQUENÃO.

Quando deixamos os fundos do prédio em direção à estrada, eram QUATRO E MEIA DA TARDE.

Port Hope fica a 89km de Toronto. Às quatro e meia da tarde numa quinta-feira, adivinhe só, havia um trânsito digno da Marginal Pinheiros com chuva. Não fosse o carro e o caminhão serem automáticos, seriam uma hora e meia de engata primeira, engata segunda, primeira, segunda, primeira, segunda. 

Já contei que a Laura enjoa? Laura enjoa. Desde bebê. Ela enjoa e vomita muito bem vomitado toda vez que seu transporte chacoalha ou fica nesse anda e pára, anda e pára. Ela já vomitou até no bonde de Toronto uma vez. É super divertido. Né? Uhú! É claro que eu dei remédio de enjoo pra ela antes de a gente sair. É claro que não funcionou porque ela estava de estômago vazio. Ieeei. 

"Mamãe, eu tô enjoada".  

Olho pelo espelho retrovisor e a criança está cinza. Olho em volta. Numa estrada de seis pistas, estou presa no trânsito bem no meio, sem a menor chance de chegar num acostamento. Abro as janelas, ligo o ventilador no máximo, começo a usar o acelerador e o freio com a delicadeza de uma bailarina.

"Tá melhor, Laura?"
"Um pouco. Mas eu ainda tô enjoada."
"Você vai vomitar?"
"Talvez."
"Ok. Deixa eu pensar. Não tem nenhuma sacolinha plástica aqui. Laura! Laura! O cesto de roupa suja tá do seu lado, não tá?"
"Tá."
"Enfia a mão nele e vê se você acha alguma camiseta grande da mamãe ou uma toalha."
"Achei uma toalha."
"ÓOoooooooteeeemo! Espalha ela no colo, aberta, e se for vomitar, vomita na toalha, please."
"Tá bom."

Laura é muito boa de vomitar com mira. Desde pequena ela sabe quando vai vomitar e sempre dá tempo de ela correr no banheiro e vomitar no vaso, sem sujar nada. Muito prático. 

Mas no fim não precisou. O trânsito aliviou, o enjoo passou e ela acabou pegando no sono. Não sem antes eu pedir pra que ela por favor deitasse a cabeça no ombro do irmão, porque do outro lado estava a tela da TV embalada em plástico-bolha.

Chegamos ao posto de conveniência de Port Hope às seis e meia, doze horas depois de nossa última refeição. Ninguém reclamou dos hambúrgueres de fast food e da batata frita. Nem eu, veja só. Quando comentei do meu cansaço para Allex, ele sugeriu açúcar no lugar do café. Antes de voltar para o carro, compramos chocolates para as crianças, e eu me dei o drink de café mais doce que encontrei no Starbucks antes de voltarmos à estrada. 

"Quanto tempo falta, mamãe?", Thomas perguntou, querendo acertar o timmer no seu relógio novo.
"Três horas e meia, filho." Laura ficou consternada. Por conta do trânsito até ali, uma viagem que costumava levar quatro horas e meia, demoraria cinco e meia no total. "Mas agora não tem trânsito, Laura", expliquei. "Só que agora troca o assento: Thomas vem pro meio, Laura vai pra janela, que eu não quero que ela enjoe mais."

A viagem seguiu tranquila. O super Caramel Vanilla Cookie Crunch Açúcar Com Mais Açúcar Coffee Frappuccino com Chantilly da Porcaria Toda do Starbucks funcionou, e pelo menos eu não sentia mais o cansaço da noite insone e das SEIS HORAS carregando peso. É lógico que eu esqueci de baixar no celular uma playlist de música para ouvir na estrada. Mas o Universo foi meu amigo e me ajudou a encontrar uma estação de rádio de Napanee que parecia uma seleção de karaoke feita sob medida para meu gosto musical eclético. As crianças já se acostumaram com a mãe cantando e dançando nas viagens de carro, e só sentiram falta da coreografia dramática dos braços enquanto eu me jogava em Roxette, Kelly Clarkson, Erasure, Backstreet Boys e Taylor Swift. Afinal, eu estava dirigindo. Só rolava chacoalhar os ombrinhos, como toda pessoa crescida nos anos 80 sabe fazer.

