domingo, 26 de julho de 2020

De um pé e de um muffin




Meus pés me sabotam. Ou me ensinam. Muito provavelmente os dois ao mesmo tempo, num movimento entrelaçado e interdependente.

Naquela manhã acordara tensa, sentindo a dor na planta do pé irradiando pela parte de trás da perna até o meio das costas, transformando o espaço de energia livre entre minhas omoplatas em um vale duro e seco, constrito e crispado, feito chão de deserto. Um som agudo atravessava minhas têmporas de um lado ao outro. O ar de verão grudava na pele. Bebi meu café sem vontade enquanto acalmava os ânimos exaltados das crianças, que discutiam sobre coisa nenhuma, exaustos do confinamento em si mesmos.

Minha mente tentava, como fizera nos últimos meses, desde o fatídico dia de março em que anunciaram a quarentena, montar as peças de nossa rotina. Quero passar o dia todo fora de casa, pedira minha filha. Como fizemos no ano passado. Suspiro. Ano passado eu tirara férias com eles. Ano passado eu usara seu tempo de escola para pintar e montar exposições e vender minhas pinturas pela cidade. Usara seu tempo na escola para trabalhar e então poder relaxar com eles no verão, criá-los, minhas criaturas, durante esses dias longos e quentes, tão preciosos numa terra onde se têm oito meses de inverno. Mas este ano não tivera o seu tempo de escola. O tempo fora quebrado e truncado, os projetos adiados, os cafés e galerias onde exibiria meu trabalho foram fechados, as horas de que precisava desapareceram pelos dedos feito areia fina.

Mas ainda podia correr. Correr era meu tempo. Meus pés em movimento pela terra, sentindo o mato e  o vento, a mente desperta e alerta na recriação da Vida Tranquila que eu construíra ao longo dos anos e que agora andava escondida por entre os becos do labirinto da Pandemia.

Quebrar o pé teria sido um desastre, não fosse a mente forte que andava no fluxo. Adapta-se. E montada na bicicleta, levei meus filhos em pequenas aventuras por essa cidade-mato-e-água. Os dias tinham aquele gosto de verão. Mas era um gosto temporário, um gosto ansioso de quem não vê a hora de meter os pés na terra novamente e correr longe.

E eles puderam correr. Por uma semana. E então a musculatura cansada fraquejou numa tarde quente e um minúsculo acidente da calçada torceu meu tornozelo. Não me soava grave o pulsar daquela dor, ignorável comparada aos roxos graves dos ossos quebrados. E depois de poucos dias, os pés voavam no mato outra vez.

Mas a dor que girava no tornozelo caminhava. Girava por cima do pé, dançava até o joelho. Passeava como quem não quer nada até o meio das costas e descansava, às vezes, nos ombros, trazendo ao pescoço  lembrança das pequenas frustrações. Quando as lições da escola acabaram e as crianças eram férias de verão, aquela dor resolvera fincar raízes na planta do meu pé. E cada dia de corrida somava ao corpo as dores de uma dúvida.

Queria correr. Mas a corrida truncava o dia. Cansava. Doía. Queria terminar meus projetos. Rápido. Mas isso excluía meus filhos de mim. Cansava. Doía.

Pensava naquelas três semanas de pé quebrado, nas aventuras de bicicleta, e o fantasma dos verões passados me acenava, ansioso, desejoso de voltar e fazer parte. Mas eu precisava abrir mão.

Naquele dia sentei-me à beira do lago, e, num esforço mitológico, olhei meu rosto na água. Cenho franzido,como se pudesse espremer pela testa a tensão suprema que se formara. Tensão de elástico velho, um segundo antes de romper. Quero ser essa pessoa produtiva. Quero fingir que não existe pandemia, que não há quarentena, que o meu tempo é meu e que é possível viver ao mesmo tempo essa vida linear e a vida múltipla. Quero fingir que priorizar não significa escolher um só, e que é possível que todos os seus fragmentos tenham igual importância.

Mas isso é infantil.

Há que se escolher.

