sexta-feira, 11 de junho de 2021

Tá tudo bem. Tem Baked Chocolate Pudding.


Nós vamos nos mudar. Pronto. É bom tirar isso logo da frente, que é pra ninguém ficar ansioso.

Essa quarentena sem fim teria deixado todo mundo aqui em casa doido de verdade não fossem os parques e a primavera que chegou cedo, deliciosamente quente como eu nunca vi em Toronto. Imagina só, 28oC no fim de maio! Tão quente, que os splash pads (aqueles chafarizes nos playgrounds) abriram mais cedo. E as crianças, confinadas o dia todo à rotina de um gerente de marketing de quarenta anos, carinhas na tela e bunda na cadeira, puderam gastar toda a energia em ebulição no parque ao fim do dia.

Desligou computador, monta um lanche e parque neles. Santo parque. Os dias andam cada vez mais longos, e são sete da noite e o céu é claro e quente e não nos deixa voltar pra casa. Quem tem coragem de tirar criança feliz do parque? Eu tinha. Eles eram menores e eu sabia bem o que me aguardava no dia seguinte caso eu largasse a hora de dormir ao bel-prazer dos dois. Criança dormindo às dez da noite e acordando às seis da manhã. Se tem um negócio que a Laura herdou de mim é o mau humor de sono. Ninguém merece. Principalmente eu.

Mas eles cresceram. E ainda que Laura ainda não saiba reconhecer os próprios sinais de cansaço em seu temperamento, eles têm lidado melhor com horários menos rígidos. Aliás, tudo menos rígido. Rotina foi algo muito importante na primeira infância dos dois para deixá-los seguros e independentes. Criança que tem certeza de que o almoço está lá ao meio-dia e que segue sempre um ritual escova-dente-lê-história-tira-pulguinha-e-dorme, fica tranquila. Sabe o que esperar. Não existe ansiedade na hora de dormir se você sabe exatamente o que vai acontecer e quando. Todo dia é tudo sempre igual.

Só que rotina também aprisiona. TODO DIA É TUDO SEMPRE IGUAL. Principalmente gente com alma de passarinho, que quer ficar batendo asa por aí e improvisando vôo. O dia em que entendi o quanto os horários da escola engessaram minha alma, arrependi-me amargamente de ter matriculado a pimpolhada tão cedo. Vivesse a vida outra vez, teria rodado a cidade com a criançada até ser obrigada por lei a colocar os dois numa sala de aula.

Mas tem coisa que a gente precisa viver para aprender. 

Não é à toa que eu sou uma mãe melhor do lado de fora. Não é por meu amor incondicional por mato, mas porque posso saracotear com os dois por aí sem rumo, sem hora, ou relaxar e deixá-los explorar o que o houver sem interferência ou interrupção. 

Eu me divirto mais com meus filhos quando permito que eles experimentem o mundo e o tempo do mesmo modo como me faz feliz.

Agora que eles cresceram, maternidade parece às vezes um andar de bicicleta sem as mãos. Continuo conduzindo, mas posso relaxar e confiar que aquela roda que eu não controlo vai seguir em linha reta. E ninguém vai quebrar os dentes no chão. Nem sempre, pelo menos.


Então largo o guidão e não me preocupo com o jantar. As crianças montam um sanduíche com o que mais gostam e levam numa sacola, com toalha e uma arminha d'água, uma boneca e um dinossauro, um pote com melancia e outro com tomatinhos, e vamos ao parque sem hora para voltar. Sento e leio um livro. Converso com outros pais. Allex às vezes termina o trabalho mais cedo e se junta a nós, trazendo um imenso saco de pipoca temperado com sal, orégano e páprica que ele mói no meu pilão de madeira. Experimente. Fica muito bom. Às vezes ele traz uma cerveja pra gente dividir, escondidinha num desses copos térmicos de café.

Tiro os sapatos pra por os pés na grama. Inspiro o cheiro da terra sob o sol e do pólen suspenso no ar. Deixo a brisa morna levar as horas devagar.

São sete e meia e eles correm descalços na grama, cabelos molhados e risos largos, lagartas pequenas nas mãos, que lhes fazem cócegas nos dedos. "I'm going home!", dizem os amigos, acenando à distância, e esse é o sinal para recolher tudo e partir.

Às vezes paro no mercadinho a caminho de casa para catar uma baguette e um prosciutto, para comer com manteiga em casa, antes do banho. Outras, não precisa de nada a não ser tirar a areia do corpo num banho gostoso, escovar os dentes e ir dormir. Deixo que eles se demorem. Que venham sentar comigo para contar sobre seu dia. Que se espreguicem do lado do pai, no sofá, enquanto ele joga video-game com os amigos do Brasil. Sem pressa. Sem a pressa que eu tive um dia.

