quinta-feira, 14 de maio de 2020

Tempo liberto

Num dia de parque vazio e temperatura amena, levei as crianças para o primeiro piquenique do ano, num gramado onde estávamos só nós três. Percebi que nunca fizera um piquenique de primavera, pois eles estariam na escola nesse horário. O verão com eles é aquilo que mais representa a relação com o tempo que me nutre e que quero para sempre em minha vida. O piquenique foi breve, pois voltamos para casa assim que outras pessoas começaram a chegar, para manter as recomendações do governo de distanciamento social. Mas fazer este piquenique ontem foi importante, por breve que tenha sido.


Meu tempo mudou.

Minha quarentena começou finalmente, brinco. Rio porque só resta rir. Perguntam-me o tempo todo se estou bem, e eu me pergunto o que em mim parece mal.

Estou deitada num colchão de ar flutando nas águas calmas de uma piscina, em silêncio, olhando o movimento das nuvens. Espiritual e figurativamente, claro. Adoraria que essa fosse a descrição física de meu estado atual, mas não tenho tanta sorte. É essa suspensão, essa quietude, essa introspecção observadora que parece temporariamente instalada, como se meu universo aguardasse meu pulo na água.

De pé quebrado, não pulo a lugar nenhum.

O único mergulho possível é em mim mesma.

Meu tempo mudou e ele se espalha e transforma, como as nuvens, num movimento lento e constante, indefinido, à mercê das vontades de meu olhar para que eu lhes confira forma e significado. Num momento me assusto com a ausência dos pilares da minha rotina, e de repente percebo que sem pilares não há teto que se sustente, e sem teto, enxergo o céu. Há um estranho princípio de alívio e liberdade que relutei em sentir. Como o bicho de cativeiro que tem sua gaiola aberta de repente, olho para fora com desconfiança.

O tempo mudou porque ele muda. Enfim.

Marido me traz o café preto, e eu ainda na cama, sento e a memória vem. Você lembra quando a gente juntou os trapos, que você tinha que pegar o fretado e eu já era freelancer, não tinha o cão, não tinha criança, e eu ainda não corria, e eu ficava enrolando na cama porque não tinha nenhum compromisso, e você me trazia o café naquela xicarazinha pequena de espresso, para que eu acordasse cedo junto com você? Lembro. Pois é, me sinto assim de novo.

Quando vou ajudar com as lições das crianças, o cérebro puxa novas memórias. De quando Thomas nasceu. De como eu o colocava no sling, juntinho a mim, e saía para tomar café com amigos, e ia a jantares, e fazíamos viagens bate-e-volta de improviso. Lembrei de como me orgulhava de não considerar meu filho um empecilho para nada. De como eu amava levá-lo para cima e para baixo comigo, participando-o integralmente na minha vida. E me dei conta de que não fora o mesmo com Laura. Por que não? Ah. Porque Thomas estava na escola. Pela primeira vez eu tinha horários, de levar e de buscar, sempre em desacordo com o ritmo natural da família. Eu trabalhava enquanto Laura cochilava. Mas precisava interromper meu trabalho e seu cochilo para buscar Thomas na escola. Na volta, os dois dormiam no carro, e eu precisava novamente acordá-los para então tentar dar almoço para duas crianças cansadas e irritadas. Por conta dos horários da escola, perdera a mobilidade que eu tivera no puerpério de Thomas. Eu morava fora da cidade, e se levasse Laura comigo até São Paulo para ver um amigo ou passear num parque, não voltaria a tempo para apanhar Thomas na saída. Matriculara Thomas na escola com promessas de liberdade, mas o resultado fora oposto.

Essa bibliotecária que vive em meu cérebro anda passeando pelos corredores e catando memórias nas estantes, empilhando momentos nos braços e me contando como conectar todos eles. Leia esse aqui também, aquele dia em que você precisou sair cedo do evento porque tinha que passear o cachorro. Também tem esse sábado que você queria muito fazer um bate-e-volta com as crianças na praia mas não fez porque tinha aquela festa da escola que você achava idiota mas foi mesmo assim com medo da retaliação da coordenadora.

Eu não tinha condições de saber disso àquela época, pois demoraria ainda anos para entender-me de fato. Mas hoje sei que fui contra mim mesma ao tão cedo limitar nossa vida aos horários fixos da escola, dos cursos e de todo o resto que veio como consequência. Pego-me relembrando com força minhas vidas esquecidas e me dando conta, surpresa, de que vesti o personagem da mulher metódica, organizada e rotineira por mais tempo do que minha essência podia suportar, e exalo um suspiro de imenso alívio ao perceber que as palavras que usei para me definir por todos esses anos eram repetidas em voz alta na tentativa de convencer a mim mesma.

Não acredito em arrependimentos, a vida é o que é, e nós somos hoje o resultado de nossas escolhas.
Quero escolher um tempo novo, um tempo fluido.

Conforme enxergo minha relação com meu tempo mudar, vejo a relação das crianças com o tempo com ainda mais clareza... ou seria o contrário? Enxergá-las hoje como eu talvez não visse antes provoca mudanças no modo como me vejo? Prover-lhes liberdade me faz entender os grilhões que criei para mim mesma ao longo dos anos? Talvez tudo.

Não são apenas as crianças que precisam de seu tempo e seu ritmo. Todos nós precisamos. Eu preciso.

Tempo livre. Não livre de afazeres e tarefas e trabalho, mas livre de imposições, livre de rigidez, livre de autoridade, livre de cobrança, livre para escolher.

Repasso essa liberdade às crianças, ignorando a forma como elas, primeiro, trouxeram-na de presente. Mamãe, a gente pode fazer a lição à tarde hoje ao invés de de manhã? Pode, ué.