Quando a água tremula meu reflexo, levanto o rosto, e enxergo aquela pata deslizando sobre o lago, trazendo consigo nove patinhos de brinquedo, pequenas esferas de uma penugem castanha e rajada de amarelo. Eles confiam todos na mãe e a seguem na minha direção. Surpreendo-me ao vê-los aos meus pés, a menos de um braço de distância. Fosse menos respeitosa, poderia apanhar um deles nas mãos para sentir nos dedos o bater forte de seus coraçõezinhos sob as peninhas. Ali eles ficaram por um tempo, numa observação curiosa de quem tenta entender uma aparição. E tão graciosa e casualmente como vieram, foram.

Sorrio.Talvez seja hora de parar de lutar contra. Parar de me agarrar a uma rotina que não serve mais. Parar de maltratar esses pés que buscam descanso dessa corrida infinita na roda. Parar, sair da roda e enxergar a gaiola. Abrir a porta e sair.

Enquanto caminho de volta para casa, avisto um tronco de árvore, onde alguém cortou a frase do primeiro livro que li para meus filhos: I LOVE YOU TO THE MOON AND BACK.

O universo tem enviado sinais claros demais para serem ignorados.

Na manhã seguinte, chamei as crianças para preparar muffins. Havia bananas maduras e coco ralado. Meti num pote alguns bolinhos ainda mornos e saímos de bicicleta. Para onde vamos? Não sei.Só vamos. Meu jeito favorito de ser mãe deles. Só vamos sem pressa e sem planos. Preciso sair da roda para ensiná-los a nunca entrar nela.

Paramos onde eles querem parar, explorando os matos e os lagos e as praias. Vendo esquilos e pássaros, e uma marmota, até. Paramos para brincar com pedras e colher flores,e comer muffins e melancia. Eles recolhem penas e conchas. Falamos do mundo. Passamos o dia do lado de fora, saboreando o verão fugidio e passageiro como se fosse o último dia de nossas vidas.

Quando vou ao médico, ele diz o que eu já sabia. Fascite plantar. Uma inflamação na pele que recobre o músculo da planta do pé. Você pode andar de bicicleta, mas não pode correr nem andar muito. Tudo bem. Eu já sabia. Minha ultramaratona foi cancelada. E eu já tinha escolhido parar. Parar por um tempo. Fechar os olhos e curtir criar minhas criaturas nesse verão, como nos outros anos. Criar seres humanos. Do resto dou conta depois. De outro jeito. De alguma forma. Eu dou um jeito. A prioridade agora é criar essa Vida Tranquila com eles, para que eles possam criá-la para si mesmos depois.

Está tudo bem.

Meus pés me sabotam. E me ensinam. Como filhos. Fazendo você rever seus planos, suas ideias, seu mundo. Tropeçando seu ego e pisando firme no chão para se reerguer melhor. Sou uma mãe melhor sendo feliz com eles.

Voltamos para casa e, enquanto eles leem um livro, apanho o computador, os papéis, os pincéis, o caderno, e o trabalho flui, livre, produz frutos inesperados e pequenas alegrias que eu não via antes. Criar nossa Vida Tranquila fertiliza o solo onde meus pés descansam. Largo o mato para crescer livre e ele produz flores inesperadas.

A Vida Tranquila flui. Flui como água de degelo na primavera, irrigando os vales secos e relaxando os músculos. Respiro. O ar do verão traz uma brisa refrescante de olhos fechados sorrindo sob o sol.

Esse homem que eu amo me traz um espresso "com civilidade", como ele chama o pires e o pequeno chocolate que acompanha o café quente. Um beijo e um sorriso. Amor. Cuida do teu pé. Pode deixar, eu vou.

....

MUFFINS DE BANANA COM COCO
(quase nada adaptado do site Epicurious)

Ingredientes:
  • 1 1/4 xic farinha de trigo
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 2 bananas grandes, bem maduras, amassadas (cerca de 3/4 xic)
  • 100g (1/2 xic) manteiga se sal, derretida
  • 2/3 xic. açucar + 1 colh. (chá) para polvilhar
  • 1 ovo grande
  • 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 3/4 xic. coco ralado sem açúcar