Às vezes sugiro que vão dormir cedo, quando vejo em seus rostos que é preciso. Outras, eles se arrastam à cama para lá das nove da noite, cobertos pela penumbra de uma persiana que, mesmo fechada, não resiste à luz azul clara e amarelada do entardecer do verão canadense, que se demora até as dez.

Nessa rotina sem rotina, tenho cozinhado pouco. Faço almoço. As sobras, requentadas, repaginadas, são jantar dos adultos que não se entupiram de framboesas no parquinho. Faz calor demais para se ter apetite. 

De vez em quando, assim, porque até a vontade anda também voluntariosa e vai e volta como quer, me dá as ganas de preparar um doce. 

 

 Laura tinha pedido para fazer uma receita de uma revistinha da Martha Stewart, um baked chocolate pudding, numa semana que calhou de chover e esfriar um pouco. Fizemos juntas, mas não deu certo. O tempo de cozimento estava errado e o pudding virou cake. "Tá tudo bem, mamãe, tá gostoso mesmo assim!" O lema da Laura. Tá tudo bem. Laura me lembra sempre de não me importar tanto. No dia seguinte, apanhei um livro mais confiável e fiz outra receita do mesmo doce, e desta vez o resultado foi maravilhoso. Crocante por fora, cremoso por dentro, paraíso do chocolate. (Receita no fim do post)

Naquele dia, Laura me deixou um recado escrito a canetinha: Thank you for doing almost everything I ask you to do. O bilhete mais lindo. 

A verdade é que mamãe anda mais relaxada, mais em contato com o que a faz feliz, e assim mamãe fica mais legal. Porque quando a mamãe se sente presa em circunstâncias fora do seu controle, ela tende a tentar controlar tudo à sua volta, e torna a vida de todo mundo um pequeno inferno. 

Tá tudo bem, eu digo.

Saí cedo para correr e chamei as crianças para virem comigo. Laura quis vir de bicicleta, mas Thomas preferiu ficar em casa lendo Asterix. "Não dá tempo, Ana, eles têm escola", Allex disse. 

"Ela chega dez minutos atrasada. Tá tudo bem."

Laura pedalou ao meu lado enquanto eu corria pela trilha ao longo da lagoa, e paramos para subir em árvores e ver patinhos-bebê nadando em meio aos juncos. "A gente tá atrasada, mamãe?", ela perguntava. "Fica tranquila, Laura. Curte sua manhã." E paramos novamente para ver os gansos e seus filhotes, desengonçados no gramado, de pés grandes e asinhas pequenas, feito meninos adolescentes. Ela apanhou duas penas grandes que estavam no chão e pediu que eu as carregasse até em casa, para colocá-las em seu altar da natureza, onde coleciona pedras, conchas, ovos de pássaro e pedaços de colmeias. 


 

Quando chegamos em casa, quinze minutos depois de a escola online começar, deu tempo de lavar as mãos e preparar um pão com manteiga. E quando ela ligou o computador, descobriu que a professora estava atrasada e ainda não tinha feito chamada. 

"Viu? Tá tudo bem."

O dia segue feito um rio quando ouço a voz no meu peito.

Essa mesma voz no peito que nos fez, numa manhã aleatória, resolver mudar. Mudar de casa. Mudar de cidade. Um comichão que sussurrava "vai agora". Algumas decisões acontecem feito a cena do chapéu do Indiana Jones. Corre que a porta tá fechando. Tipo criança escolhendo quem brinca de pega-pega no pátio da escola: quem quiser mudar põe o dedo aqui, que já vai fechar.

Fechou.

Vou seguindo esse rio no meu peito para aproveitar esse lago, esse parque, essa cidade e essas pessoas por algumas últimas semanas antes partir. Tento olhar, entender e dissolver o medo do novo que aparece em forma de tensão no pescoço, apertando aquele danado daquele nervo pinçado de novo. Relaxa, mulher. Até quiropraxista disse: não era nem para ter sintoma, esse nervo. É tudo tensão. Tudo cabeça. Só que cabeça adora isso de rotina previsível e horário fixo e controle das variáveis. Cabeça adora lembrar que não dá tempo de andar de bicicleta no parque ou que eu não deveria jantar sanduíche de novo. Sossega, cabeça. Deixa o coração mandar um pouco, que é nele que a alegria repousa, feito um lago. Acho que não é a toa que o coração parece uma xícara de chá quente quando a gente sente amor. Deixa o rio fluir para alimentar o lago. Cheio e quentinho.