"Gente, olha pela janela. Esses bosquezinhos no meio das fazendas são ótimos para ver Deer (veado)!"
Laura suspirou.
"Ih, mamãe, eu tava aqui pensando que a gente justamente não viu NENHUM bicho na estrada até agora. E isso é muito estranho, porque a gente SEMPRE vê bicho na estrada. Aí eu pensei que é porque você tá dirigindo. Você não pode olhar em volta pra achar bicho, então a gente não vê nenhum. Depois disso só o papai vai dirigir, porque você tem que achar os bichos no caminho!"
"Hahah. Mamãe bruxa dos bichos."

Meia hora depois, numa estradinha menor e mais tranquila, apontei um campo de trigo ao lado da estrada, onde meia dúzia de veados com filhotes pastavam tranquilos. 

"Tá vendo só, mamãe? Você tem olho de ver bicho."
"Pois é."

A noite veio devagar, e as crianças foram silenciando no escuro. Ao nosso lado, uma lua cheia alaranjada do tamanho de um prato de bolo se escondia sob fiapos de nuvens cor de chumbo, feito uma lenta dança dos sete véus. Eu continuava seguindo o caminhão, agora de coração leve. A lua foi dormir e deixou em seu lugar uma chuva fina que sussurrava nos vidros.

Faltando uma hora para chegarmos, olho pelo retrovisor e me dou conta de que os dois adormeceram. Suspiro feliz por um segundo, até me dar conta de que Thomas está com o cabeção apoiado à tela da TV. Chamo seu nome. Chamo mais uma vez. Mais alto. Jogo o braço pra trás e cutuco sua perna. Leves tapinhas. Thomas. Thomas. THOOOOOOMAAAAAAAS. Lembro quando ele era pititico na cadeirinha do carro, e sua cabeça adormecida pendia para frente, sobre o cinto de segurança, e eu, aflita no meio da Marginal ou da Castelo Branco, esticava o braço para trás sem tirar o olho da direção, e ajeitava sua cabeça numa posição melhor, quase deslocando o ombro sobre o assento. THOOOOOOOMAAAAAAAS! Ele acorda. "Joga a cabeça no ombro da Laura, filho!" Ele obedece, sem dizer nada, e volta a dormir. TV sã e salva.

Chegamos à casa às onze da noite. A casa em que dormimos um mês antes, nos sacos de dormir que ainda estão ali nos quartos. Tiro tudo do carro, menos a TV e a cafeteira. As crianças vão à cozinha e se fazem um sanduíche com o pão e o salame comprados na estrada, e comem sobre os pratinhos de acampamento que havíamos deixado ali. Enquanto isso, Allex procurava uma vaga na vizinhança para estacionar o caminhão, já que nossa rua é rota de caminhão de bombeiro e não pode ter nada estacionado no meio-fio. O plano de descarregar o caminhão no mesmo dia foi pra cucuia.

"Vão escovar os dentes e cama, agora", diz Allex, quando volta da rua. Eu rio de nervoso. "O que foi?"
"As escovas estão num tupperware... no caminhão."
"Eita, p*rra."
"Pimpolhada, enxagua bem a boca e vai pra cama."
"E os nossos colchões?', Thomas pergunta.
"Estão no caminhão, ué."
"E a gente não vai pegar?"
"São onze e meia da noite, Thomas. A gente vai pegar amanhã, com todo o resto."

Beijo, abraço, abraço de novo, Thomas vai dizer boa noite pra Laura, pois estão separados pela primeira vez, e em dez minutos estão completamente adormecidos.

E foi assim que, depois de uma noite insone, seis horas carregando peso, cinco horas e meia dirigindo, e uma cerveja dividida no chão de nossa nova sala vazia, fomos todos dormir em sacos de dormir.


A pessoa dormiu? CLARQUENÃO.