Preparo:
  1. Forre uma forma de muffins comum com 12 cavidades com forminhas de papel, ou unte e enfarinhe as cavidades. Pré-aqueça o forno a 190oC.
  2. Numa tigela grande, misture com um fouet a banana, o ovo, a manteiga derretida e a baunilha.
  3. Acrescente os 2/3 xic. açúcar e misture até que o açúcar pareça dissolvido.
  4. Junte 1/2 xic. do coco ralado e misture.
  5. Acrescente a farinha, o fermento e o sal e misture apenas até que a farinha desapareça.
  6. Distribua a massa entre as formas. Polvilhe o restante do coco ralado por cima da massa e o açúcar.
  7. Leve ao forno por 20 a 25 minutos, até que estejam dourados e um palito saia limpo quando inserido em um dos muffins.
  8. Deixe esfriar sobre uma grade um pouco.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A história de um acampamento



A primeira vez que tentamos marcar um acampamento neste verão foi cheia de animação e ansiedade. Parecia que depois das greves escolares do início do ano, a quarentena, o isolamento e a morte do Gnocchi, as coisas finalmente melhorariam.

Mas fomos sabotados pelo universo. O governo voltou atrás na decisão de liberar o camping, e nossa reserva foi cancelada um dia antes da viagem, em Junho, quando as malas estavam feitas e eu começava a organizar o cooler que levaria nossa comida. Um imenso balde de decepção gelada em uma família que passara por oito meses de inverno e queria um pouco de mato, lago e calor sem chegar perto de ninguém. A este cancelamento, seguiu-se uma semana de desastres miniaturas. Perdi as crianças no parque (por apenas quinze minutos), Thomas se arrebentou numa queda de bicicleta, precisei desengasgar uma rodela de pepino da garganta de Laura em estilo hollywwodiano (os últimos três em um dia só), a bóia que compráramos para usar no lago com as crianças explodiu no primeiro instante em que a colocamos no lago, revogaram nossa permissão para a churrasqueira de carvão, e, poucos dias após meu pé esquerdo se recuperar da fratura, eu torci meu pé direito.

Eu culpei o eclipse lunar de junho. Senão vou culpar quem? Não estava pronta a admitir que minha família andava passando por uma inexplicável onde de má sorte.

Quando finalmente consegui remarcar o acampamento, ainda estava na dúvida se ele de fato aconteceria. Se saíramos ou não daquela estranha maré de azar em que nos encontrávamos. Fiz as compras do acampamento e organizei as malas com alguma desconfiança, esperando o eventual telefonema com um novo cancelamento.

O telefonema, no entanto, jamais veio.

Colocamos tudo no carro, estranhando não termos mais de reservar espaço para o Gnocchi ou não precisarmos programar paradas para que o cão fizesse xixi. É de fato uma nova fase. Tive certeza de dar o remédio de enjoo da Laura, e partimos, três horas e meia de distância em direção ao primeiro acampamento do ano. A previsão era de chuva na nossa chegada, então fomos o caminho todo acompanhando o movimento das nuvens, que Thomas dizia terem formas de dragão.

Normalmente olhamos no mapa as cidades que existem pelo caminho, e procuramos um lugar para comer meio que no improviso. Mas por conta da pandemia, tivemos de nos planejar melhor. Eu escolhera um restaurante à beira de um dos inúmeros lagos em Ontario, que estava aberto e servindo as refeições no pátio externo, obedecendo às restrições do Estágio 2 da reabertura da província. Dirigimos trinta minutos para fora da estrada principal em direção ao restaurante. Durante todo o trajeto, conversávamos sobre histórias de viagem. Sobre viajar sem planos versus viajar com tudo organizadinho (eu gosto mais do primeiro tipo). Expliquei que preferia chegar na cidade e escolher onde comer olhando as opções disponíveis ao vivo, sentir o local. Não gostava de planejar antes de sair de casa, pois passava o caminho todo aflita sem saber se aquilo que eu escolhera daria certo ou não.  Ao chegarmos, meu desconforto se revelou realidade: o restaurante fazia parte de um resort e era aberto apenas para hóspedes. Fué.

Não era um bom sinal.

Apanhei meu celular e comecei a procurar outras opções, e o lugar aberto mais próximo naquele domingo era a meia hora dali.Lá fomos nós. Criançada no banco de trás perguntando quando é que a gente ia almoçar.