Mergulha. Tá tudo bem. 

....



BÔNUS DE RIO FLUINDO, VERSÃO SUPERMERCADO: 

Noutro dia, me deu vontade de comer camarão. Assim, de repente, como se tivessem implantado a ideia na minha cabeça. Aqui na minha vizinhança só tem camarão congelado, desses que vem com sal e conservante. Ou tem, de vez em quando, no mercadinho orgânico, mas costuma ser caro e não tem sempre. Mas estava lá, aquela voz gritando no meu ouvido feito criança pequena fazendo birra na padaria. Só que ao invés de pedir Danette, a criança no meu peito gritava Camarão! 

Saí. Fazer o quê? Eu não tinha intenção de ir ao mercado, porque ainda tinha alguma comida em casa, então foi pura frescura voluntariosa. Coração gulosos e gourmet tinha razão, no entanto, que assim que pus o pé no mercado, desatei a rir: o camarão fresco estava em promoção. Metade do preço. O Universo é essa coisa linda, às vezes, se você estiver tranquilo em ser feliz com camarão em promoção. Paguei pelo camarão e fui no outro mercado pegar o macarrão da marca que eu gosto, porque a lombriga pedia macarrão com camarão. Olha que delícia falar isso em voz alta: macarrão com camarão. Enche a boca que nem palavrão dito com vontade.

No outro mercado, entrei na fila pra pagar por meu pacotinho de penne rigate, e a moça do caixa pergunta: "Você gostaria de um saco de batatas?"

"Como é que é?"

"Um saco de batatas. Você gostaria de um?"

"Desculpa. Não entendi. Um saco de batatas?"

"É. É de graça. Customer appretiation." 

"Bom. Sim, eu quero. Obrigada."

E assim eu saí do mercado com meu pacotinho de penne e um saco de 3kg de batatas de graça. 

Era batata pra burro, e é claro que o mercado estava dando batata porque elas estavam mais pra lá do que pra cá. O Universo pode ser legal, mas dono de supermercado de rede não dá ponto sem nó. Daí que eu saí cozinhando batata loucamente pra não deixar estragar, e eu terminei com um panela industrial de purê de batatas.

Povo aqui alucina com purê. Mas nem meus filhos, essas dragas, conseguem dar conta de tanto. 

Eu tenho uma paixão muito específica na cozinha, que é a arte do reaproveitamento. Quase sempre as melhores receitas são aquelas que reaproveitam sobras. E eu adoro qualquer receita além de gostosa ainda evite desperdício e me faça sentir competente. 

Esse é um jeito excelente de aproveitar uma quantidade gigante de purê de batatas. E é delicioso. Chama-se Oeufs Parmentier. Serve seis pessoas, mas minhas dragas comeram metade sozinhos. Você unta uma forma com bastante manteiga, e coloca lá dentro todo aquele seu delicioso purê de ontem (quantidade feita com mais ou menos meio quilo de batata, e misturado a manteiga e leite). Você abre seis buracos com uma colher e quebra ovos dentro deles. Cobre com uns 3/4xic de creme de leite fresco (se for crème fraîche, melhor ainda), tempera com sal e pimenta e joga no forno a 210oC até dourar e as claras estarem cozidas (uns vinte minutos, dependendo do forno). Sirva colheradas fartas, que desmontam no prato, para acompanhar uma salada bem verde, com folhas amargas. Dá pra ficar melhor?

:)

BAKED CHOCOLATE PUDDING

(Do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 170g chocolate meio amargo ou amargo(em torno de 70% mas não mais do que isso), picado
  • 115g manteiga sem sal, em pedaços
  • 3 ovos grandes
  • 2/3 xic. açúcar
  • pitada de sal
  • sorvete, para servir

Preparo: 