Às seis e meia da manhã seguinte "acordamos" e fomos andar até a Starbucks a 500 metros dali para comprar café. Um cappuccino gigantesco e um croissant com queijo, levado de volta para comer em casa. Meu corpo inteiro se move como um brinquedo antigo cujos parafusos enferrujaram. Minha mente continua evitando pensar no trabalho que vai dar descarregar o caminhão. Mas quando levo meu café para a varanda da sala, abro um sorriso largo e solto um grito. "UM COELHO! Tem um COELHO no quintal!" Nhóin. Este brinquedo velho usa pilhas recarregáveis à base de fofura.

Às oito, o caminhão está estacionado em frente à casa. Allex alinha a agenda do dia comigo: "Seguinte. Eu tenho a tarde de folga, mas agora de manhã tenho dois calls da empresa. A gente vai descarregar tudo o mais rápido possível, que à tarde vêm os caras da máquina de lavar e depois o cara da internet. Quando eu estiver em reunião, você espera eu voltar pra ajudar, que a gente não tem pressa."

A gente não tinha pressa. Aí vem o vizinho novo, com quem a gente quer começar com o pé direito, e pede pra tirar o caminhão ao meio-dia, porque ele precisa sair da garagem.

"Ok, então enquanto eu estiver na reunião, você faz o que conseguir."

Desta vez, as crianças quiseram e puderam ajudar no processo todo. O que puderam carregar ou ajudar a carregar, carregaram. Esse vai na sala, esse vai na cozinha, esse vai pra garagem, esse você coloca no basement, esse vai pro meu quarto, esse pro seu, esse pro da Laura. Mas o que era pesado era pesado e ponto, e só adulto carregava. E como tinha caixa pesada! Já falei quanto livro eu tenho? Pois é. E os kettlebells? Ai, que divertido carregar kettlebelll, gente! Né? Não.

Allex, super empolgado, prepara os carrinhos de mão para descer tudo do caminhão e levar pra dentro. Eu rio. "Carrinho sobe escada, Allex?"

"Merda."

Haha. Vai tudo no braço. Um por um.

Chegou a hora do colchão de casal. Segura. Segura. Usa o carrinho pra descer o bicho do caminhão. E agora? Agora f*deu. A desgraça passou pela porta feito bala Toff entalando na garganta. Pensa um colchão PESADO. Agora vem a parte divertida. Já falei que minha casa não é térrea? Pois é. Já falei que ela é meio que feita em zigzag? Pois é. Quer dizer que ela não tem dois andares inteiros, mas que cada plano ocupa um meio-andar. Sete degraus pra sala, sete degraus pra cozinha, sete degraus pro meu quarto, sete degraus pro quarto das crianças. Praticamente uma espiral de degraus desenhada por alguém que não tinha transferidor pra fazer curva e desenhou um caracol quadrado. Agora pensa dois adultos cansados tentando subir um COLCHÃO DE MOLA KING SIZE três lances de escada acima. Ieeeeei! Divertido, né? Super. A gente ria muito, porque lembrava da cena do Friends, em que tentavam fazer curva com um sofá numa escada igualzinha. Ó. Foi ÓOOTEMO.

Depois disso, Allex foi para a reunião dele, porque é importante continuar pagando os boletos, e eu liberei as crianças para brincarem de Lego no quarto, enquanto eu terminava de descarregar as últimas caixas. Laura ainda quis me ajudar (ajuda bem-vinda) a  levar partes do sofá escada acima, e fez um ótimo trabalho. 

A última caixa de livros eu carreguei até a porta. Precisava subir um degrau para entrar. Coloquei um pé na soleira e fiz força, com a caixa nos braços. Nada. Vai, perna, sobe! Ahn-ahn. Tô mandando, perna, me obedece, cáspita! Nananinanão. Coloquei a caixa em cima do degrau e subi sem caixa nos braços, e foi desse jeito que eu fui "rolando" a caixa escada acima, usando a desgraça como se fosse um andador. A última vez em que meu corpo DESISTIU desse jeito foi quando terminei a travessia de Petrópolis-Teresópolis, acampando, e precisei que alguém me puxasse pra sair do carro pra ir à padaria tomar café, porque minhas pernas não tinham mais energia para erguer meu corpo em pé. Isso foi antes das crianças nascerem. Nem os 42km corridos na Maratona de Toronto em 2019 me cansaram desse jeito. Quando terminei a maratona, lembro de ter ido tomar banho, abrir uma cerveja e ainda ficar em pé fazendo o almoço pra galera toda. E ainda desci o cachorro.