O restaurante era um lugarzinho simples à beira da estrada. Saímos do carro, e Allex entrou sozinho para comprar a comida enquanto nos acomodávamos nos bancos do lado de fora. Saiu de mãos vazias, no entanto, dizendo que precisava entrar na fila na lojinha de cigarros do outro lado do estacionamento para pagar e levar a notinha de volta ao restaurante. Dez minutos depois, ele saiu novamente, de mau humor: "Pessoal é enrolado demais, e minha intuição tá começando a sugerir intoxicação alimentar. Vamos tentar outro lugar."

"Vamos para a próxima cidade a caminho do parque", sgueri. "Qualquer coisa, a gente senta numa praça na próxima cidade e monta um sanduba com o que a gente trouxe na mala."
Gaivotas sempre dispostas a roubar batatas-fritas.

A cidade seguinte tinha opções. Conseguimos comer do lado de fora de um restaurante pequenino, numa mesa à sombra de um guarda-sol que parecia esperar por nós. E não fosse pelas picadas de black-fly que tomei debaixo da mesa, diria que havia sido um sucesso. Pimpolhada tomou sorvete, lavou as mãos numa lagoa ali ao lado (pois os banheiros públicos estavam fechados), e pudemos seguir viagem.
Laura e seu cabelo novo, que ela quis cortar igual ao do pai,

Conforme nos aproximávamos do parque, as nuvens de chuva se afastavam, e tudo parecia melhorar. Meus filhos ficam muito tranquilos em longas viagens de carro, acostumados a todo o trâmite desde pequenos, ouvindo nossa música, cochilando, ou olhando a paisagem em busca de animais selvagens. Mas depois de quase quatro horas e meia, Laura entrara no módulo padrão "Já chegamos? Quanto falta pra gente chegar? Quanto tempo já passou de quando você falou que faltava trinta minutos? Já chegamos? Falta muito?"

Pronto, Laura! Chegamos!

Apanhamos nossa permissão no escritório do parque, um mapa, e alguma lenha para a fogueira, e dirigimos até o espaço que havíamos reservado.

O lugar era uma área de terra batida, semi-coberta pelas sombras das árvores da floresta, e com uma pequena abertura no meio dos juncos e mato alto para uma faixa estreita de água que ligava um lago pequeno a outro mais amplo. Aquela faixa de lago tinha o fundo de areia macia e lamacenta, sem as pedras que machucam pés tão típicas do Lake Ontario, uma água muito cristalina que entrevia peixes pequenos e rãs, e uma série de pequenas ninféias prestes a florescer. As nuvens haviam desaparecido, como cortinas de um grande palco, exibindo orgulhosas o céu azul brilhante de verão que haviam escondido até então. Havia uma mesa de madeira com bancos sob uma sombra larga, uma corda de acampamento amarrada entre duas árvores que usaríamos de varal, e um local para a fogueira já delimitado por um círculo de pedras. Afastado daquela clareira, uns vinte metros para trás, seguindo a estrada de terra, estava nosso banheiro particular: uma casinha de madeira com uma fossa séptica que me surpreendeu por seu estado: era limpo e não tinha cheiro. Mas também não tinha luz. Quem quisesse ir ao banheiro à noite precisaria usar um head-lamp. Ainda bem que tínhamos cada um o seu.

Allex e eu montamos a barraca, uma tenda leve para quatro pessoas, enquanto as crianças correram para explorar a área e molhar os pés na água.

Conforme jogávamos os sacos de dormir e os isolantes térmicos para dentro da barraca, no entanto, começamos a sentir que não estávamos sozinhos. Pernilongos, mutucas e black-flies, um tipo de mosca maldita da América do Norte que corta a pele feito uma formiga, estavam ali conosco aos montes, e estavam com fome.

Dá-lhe repelente em todo mundo.

Pimpolhada foi para a água com as boias novas, que Allex comprara para substituir aquela danada que estourara por um defeito de fabricação, e lá ficaram, por muito tempo, boiando, um puxando o outro feito barquinho de porto arrastando transatlântico, até que tudo estivesse arrumado no acampamento e Allex e eu pudéssemos nos unir a eles. Aágua era limpa e gelada, e as ninféias faziam cócegas em nossas pernas enquanto andávamos por entre eles.

O tempo todo eu perscrutava a mata escura do outro lado do lago, em busca de um alce que nunca apareceu.