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e preaqueça a 190oC.
  2. Coloque o chocolate e a manteiga numa tigela em banho-maria e mexa frequentemente até que o chocolate derreta e se misture à manteiga. Retire do calor assim que estiver derretido.
  3. Na tigela da batedeira, bata os ovos, açúcar e o sal em velocidade alta até que fique fofo e amarelo bem claro, e com a consistência de chantilly (pode levar de 5 a 10 minutos).
  4. Misture um terço dos ovos ao chocolate, e então despeje a mistura de chocolate de volta à tigela com o restante dos ovos batidos. Misture com uma espátula, delicadamente, para não perder muito o volume do ar. 
  5. Divida a massa entre seis ramequins ou formas com capacidade para 1 xícara. Não é preciso untar. Nesse ponto você pode cobrir as forminhas e levar à geladeira para assar mais tarde. Apenas retire da geladeira meia hora antes de ir para o forno. 
  6. Coloque as forminhas numa assadeira e leve ao forno por15 a 20 minutos (um pouco mais se os puddings foram refrigerados), até que eles tenham inflado, estejam com a superfície seca e craquelada, mas ainda bem moles por dentro (você pode testar com um palito). 
  7. Sirva imediatamente, com uma bola de sorvete. Eles vão afundar assim que saírem do forno.Se for servir para crianças, coloque os ramequins dentro de potes ou pratinhos resistentes ao calor que possam conter os ramequins quentes sem que eles escorreguem pra lá e pra cá quando a criança meter a colher lá dentro. Assim, a criança pode segurar o pote de fora e comer confortavelmente, sem o risco de queimar as mãos no ramequin quente de forno. :)

terça-feira, 4 de maio de 2021

Magnólias e Macarons

 São as flores das cerejeiras que dão a dica, melhor que qualquer marmota, de que o inverno finalmente acabou. Em toda primavera, desde o meu primeiro ano no Canadá, ando em direção a essa fileira de árvores rosa pálido, esperando alguma espécie de arrebatamento: o sorriso espontâneo, o calor no peito, aquela leveza alegre que causa formigamento na pele, quando me deparo com algo verdadeiramente bonito. Escolho uma manhã cinza, fria e chuvisquenta, na esperança de evitar as comuns aglomerações dos dias ensolarados.

Talvez eu tenha sido excessivamente mimada por uma vida brasileira carregada de ipês brancos, amarelos, roxos e cor-de-rosa, cujas copas coloridas espalhadas por São Paulo contrastavam contra as nuvens monótonas. Os ipês, na minha memória, são fluorescentes como as pulseirinhas dos festivais de música eletrônica da minha juventude.
 
As cerejeiras, ao contrário dos ipês, empalidecem nos dias chochos. Como fotos de prédios novos em folhetos imobiliários, precisam de um otimista azul sem nuvens para brilharem. O céu chuvoso da primavera de Toronto abafa sua formosura, como um emaranhado de fios elétricos e postes sujos na frente do empreendimento de luxo.
 
Cerejeiras num dia cinza.

 
Minha reação às cerejeiras é sempre morna. É bonito. Mas não emociona. Caminho, passo por elas, até encontrar magnólias.
 
Gosto de magnólias.
 
São como a versão agigantada e extrapolada das cerejeiras. As duas têm a mesma paleta de cores e florescem, sem folhas, na mesma época. Mas só as cerejeiras causam filas de Instagramers posando sob suas copas delicadas. E as magnólias observam passarinhos.
 
As cerejeiras, eu entendo, têm uma beleza clássica que atrai. É conservadora, delicada, moça de família. Se as cerejeiras fossem uma pessoa, ela seria o tipo de pessoa que sempre pede sorvete de baunilha. Seria a pessoa que senta de pernas cruzadas, com as mãozinhas nos joelhos, exibindo no pulso um reloginho de ponteiros e uma correntinha de ouro, presente da mãe do namorado que ela nunca viu sem roupa. Se as cerejeiras fossem uma pessoa, elas seriam a pessoa que passa hidratante com cheiro de flor de cerejeiras e que escova o cabelo o mesmo número de vezes antes de ir dormir.
 
O que está tudo bem. Desejo toda felicidade do mundo às cerejeiras.
 
Mas eu gosto de magnólias. Das flores imensas que você não espera ver na ponta de um galho de árvore. Dessa exuberância quase tropical, de alguém que usa brinco grande e vestido de chita.
Se as magnólias fossem uma pessoa, elas seriam o tipo de pessoa que pede sorvete de missô, pra saber que gosto tem. Seriam o tipo de pessoa que senta na grama e tira o sapato. Seriam uma pessoa que vira e mexe quebra um copo, porque usa sempre os braços para falar. Seriam a pessoa que grita o seu nome do outro lado da rua só pra te dizer oi. Quando chega a primavera, as magnólias saem de shortinho quando está dez graus. As cerejeiras usam o cardigã combinando com os sapatos. 
 
Magnólias num dia cinza.

 
Olho para as magnólias sob o chuvisco fino de uma manhã sem luz, e sorrio. O peito aquece. A pele formiga. Deixo-me arrebatar pelo riso alto das flores grandes. Piso em poças d'água enquanto ouço passarinhos. Volto para casa com energia para fazer macarons.