Eram exatamente meio-dia quando eu fechei a rampa do caminhão pra que Allex o levasse para a vaga lá longe. O vizinho agradeceu. Ufa. Allex terminou de trabalhar, e veio montar a mesa da cozinha, e saímos para comprar esfihas na bakery ao lado. Almoçamos pela primeira vez no quintal, ouvindo o som dos pássaros e esquilos que habitam o minibosque que corre ao longo da parte de trás das casas. Mas o trabalho não havia terminado. Ele cuidou do cara da máquina de lavar e do cara da internet ao mesmo tempo, enquanto eu desempacotava toda a tralha da cozinha. Porque se tem um negócio que tem que estar funcionando em primeiro lugar é a cozinha. Alegria é descobrir que minha habilidade de empacotadora em mudança continua na garantia: nenhuma taça de vinho se feriu durante a mudança. 

No fim do dia, Allex instalou a cafeteira, enquanto eu descansava em minha poltrona, que não sofrera nenhum dano visível na queda do caminhão. As crianças escovaram os dentes COM MUITO CAPRICHO e foram dormir em suas camas, com lençóis fresquinhos da máquina de lavar nova. Fiquei chocada em descobrir que Thomas é um menino organizado, pois suas roupas já estavam em cabides e seu quarto estava todo em ordem, enquanto Laura parecia ter chacoalhado seu quarto com tudo dentro, feito um globo de neve. Lembrei de quando saí da casa de meus pais e minha mãe ficou igualmente chocada em descobrir que era minha irmã a bagunceira, e não eu.

Levei minha cerveja para a varanda, tentando ignorar a exaustão. Fechei os olhos para ouvir o canto dos últimos corvos atravessando os céus para se recolher ao bando, e quando os abri novamente, havia vaga-lumes por entre as árvores. Lembrei de quando havia vaga-lumes em São Paulo. Eu, pequenina, recolhendo os insetos brilhantes em caixas de fósforos, no parquinho do prédio.

Dormir no colchão que você mesma carregou escada acima tem gosto de justiça. 

Na manhã seguinte, bebericando meu cappuccino, eu brincava de ligue-os-pontos nas manchas roxas de meus braços e pernas. Eu parecia (e ainda pareço, enquanto escrevo isso) um dálmata. Minhas panturrilhas ardiam, de tanto sobe e desce degrau, e os músculos de meus antebraços estavam duros feito pedra.

"Me perguntaram por que é que a gente não pediu ajuda", comentei, rindo. "E eu disse que foi um misto de inocência com excesso de confiança."
"Ué", respondeu Allex."A gente fez, não fez? A gente fez sozinho. Chegou tudo inteiro. Foi difícil, mas deu tudo certo. Como é excesso de confiança se a gente foi lá e fez? Eu digo que a gente sabia exatamente do que era capaz."
"Você tem razão. Parabéns pra gente, então."
"Parabéns pra gente."

Epílogo: Allex pegou suas coisas, e foi dirigir quatro horas e meia de volta a Toronto para devolver o caminhão, e então pegar quatro horas e meia de trem para voltar a Ottawa, já que entregar o caminhão em outra cidade custava o dobro. "Pára de desmontar caixa", ele disse. "Descansa. Vai passear. A gente faz o resto junto depois, que vai mais rápido." Sim, senhor. Teve passeio de bicicleta pela vizinhança nova, teve visita ao mercado pra comprar flores e comidinhas, almoço no quintal, e cochilo. Merecido cochilo.

Fomos buscar Allex na estação de trem no fm do dia, e, quando atravessamos a porta, eu estava em casa.



segunda-feira, 5 de julho de 2021

Um lago por um rio.