Aos tapas e sacolejos para afastar as mutucas, nos divertimos no lago, vendo a mãe pato guiar seus patinhos pequeninos para o mato ao nosso lado e ouvindo os sapos começando seu coral de chamados do fim do dia. "Sabe quando aquele BlueMen Group brincava de tambor em tubos de PVC?", perguntou Allex, começando a acender a fogueira. Fiz que sim, sabia. "Esses sapos soam exatamente assim."  Ri. Era verdade. "São bull-frogs!", explicou Thomas, brincando de imitar os sapos. Told. Told. Told. Eles faziam.

Não eram apenas mutucas. Havia uma profusão de borboletas, inclusive essa estrupiada que acompanhou nosso acampamento todo.


Coloquei os maiôs e toalhas para secar naquele varal improvisado, e comecei a passar repelente em todo mundo de novo. Havia muito mais insetos ali do que imagináramos. Laura corria pela clareira, gritando impropérios para os mosquitos e tentando fugir deles. "Black-fly te segue, Laura, não adianta fugir, tem que dar um tabefe", eu explicava, ligeiramente irritada com os insetos, mas tentando não perder o bom humor. "Não era você que queria morar da floresta, Laura?", perguntava Allex. "Taí,filha, floresta no verão é isso."

"I HATE MOSQUITOES!!", ela gritava, enfurecida, fugindo das black-flies novamente.

Thomas continuava na dele, se divertindo horrores em estapear nossas pernas quando via uma mutuca pousada nelas. Foi quem menos reclamou dos mosquitos e quem mais tomou picadas.

A fumaça da fogueira afugentou parte dos insetos. Allex puxou algumas brasas para debaixo da grelha de metal, e pôs-se a fazer queijo coalho, linguiça e batatas-bolinha, enquanto eu cortava pepinos e tomates-cereja para beliscarmos.

Comemos perto do fogo, espantando os mosquitos, e olhando os chipmunks que se aproximavam, na esperança de surrupiarem um tomatinho. Vendo o modo como Thomas se comportava, Allex decidiu dar a ele um presente que vinha guardando havia já um tempo: seu próprio canivete suíço. Mostrou a ele como o canivete funcionava e pediu a ele que apanhasse galhos na floresta e afiasse suas pontas, para que pudéssemos usá-los para assar marshmallows. A expectativa é que Laura mostre maturidade o bastante para ganhar o seu no próximo acampamento.

Ela ajudou Allex a cuidar do fogo, enquanto Thomas estreava seu canivete, orgulhoso. Assamos marshmallows junto às brasas e ficamos ouvindo o cantar alto dos sapos e dos pássaros, até que o dia começasse a se apagar em luzes cor-de-rosa e baunilha. "Mãe, eu vou dormir. Tô cansado", disse Thomas. "Eu também", concordou Laura. Eram nove da noite, e o horizonte ainda cantava cinco da tarde. Entrei na barraca com eles, lemos juntos uma história curta, e eles dormiram sobre os sacos-de-dormir abertos, ao som do farfalhar das folhas secas no chão da floresta, por onde os esquilos passavam.

Allex e eu ficamos ali ainda ao lado do fogo, esperando aquela noite preguiçosa finalmente aparecer. Abri um vinho rosé que eu trouxera, e bebemos nas tigelas plásticas do conjunto da panela de camping. O rosa do céu era lilás, que era azul cobalto, e marinho e profundo, e enegrecendo apenas quando nossos relógios já diziam onze e meia. Told, Told, Told, diziam os sapos. Cri. Cri. Cri. Os grilos. Havia pios agudos de morcegos e corujas em meio a alguns pássaros que esqueceram de ir dormir. Os mosquitos davam uma trégua e abriam espaço para insetos que eu não via desde a infância: vagalumes,  pontinhos verde-fluorescentes que acendiam e apagavam de vez em quando, num vôo errático que sugeria teletransporte. Eles piscavam devagar de dentro dos arbustos escuros, que às vezes chacoalhavam, revelando presenças noturnas ali cujos olhos nunca vimos.Quando olhei o céu, uma lua quase cheia não nos impedia de ver uma inifnitute de estrelas que eu não conhecia. Onde estão as Três Marias? E o Cruzeiro do Sul? Ficaram lá no Brasil. Me disseram que na América do Norte a gente vê Andrômeda. Mas ainda não sei encontrá-la.