Macarons são o doce favorito da pessoa-cerejeira. Mas a pessoa-magnólia acha que gostar de macarons não define uma pessoa, e se joga no projeto simplesmente porque é divertido preparar um doce tão cheio de fricote numa quinta-feira à tarde. 

Tentei fazer macarons uma vez, ainda no Brasil. Na época, havia todo um frenesi internet afora a respeito dos macarons franceses. Acho que foi quando saiu o filme da Sofia Coppola sobre a Maria Antonieta, e os americanos descobriram os macarons. Todos os blogs estrangeiros tinham receitas coloridas de sabores inusitados e dicas infalíveis em processos complicadíssimos para alcançar idílica perfeição macarroneana dos mestres confeiteiros. Sendo ainda uma louca obcecada por todo o tipo de comida que eu nunca provara na vida, eu precisava, PRECISAVA preparar macarons.
 
Inventei de usar açúcar comum e moer minhas próprias amêndoas, porque, afinal, COM CERTEZA todos os chefes confeiteiros do mundo estão errados nos seus minuciosos métodos. Às vezes a pessoa-magnólia tem que aprender com a pessoa-cerejeira. O resultado foi uma braçada de suspiros de amêndoa. Óbvio.

Alguns anos depois, passei vinte e oito minutos na fila da confeitaria de Pierre Hermé, em Paris, para comprar uma caixinha delicada com quatro pequenos macarons. Não me lembro quanto paguei naquela caixinha. Mas o horror do marido ao calcular o preço em reais, com uma cotação de 4 para 1, ficou marcada para sempre na memória.Esses biscoitos devem valer muito a pena, ele disse, apanhando o de caramelho salgado para provar. Não valem, foi a conclusão. Os tão sonhados e perdulários macarons foram ligeiramente decepcionantes: eram tão leves, tão leves, que desapareciam na boca tão logo tocassem a língua. E o sabor... era ok. O biscoito mais hypado do momento sofrera na entrega por excesso de expectativas.

Não sou fã de macarons, comecei a dizer.

Pule outros tantos anos para uma manhã solitária no Yorkdale Mall, em Toronto, durante as duas breves semanas em que cafés e restaurantes permaneceram completamente abertos no ano passado.
 
Shopping centers me causam dor de cabeça instantânea, e eu eu só ponho um pé dentro de um quando e em extrema necessidade. Jamais, em qualquer circunstância, entraria em um shopping com o simples intuito de passear. Eu havia pego trinta e cinco minutos de metrô até Yorkdale com a intenção de me achar um casaco de outono: algo que ficasse entre os casaquinhos brasileiros que não servem para nada aqui e minha parka de neve para vinte graus negativos. E até então, a melhor parte do passeio fora o trajeto de metrô, que me possibilitava olhar pessoas e ler um pouco.

Mas ali estava eu, depois de meses de escola online e quarentena, sentindo-me de férias ao passear sozinha num shopping center. Talvez tenha sido saudades de Paris, saudades de viajar, ou as simples saudades de sentar num café e ver a vida passar. Mas naquele dia eu entrei na Ladurée, aquela loja em tons pastéis que parece ter sido projetada por um unicórnio, sentei numa mesinha de metal com tampo de mármore, e pedi um café e três macarons.

Foi como um abraço. 

O café veio servido numa xicarazinha de avó, de haste dourada e pires decorado. Os macarrons foram servidos num pratinho que fazia conjunto com a xícara, precisamente posicionados no centro de uma toalhinha de papel rendada. A simpática e sorridente moça que me atendeu também trouxe um açucareiro de metal dourado e desenhos intrincados, que parecia ter sido comprado num mercado de pulgas. E aquilo era tão charmoso que quase me entristeci por não adoçar meu café. 

Não sei dizer no quê aqueles macarons coloridos diferiam dos que comi em Paris. Talvez nada. Talvez fossem apenas uma indulgência necessária num momento emocionalmente difícil. Talvez se a viagem a Paris tivesse sido estressante, os macarons de Pierre Hermé fossem tão deliciosos quanto aqueles da Ladurée do shopping. Talvez eu simplesmente não tivesse expectativas.
 
Saboreei cada um deles, bocadinhas intercaladas com bicadas no meu cafezinho de avó, enquanto lia mais um trecho do livro que começara na viagem de metrô. 
 