Mensagens de Toronto


Caixas. Há caixas por todos os lados, há caixas em tudo o que eu vejo. Meu apartamento está uma bagunça. Como todo apartamento fica durante uma mudança. A vida em caixas, objetos que não sei se ainda quero, miudezas-lixo que surgem espontaneamente, em todos os cantos e todas as superfícies. Como é possível, encaixotar toda uma estante e, no dia seguinte, dezenas de minicoisas aparecerem novamente por lá? Sísifo feelings. Já que entramos no âmbito da mitologia, dá-me uma vontade de fazer a Fênix e tacar fogo em tudo e me mudar com a roupa do corpo. Recomeços bem recomeçados. 

Mas não posso, na verdade. Não é uma mudança como foi a última, do Brasil para o Canadá, em que tudo o que tínhamos foi vendido e doado e carregamos em apenas sete malas com quinze anos de história juntos. Também não é a mudança da casa dos pais para nosso primeiro apartamento, aquele da cozinhazinha que gerou esse blog. Naquela mudança, carregamos em mochilas e sacolas nossas poucas coisas que cabiam num quarto, e dois ou três móveis emprestados, levados à pé, pela rua, com pausas pra descansar as costas.

Na nossa segunda mudança, do apartamentinho para um apartamento maior, onde Thomas nasceu e onde achei que viveríamos para sempre (ironicamente foi o lugar onde menos vivemos, apenas um ano e meio), contratamos uma carretinha para levar fogão, geladeira, mesa e sofá. E botamos no porta-malas nossos livros, louças e computadores. 

Esta mudança lembra mais nossa terceira, quando saímos daquele apartamento para a casa da Aldeia da Serra, fora de São Paulo. Foi minha primeira vez morando fora da cidade onde eu nasci. Foi a primeira vez em que chorei em uma mudança. A gente precisa chorar quando uma parte da gente morre. Aquela mudança teve caminhão profissional. Teve a gente indo uma semana antes, pra dormir no colchão no chão e limpar tudo e arrumar a parte elétrica que, por algum motivo, sempre foi problema em nossas casas no Brasil. Era outra cidade, mas era perto o bastante para ir e vir de um lugar ao outro, para fazer a mudança em etapas. 

Spoiler da nova vista da janela em Ottawa.

Estamos mudando de cidade. De Toronto para Ottawa. Ottawa fica a quatro horas e meia de distância de Toronto. Já não é Aldeia da Serra pra São Paulo, ainda que a meia hora imaginária entre as duas pudesse, na realidade do trânsito da Castello Branco em dia de chuva, virar duas horas e meia. Fomos até a casa de Ottawa antes, para pegar as chaves. Dormimos no chão, em nossos sacos de dormir, e verificamos a parte elétrica, que, ainda bem, está ok.

A ideia da mudança não era nova. Desde que Allex começou a trabalhar numa empresa que se dividia entre as duas cidades, a gente tocava no assunto, às vezes. Mas parecia bobagem. Gostamos de Toronto, as crianças estão bem adaptadas na escola, nosso apartamento alugado tem uma localização maravilhosa, e tudo ia bem... até a quarentena. Essa quarentena que aqui em Ontário durou duas décadas e mais uns dias. Essa quarentena que nos fez conviver vinte e quatro horas, por um ano e meio, num espaço pequeno que não foi feito para isso. O apartamento pequeno funcionava lidamente numa situação em que todo mundo estava do lado de fora o tempo todo. Mas as crianças cresceram, e ficou claro que o espaço não comporta a energia e o tamanho de 10 e 8 anos como comportava 6 e 4.

Eu sufoquei. Meu espaço sumiu. O silêncio e harmonia externa de que preciso para manter o silêncio e a harmonia interna desapareceram. Claustrofobia. Ansiedade.

Foi numa terça de manhã, bebericando cappuccinos no quarto, enquanto as crianças se enfiavam na escola online, que o assunto surgiu de novo, de repente, mas não tão de repente assim.