De repente, ouvimos uivos de lobo à distância.

Liguei meu head-lamp para uma caminhada solitária na floresta em direção ao banheiro, olhando por entre as árvores, buscando na escuridão os fantasmas que eu sabia estarem lá.

Na barraca, nos ajeitamos entre as crianças. Fazia um calor gostoso,com uma brisa suave que entreva pela rede fina da camada interna da tenda. A lua iluminava as águas e a mata lá fora. Sem os amarelos da fogueira, o mundo era branco e preto, do reflexo nas folhas circulares dos lírios d'água às estrelas por sobre a massa negra e densa da floresta.

Aninhada em meu saco de dormir, sentia o chão duro de terra colocando minha coluna no lugar. Era natural dormir ali. Eu gostava de estar perto do chão. Talvez isso tivesse motivado meu surto psicótico no dia em que resolvi vender nossa cama e voltar a dormir num colchão no chão, como nos primeiros anos em que moramos juntos, quando meus pais diziam que Allex e eu não tínhamos um casamento, mas uma república. Eu gostava dessa nossa República. Virei o rosto para olhar meus filhos, dormindo naquele chão batido como se fosse uma cama de hotel. República independente da família do meio do mato.

"Gosto do silêncio do mato", Allex sussurrou, sem querer acordar as crianças. Eu ri, pois sabia do que ele falava. Era um silêncio composto de barulhos. Estalos, sibilos, zunidos, pios, guinchos, uivos, sons graves e agudos, galhos quebrados, árvores ao vento, folhas arrastadas por patas que não vemos, um tchibum e glup no lago, e os sapos e os grilos naquela conversa animada até a madrugada. E ainda era silêncio. E nele adormeci, num sono estranho, semidesperto, incorporando em meus sonhos os cantos dos bichos. Sonhei com Gnocchi latindo ao meu lado, e acordei com os sons de algum animal desconhecido que fugiu tão logo despertei. Fiquei ali ainda um tempo, ouvindo o tagarelar feliz dos pássaros. A luz amarelo-pálida da manhã tinha cheiro de terra úmida e árvore de natal.

Allex acendeu um foguinho tímido, para espantar os mosquitos. Esquentei água na panelinha de camping para nosso mingau instantêno com bananas e morangos e uvas frescas que eu trouxera. Eu levara um vidrinho de nescafé, mas achei cafeína desnecessária. A noite fora restauradora, e estava completamente desperta.

"Vamos tentar fazer uma trilha agora de manhã?", sugeriu Allex. Ele correra 28km naquele mato no ano anterior, e estava ansioso para nos mostrar o caminho lindo que percorrera. Preparei sanduíches, trail mix e frutas num pote e levei na mochila, para almoçarmos na trilha.Besuntamo-nos de repelente comos e não houvesse amanhã. Mas os mosquitos eram tão agressivos que decidimos todos irmos passear de calças e mangas compridas.

Trilha linda e miserável.

Quarenta e cinco minutos trilha adentro, no entanto, e estávamos todos já sem humor. Laura reclamava sem parar dos mosquitos e nós três tolerávamos em silêncio. Queríamos olhar os animais e as plantas em volta, mas assim  que parávamos de andar, mosquitos entravam em nossos olhos e ouvidos. O único som que ouvíamos era o zunir constante de suas asas à nossa volta. Fazia trinta graus na floresta e estávamos com roupas de Outono-Inverno.

"Eu não estou me divertindo", disse Allex, decepcionado."Não esperava esse nível de mosquitos. Nem em Intervales, no Brasil, eu vi isso."
"Tá ruim mesmo."
"Vamos voltar?"
"Sim."

Foram quarenta e cinco minutos de suplício pra voltar ao carro e uma sensação de desistência e decepção semelhante ao cancelamento do primeiro acampamento. "Eu quero um acampamento relaxante", dissera Laura, ainda em Toronto, no dia anterior. Leváramos uma rede para pendurarmos nas árvores, e livros para lermos. Queríamos deitar e descansar enquanto as crianças brincavam no lago. Queríamos vê-las se embranhando no mato, construindo estruturas com galhos, como sempre fazem em bosques. Mas os mosquitos não permitiam que ficássemos parados. No carro, dirigindo de volta ao camping, Allex foi sincero: "Se a gente chegar no camping e estiver com esse nível de mutucas... acho que prefiro voltar para Toronto."