Numa manhã ensolarada do outono do ano passado, saí para andar de bicicleta com Laura. Thomas preferiu passar tempo com o pai. Pedalamos muitos quilômetros pela orla do lago, vendo as gaivotas pairando no vento e o vento formando ondas na água. Quando chegamos ao centro da cidade, estávamos com frio, e sugeri que apanhássemos um chocolate quente num café que estava aberto ali ao lado. Entramos de máscaras, enquanto os outros clientes esperavam do lado de fora. Café. Chocolate quente. E eu vejo aqueles sanduichinhos coloridos nuam redoma de vidro ao lado da caixa registradora. 
 
"Laura, vou te dar uma coisa pra comer que você nunca comeu". 
 
Levamos nossos copos quentes e nossos macarons genéricos para fora, sob o vento forte que começavaa trazer nuvens. Encontramos um banco em frente ao lago, e, Laura seu macaron, falei sobre Paris, sobre confeitarias francesas, sobre viajar, sobre prazer na vida. 
 
"Eu adoro o Dia das Meninas", disse Laura. Dia das Meninas é como ela chama qualquer saída de casa em que estejamos apenas nós duas, mesmo que seja uma ida ao oculista ou ao supermercado. Sabendo do efeito que isso tem nela, tento sempre incluir nesse tempo nosso uma parada num café novo, uma compra de um doce especial numa bakery diferente, qualquer coisa que ela possa contar animada quando chegar em casa, que "só eu e a mamãe fizemos".
 
Eu não esperava que Laura fosse gostar de macarons, uma vez que ela detesta amêndoas. Mas ela ficou encantada. O sabor, a textura, o recheio, o formato delicado e as cores: tudo ela achou lindo, interessante, fantástico, delicioso. "Quando os cafés estiverem abertos para a gente sentar dentro deles de novo, vou te levar na Ladurée.A gente vai tomar café e chocolate quente em xícaras de louça, e vamos comer macarons de vários sabores. Os de lá são mais gostosos."

Estava prometido.

Mas os meses foram passando, e Laura perguntava quando teríamos nosso Dia de Meninas no café dos macarons, só para ouvir sempre a mesma resposta: "Um dia, Laura. Um dia."

Naquele dia de flores cor-de-rosa, fui ao mercado comprar farinha de amêndoas e açúcar de confeiteiro. Eu não cometeria aquele erro duas vezes. Asssiti a um video maravilhoso que ensina todos os truques de um jeito muito mais simples e do que os blogs de tantos anos atrás. E lá fui eu. 

"Laura, hoje eu vou fazer macarons." Seus olhos acenderam estrelinhas. "E a gente vai fazer eles cor-de-rosa!"

Foi como se eu dissesse que adotaríamos um unicórnio.

O processo dos macarons, ainda que tenso, foi muito mais simples e fácil do que eu esperava. Bate clara em neve, mistura açúcar e farinha e corante, bota no saco de confeitar...

"Eu não tenho saco de confeitar", murmurei. Eu tinha. Com uma coleção de bicos diferentes. Mas vendi tudo para vir para o Canadá. 

"E agora, mamãe??"

"Sabe, Laura, eu já fui essa pessoa preciosista que não faria macarons sem bico de confeitar. Mas a mamãe aprendeu a relaxar a bisteca." Apanhei um ziplock, enchi um dos cantos com a massa dos macarons, torci a parte de cima e fiz um picote pequenino com a tesoura, para a massa sair. Pessoa-magnólia.

"Olha que danadinha, mamãe!", Laura riu. 

"Né. Sou mesmo. Eles com certeza não vão ficar todos do mesmo tamanho, nem com aquela cara perfeita das bakeries..."

"Mas vão ficar gostosos, e é isso o que importa!", me interrompeu ela. 
 
Esse é o mantra da Laura: vai ficar gostoso, e é isso o que importa. Ela repete essa frase para mim, sempre que eu digo que talvez a receita não dê certo. E quando não dá certo mesmo, ela dá de ombros e sorri: "Tá tudo bem, mamãe, o que importa é que você fez com carinho e a gente vai comer mesmo assim". 

No forno, os macarons começaram a me preocupar. Cresceram um pouco menos do que eu esperava, e terminado o tempo indicado na receita, eles não mostravam os sinais esperados. Quando tentei mover um para ver se estava dourando por baixo, percebi que ainda estavam crus. Mantive a temperatura muito baixa, e continuei assando os danados até o limite do aceitável, quando começaram a dourar em cima e pareciam quererem se destacar do papel-manteiga. Nesse ponto, eu já havia me conformado com o fato de ter produzidos suspiros de amêndoa novamente. 