Eu falava de espaço. Quando passamos uma semana em Paris, num apartamento de 21m2, esse conceito fez sentido como nunca havia feito em São Paulo: morar num lugar pequenino era possível, pois a cidade era seu quintal. Toronto tem disso de ser quintal, de chamar pra viver o lado de fora e só voltar pra casa pra dormir. Mas a quarentena matou Toronto. A quarentena fechou meu quintal e me enjaulou no meu apartamento pequeno. Toronto virou São Paulo.

Ele falava de futuro. Porque tem disso com a gente. Eu sou incapaz de me preocupar com futuro. Não sei nem o que vou jantar amanhã, como é que pode eu querer pensar em aposentadoria? Quero viver até os 120 anos, mas sei bem que a natureza faz o que quer e que eu posso morrer amanhã. Hedonista, irresponsável, sonhadora, lua em peixes, pode dar o nome que quiser. Eu estou em paz com isso e com o fato de que Allex e eu nos equilibramos bem nesse sentido, quando respeitamos nossa natureza verdadeira e nossas diferenças.

Bem, ele falava de futuro. De aposentadoria. De segurança financeira. De aluguel. De jogar dinheiro no lixo. De trocar aluguel por Mortgage (o nome do empréstimo pra comprar casa). Ele fazia contas. Ele falava de mercado imobiliário. A gente nunca conseguiu comprar nada nosso no Brasil, porque onde a bolha vai, a gente vai atrás. Estamos sempre um ano atrasados e nosso poder aquisitivo nunca pôde adquirir nada no lugar onde morávamos. E a gente tentou várias vezes. Toronto não é exceção. A cidade virou rapidamente uma das mais caras do mundo, e todos os dias os jornais mostram histórias absurdas de bangalôs minúsculos e caindo aos pedaços que foram vendidos pela bagatela de 1 milhão de dólares. 

A gente podia tentar Ottawa, ele disse. Meu trabalho já está lá, mas a bolha de Toronto ainda não. 

Pode ser, eu disse. Se isso for deixar você mais tranquilo e der mais espaço para as crianças, acho que eu topo.

O Universo tem dessas lindezas, e foi nesse instante em que o telefone tocou. Era o gerente do banco falando que nosso limite de empréstimo tinha aumentado.Oi, senhor gerente, muito obrigado por sua ligação; que coincidência, veja só, a gente tava falando justo disso. O senhor pode, por obséquio, fazer uma simulação de "mortgage" pra gente saber se a gente consegue comprar uma casinha em Ottawa?

E foi assim que a gente começou a procurar nossa casinha em Ottawa. 

Eu penso nessa história todas as vezes que minha ansiedade me impede de dormir, e que minha insônia abre a Caixa de Pandora dos pensamentos negativos. Porque essa história parece muito com aquela que nos trouxe para o Canadá. 

Toronto, vista da balsa a caminho de Toronto Islands. Muito amor.

Lá nos idos de 2015, a gente já vinha falando de sair do Brasil. De buscar não apenas a aventura do expatriamento que habitava meus sonhos, mas também oportunidades novas para nossa família. Quando ofereceram uma vaga no Panamá, Allex aceitou sem titubear. Panamá. Nunca imaginei. Mas vambora que a gente não sai olhando dente de cavalo que cai no seu colo quando você pediu. Foram meses de sonhar acordado, de pesquisar sobre o país, de imaginar nossa vida lá. Quando estávamos em Paris, eu deixei de comprar um casaco felpudo que eu amei de paixão porque "faz calor no Panamá, e eu nunca vou usar isso lá". Era tanta certeza. Faltava só assinar o contrato e a mudança estava selada. Todo o resto já havia sido negociado. No dia em que voltamos de Paris, o telefone tocou duas vezes. Na primeira vez, pra dizer que o escritório do Panamá havia sido reestruturado e a vaga não existia mais. Eu chorei. A gente tem que chorar quando uma parte da gente morre. Na segunda vez em que o telefone tocou, meia hora depois, era um amigo nosso, que comentou, assim, en passant, que havia um consultor de imigração canadense na cidade, ainda aceitando entrevistas. Eu peguei a última vaga do último dia disponível do consultor. E viemos para o Canadá.