Meu coração afundou. Eu entendia. Mas não queria me dar por vencida.

"Tenho uma ideia: o que vocês acham de a gente chegar no camping, acender um fogo para esquentar nossos sandubas, brincar um monte no lago, e quando chegar o horário tenso de mosquitos, a gente entrar na barraca e tirar um cochilão delícia? Aí a gente acorda quando estiver começando a escurecer, quando não tem mais black-fly e mutuca, faz o jantar, e vocês vão conseguir ficar acordados para ver as estrelas e os vagalumes!"

"SIIIIIIIIIIIM!!!"

E assim foi.

Comemos nossos sanduíches e brincamos MUITO no lago. Espantei um chipmunk danado que subira na mesa para roubar nossos morangos. Ele saiu assim, boca cheia, morango vermelho escapando de cada bochecha, de volta para seu mato. Quando cansei de estapear mutucas, entramos na barraca. O cochilo foi longo e delicioso, e cheguei mesmo a sonhar sonhos estranhos e lindos.

Mato.

Laura e eu fomos as primeiras a levantar. Terminamos com os morangos, enquanto conversávamos, e fomos flutuar no lago, juntas, cada uma em sua bóia, falando da casa na floresta onde ela vai morar um dia. Ela segurava meus pés, um de cada lado de sua cabeça, enquanto eu remava com as mãos, para longe, para o outro lado do lago, buscando sinais na escuridão selvagem da floresta fechada, e então de volta, meus dedos tocarem as ninféias novamente e ouvirmos os alertas dos patos de que estávamos próximos demais de seu ninho.

Quando voltamos à margem, os meninos estavam de pé. Estranhamente, havia menos mosquitos do que no dia anterior.

"Vocês vão fazer o fogo hoje", Allex disse às crianças. "Já me viram fazer o suficiente; vamos ver se vocês aprenderam alguma coisa." E eles juntaram gravetos, pequenos, médios e grandes. E fizeram uma pilha, discutindo a melhor forma de fazê-lo. E criaram uma estrutura em volta, com toras de madeira, como Jenga. E enrolaram jornal, e o encostaram à chama do pequeno fogareiro aceso, e sem medo, colocaram o jornal em chamas entre os gravetos. Eles viram seu fogo pegar, e dele cuidaram por toda a noite.


Jantamos a mesma comida simples, assamos os mesmos marshmallows. Allex e eu olhávamos na distância as crianças brincarem com o fogo. Criavam brasas na ponta de galhos, jogavam folhagens diferentes na brasa. Allex apanhou um galho fresco de pinheiro e o jogou à fogueira, e ouvimos as agulhas estourarem como pipoca, desaparecendo em instantes. "Viu?", Allex explicou. "É por isso que precisamos tomar cuidado com o fogo aqui.Viu quão rápido um pinheiro desses pega fogo?"

Vieram os sapos, e as corujas, e com a noite, os vagalumes e as estrelas. Contamos histórias de luas e cometas. As crianças uivaram de volta para os lobos. Allex levou-os para andar no escuro na floresta. Laura não teve medo de nada. "O que está na floresta está nos olhando, papai", disse Thomas.

Agradeci a Lua, quase cheia.

Um sono bom. De silêncio do mato. De cheiro de noite. De luz do lago. Um sono guardado pelo que nos olhava da floresta.

Acordo alerta e descansada novamente. Um fenômeno estranho esse, de descansar mais dormindo no chão do que numa cama confortável. O mato revigora. Reintegra. Reinicia.

Sinto como o inicio de um novo ciclo.

Um mingau de café. Umas uvas que restaram aos chipmunks. Uma saudação aos patos. O último toque nas águas cristalinas do lago.

Está tudo no carro? Laura tomou o remédio de enjoo? Foi todo mundo no banheiro?
Ótimo. A gente chega em Toronto em três horas e meia.

Olho a mata densa do outro lado das águas. Obrigada.

Mas ainda estou esperando meu alce.

Cozinhe isso também!

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