"Tá tudo bem, mamãe. O que importa é que você fez com carinho."

Ressabiada, ainda assim, montei os macarrons recheados de geleia, tentando resolver aquele quebra-cabeça de qual macarron tem o formato de qual, para que ficassem iguais quando sanduichados. 

As crianças foram para a cama, e eu apanhei um macaron para experimentar. 

Decepção. 

"Droga, deu errado", disse a Allex. "Estão chewy e duros na base."

Fui dormir àquela noite chateada por não conseguir prover à Laura o "Dia de Meninas" com os macarons que eu havia prometido tantos meses antes. Na manhã seguinte, servi os doces às crianças sem muita empolgação, avisando que haviam dado errado. 

"Mamãe! Tá uma delícia!", eles disseram. Sorri, feliz com aquelas crianças amáveis que só queriam me agradar. "Não! Mamãe! É verdade! Ficou muito bom!"

Provei um, desconfiada. Para minha surpresa, aquela noite na geladeria, recomendada pela receita, não era nenhuma frescura: as bases duras e puxa-puxa haviam amolecido, e agora os macarons tinham exatamente a textura de que eu me lembrava. Eram macios e quebradiços e derretiam na boca. Apanhei mais um. E mais um. Fiz um café. E comi mais um, bocadinhas intercaladas com bicadas no meu café. 

Na manhã seguinte, o sol nos chamou para fora, e apanhamos as bicicletas para pedalar ao longo do lago. Atravessamos o parque e a rua onde ficam as cerejeiras, cujo rosa esmaecido sorria contra o céu azul sem nuvens. Continuamos por mais dez quilômetros até um parque distante, onde tirei da mochila um pote plástico com uma fileira de macarons. 

"Gosto mais das magnólias!", disse Allex, apontando para uma árvore madura num quintal da frente, explodindo em grandes flores tão rosa quanto os docinhos franceses. 

"Eu também."


.....

Vamos aos macarons. 

Antes de você se aventurar com a receita, assista a esse video aqui:
 
 
Mesmo que você não entenda inglês. O simples fato de você ver a pessoa fazendo já ajuda. Porque o preparo em si é muito simples. Se você acerta o ponto da massa e a temperatura do forno, dá tudo certo. Não, não saia inventando de trocar o açúcar e coisas do gênero. Faça exatamente como está na receita. E se der errado, vai continuar gostoso. Suspiro de amêndoa. Esmigalha tudo e come com morangos e chantilly. ;) Sem estresse. É pra ser divertido.

Meu forno aqui em Toronto é elétrico, o que facilita na manutenção da temperatura. Se o seu for de gás, use um termômetro de forno para ter certeza de que ele está regulado. 
 
Para meus macarons, usei um corante vermelho natural a base de framboesas, e aproveitei e recheei com geleia de framboesa também.
 
Lembre-se de fazer a receita um dia antes, porque ela precisa passar a noite na geladeira. 

Não se assuste com o tamanho do texto. É mais explicação do que esperar do que de fato coisas pra fazer. ;) Agora se joga e faz macaron numa quinta à tarde.

MACARONS
(do livro Chewy Gooey Crunchy Crispy, da Alice Medrich.)
Rendimento: cerca de 30-36 macarons montados e recheados

Ingredientes:
  • 2 xic. (225g) açúcar de confeiteiro
  • 1 1/3xic. (125g) farinha fina de amêndoas descascadas
  • 3-4 claras de ovo grandes, em temperatura ambiente
  • 1/4 colh.(chá) extrato de amêndoas
  • 3 -6 gotas de corante alimentício (opcional) - eu usei um natural
  • 3/4 xic. do recheio de sua escolha (geleia, ganache, nutella, buttercream, manteiga de amendoim, lemon curd...)