Durante os dois anos que duraram o processo de imigração, era essa história que acalmava os pensamentos negativos liberados pela Caixa de Pandora da minha insônia.

E cá estamos nós, novamente. No meio da mudança. 

Noutro dia, resolvi ler os textos escritos durante cada uma das minhas mudanças de casa, como um "respirar no saquinho" literário. Relembrar é importante. Porque mudança é que nem filho: a gente só faz de novo porque esqueceu como foi a vez anterior. Toda mudança é bagunça, toda mudança faz a casa parecer um campo de paintball, toda mudança faz surgir dos recônditos do inferno toda sorte de minitralha que você nem sabia que habitava suas gavetas. 

Toda mudança desequilibra, desarmoniza, destrói e desfaz. 

A bagunça externa anda me bagunçando internamente, é claro. Como toda boa libriana, preciso de harmonia pra viver. Nada menos harmônico do que uma sala cheia de caixa e tralha onde não se consegue nem passar vassoura. Mas seguimos. Respira no saquinho, literária e literalmente. 

Primeira cerveja com amiga em pátio aberto do ano.

Enquanto a mudança não vem, faço um pacto comigo mesmo de curtir meu quintal-cidade como não pude durante a quarentena. A vida volta, graças à ciência e ao bom senso que trouxe vacinação em massa. Dia bonito é para ser usado, e eu vou abusar de todos os meus dias bonitos em Toronto enquanto eles existirem.

Autografando livro num café de Toronto.

Parque, piquenique, bicicleta, praia, chopp com os amigos que eu não vejo há mais de um ano apesar de serem meus vizinhos, cafés com leitores queridos que compraram meu livro aqui no Canadá e me encontram pra que eu possa escrever dedicatória. Sonho ainda com a viagem ao Brasil para minha tarde de autógrafos. Ainda não chorei, porque essa parte minha eu não matei. Ela vive, moribunda, mas ainda esperançosa. 

Faço listas de passeios em Toronto, lugares para ver. Allex encaixa a lista num calendário. Eu uso o calendário como sugestão. Hoje eu estou afim de quê?

Cato a bicicleta para comprar croissants na minha bakery favorita.

Compro passagens da balsa para a ilha durante o café-da-manhã e monto um piquenique improvisado com o que sobrou na geladeira. Pulamos ondas na praia do lago.

Quero fazer o tubbing que não fiz em 2019, quando eu tive que cuidar do cachorro enquanto Allex, as crianças e minha irmã desciam o rio de boia (tube), em Elora Gorge. Allex tira o dia de folga numa quinta e vamos. Cobro do Universo o tubbing que ele me devia.

Cerveja no meio da meia-maratona. Steamwistle é uma cervejaria no centro.

Faço minha meia-matatona da Steamwistle. Essa minha tradição inventada de correr 10,5km até a cervejaria no centro da cidade, tomar um chopp (usar o banheiro) e voltar correndo mais 10,5km pra casa. Essa meia-maratona tem um gostinho especial. Primeira vez que corro 21km desde que meu corpo resolveu se desmantelar durante a quarentena: pé-quebrado, pé-torcido, fascite plantar e nervo pinçado.

Acalmo o FOMO das listas usando dias de chuva para colocar mais coisas em caixas. 

E seguimos dizendo tchau a Toronto e às pessoas que nos acolheram aqui. Dizendo tchau à vista do lago que parece mar, ao High Park que me ensinou a correr de novo, às trilhas onde Gnocchi andava livre, sem coleira, olhando para trás para ter certeza de que eu o seguia direitinho. 


O lago. Mergulho nele mais um vez, e mais uma, cada vez podendo ser a última. Deixando minha pele dissolver em sua imensidão gelada e inerte. Deixo minha ansiedade virar imaginação, nadando para o grande rio na cidade nova. Um lago por um rio. Água parada por movimento. Fecho os olhos e me pergunto onde o rio vai me levar.

Cozinhe isso também!

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