Preparo: 
  1. Combine o açúcar e a farinha de amêndoas numa tigela e misture cuidadosamente com um fouet. Passe por uma peneira uma ou duas vezes, até que a mistura esteja aerada. Isso facilita na hora de misturar às claras. 
  2. Num copo ou jarra medidor, derrame as claras até que elas preencham o espaço exatamente entre 1/3 e 1/2 xícara. Ou meça 105g. Guarde o restante das claras para outro preparo. 
  3. Transfira as claras medidas para a tigela da batedeira. Bata em velocidade média, até que formem picos moles quando o batedor é levantado. 
  4. Junte o extrato de amêndoas e corante, se estiver usando, e continue a bater em velocidade alta até obter picos firmes quando o batedor é levantado. Se você virar a tigela, as claras têm que se manter no lugar, sem escorrer pra lado nenhum, e até permanecerem na tigela quando viradas de ponta cabeça. Visualmente, elas devem ainda estar acetinadas, brilhantes e lisas. Se estiverem granulosas ou opacas, passaram do ponto e estão secas. 
  5. Coloque toda a mistura de amêndoas e açúcar sobre as claras. Usando uma espátula reta (não as com forma de colher), misture, trazendo as claras do fundo para o topo da farinha de amêndoas, num movimento circular. Você não precisa ser tão cuidadosa quanto seria com as claras em neve de um bolo. Pode misturar com um pouco mais de energia, mas não tanto que a massa desinfle totalmente. A massa vai, no entanto, ficar com metade do volume que as claras tinham originalmente, e está tudo bem. Pare assim que nãou houver mais traço de farinha de amêndoas e tudo pareça incorporado. A massa será espessa e úmida, com uma consistência que eu imagino que tenha lava quando ela está começando a esfriar.
  6. Você vai precisar de duas assadeiras grandes. Forre as assadeiras com papel-manteiga. Agora você pode usar uma colher de chá para colocar montinhos iguais na assadeira, deixando cerca de 3cm entre eles. Ou pode transferir a massa para um saco de confeitar com um bico pequeno (ou uma das pontas de um saco ziplock, como eu fiz, fazendo um corte bem pequeno na ponta) e usar o saco para formar montinhos. Nesse caso, aproxime o bico da assadeira, aperte, e deixe que a massa saia e espalhe até formar um círculo de uns 3cm.
  7. Agora pegue as suas assadeiras cheias de montinhos e, segurando nas laterais, levante e bata a assadeira uma ou duas vezes na bancada (veja o video). Isso vai tirar algumas bolhas grandes de ar que podem estar dentro dos macarons, e vai terminar de espalhá-los. Agora, sem cobrir, deixe as assadeiras em temperatura ambiente por pelo menos 30 minutos, mas não mais do que 1 hora, dependendo da umidade do ar. O descanso vai ressecar a superfície e formar uma casquinha fina. Os macarons estão prontos para ir ao forno quando estiverem opacos e você conseguir tocá-los suavemente sem melecar o dedo. 
  8. Enquanto isso, aqueça o forno a 205oC. Posicione as grades do forno nos terços superior e inferior.
  9. Coloque os macarons descansados no forno e IMEDIATAMENTE abaixe o fogo para 150oC. (Isso vai ser o mínimo na maioria dos fornos. O meu forno do Brasil era desregulado, e, usando um termômetro, descobri que o mínimo dele era 180oC. Para conseguir 150oC pra assar suspiros, eu abaixava para o mínimo e deixava a porta entreaberta com uma colher de pau,como minha avó.) Asse nessa temperatura baixa por 12 a 15 minutos, trocando as assadeiras de posição no meio do cozimento. Durante esse tempo de forno, eles vão crescer um pouco para cima, não muito, e criar aquele pézinho típico dos macarons. 
  10. Para saber se estão prontos, eles precisam parecer secos em cima. Toque suavemente um deles, no meio, para sentir se estão muito moles ou se parecem estar bem estruturados (pense suspiro). Você também pode segurar as laterais de um deles e tentar balançá-lo para os lados bem de leve. Se ele parecer se agarrar à assadeira, está pronto. Se ainda estiver dançando e parecer solto da base, volte ao forno por mais uns minutos. Os meus demoraram uns 18 minutos para ficarem prontos. Vai depender mutio do seu forno e do quanto você ficar abrindo e fechando a porta dele.
  11. Retire as assadeiras e coloque-as sobre grades para esfriarem. 
  12. Quando estiverem COMPLETAMENTE frios, retire-os do papel-manteiga, erguendo o papel, segurando o macaron e puxando O PAPEL delicadamente, como quem descasca uma banana. Se você segurar os macarons e puxá-los pra cima, as bundinhas vão se destacar e ficar grudadas no papel. 
  13. Faça os pares dos biscoitos. Segure aquela que vai ser a base, e coloque de 1/2 a 1 colh. (chá) de recheio. Pressione o biscoito de cima com cuidado, para que o recheio espalhe até as beiradas. 
  14. Guarde os macarons em potes fechados e leve à geladeira por NO MÍNIMO 8 horas. Nesse tempo, eles vão perder a textura de suspiro e ganhar a famosa textura dos macarons. Tire da geladeira alguns minutos antes de servir, para que voltem à temperatura ambiente.
 

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