Organizei numa lousa as atividades escolares da semana de cada um e é responsabilidade deles escolher o que fazer e por quanto tempo e entregar tudo até sexta-feira. Eles têm demonstrado autonomia e responsabilidade na mesma medida em que lhes damos liberdade. Com alguma orientação, tudo é entregue a tempo. No seu tempo.

Conforme nosso tempo relaxa, minha mente se sente mais à vontade para criar espontaneamente. A ansiedade de esperar por duas horas inteiras de paz, a palpitação da expectativa da interrupção, aos poucos esses padrões se dissipam. Aos poucos. Começo a enxergar oportunidades em curtos minutos. Minha mente desbloqueia quando paro de ver o tempo em blocos.

A liberdade do tempo tem soltado amarras. O último bastião de controle caiu por terra. Meu controle do tempo era controlado pelo controle que o tempo tinha sobre mim. Sem cão, sem escola, sem corrida, o tempo não tem dono nem é dono de ninguém.

É tudo novo, e ainda me encolho arfando, dentro da gaiola, perdida na possibilidade do tempo do dia. Serve respirar. Serve a entrega. Serve a curiosidade e a confiança. Não sei como vai ser meu dia amanhã. E está tudo bem. Afinal, quando decidimos mudar de país, disse a Allex: se ficarmos aqui, nesse lugar, nessa casa, dessa forma, eu sei como serão todos os dias da minha vida até o fim deles. Se sairmos, morro de medo porque não sei como será amanhã. Mas acho que a graça é essa.


....


Em tempo: não tenho meios de agradecer a todos pelo imenso carinho e preocupação, por dividirem comigo as histórias de seus bichinhos que também se foram, por todas as mensagens de amor e apoio e suporte. Não consegui responder a todos individualmente, pois mensagens vieram de todos os lados, em comentários, emails, instagram, mas saibam que li todos, mais de uma vez, e que suas palavras foram um abraço quente que eu muito precisei nos dias mais difíceis. Obrigada, obrigada, obrigada.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O universo é um mensageiro insistente


Em Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Hilke faz um elogio à melancolia. Há que se deixar mergulhar na melancolia para se colher frutos criativos. E imersa numa melancolia intermitente, sei que há nela, de fato, uma estranha busca por poesia, um olhar atento a qualquer coisa de mágico, uma ânsia natural por detalhes que elevem o espírito, que não existe em outro estado emocional. Como se o corpo inteiro soubesse que a pisque se equilibra num fio delicado, e os dedos buscassem nas flores e pássaros apoios para atravessarem o abismo em segurança e superarem o perigo.

Flores de primavera num dia cinzento. Chuva leve que faz a grama nova brilhar. O ninho de um cisne à beira do lago.

Detalhes que não teriam significado para alguém imerso num êxtase veranil. Para o melancólico, são a mão que resgata a concha delicada na areia do mar, filtrando a água e areia que escorre devagar por entre os dedos. 

Na melancolaia encontram-se as delicadezas da vida.

A melancolia recolheu-se de repente a seu canto e abriu espaço para a raiva. Uma raiva sem começo ou fim, sem direção, que apenas era e surgia e explodia assim que alguém a tocasse, como se por sob minha pele crua e permeável, se escondessem pequenas e letais minas terrestres.

Foram dias difíceis. As crianças vinham pedir mas eu não tinha nada que pudesse dar. Recolhi-me dentro de mim, das histórias dos filmes e dos livros, buscando compreender a nova história se escrevendo aos meus pés.

Nos meus pés ela se escreveu então, na forma de um pequeno acidente doméstico, um escorregão à toa saindo da cama, um pé apoiado às pressas que se torceu e provocou o tombo, o tombo do universo, desmoronamento de um mundo. Duas semanas depois da morte do cão, que removeu da minha rotina os principais pilares que sustentavam meu dia, um dedo do pé quebrado me tira o chão. E quando acordo, muito tarde, e olho essa estranha neve de primavera que cai lá fora no mesmo dia em que os parques são reabertos, pergunto-me se compreendi a mensagem do universo completamente desta vez ou se ele ainda pretende uma rasteira por trâs, um golpe na têmpora, um tiro de misericórdia.

Sem o cão para passear e sem poder correr, abro meus olhos ainda coberta de lençóis e observo o teto. Ouço, como se fosse em outra casa, os sons das crianças preparando o próprio café da manhã e trocando detalhes de seus planos infantis em um tom casual que me faz questionar quando é que minhas crianças se tornaram adultas. Tento imaginar motivos convincentes para sair da cama. Os relógios contam o tempo aos pulos com ponteiros que giram ao contrário em velocidades intermitentes. A perspectiva do novo dia parece envolto em névoa, difuso, desfocado, sem forma, sem contornos, como tinta em papel molhado.

Respiro fundo e espero a tinta secar. O tempo fixa as manchas e cria linhas delicadas às bordas das pinceladas. Quando me afasto dos borrões e observo à distância, uma imagem se configura.

No caderno, pinto as cores do dedo quebrado. Quem eu sou quando não sou alguém com um cão? Quem eu sou quando não sou alguém que corre?

Assisto a um filme sobre o delicado equilibrio de ecossistema, uma fazenda tradicional, em que cada novo elemento traz um novo problema, e cada resolução de problema traz um novo elemento. Observo no silêncio de minha taça de vinho, a movimentação antes previsível e agora errática dos elementos do meu ecossistema. Minha casa. Meu corpo. Na ausência de um elemento ou dois, como o sistema recupera o equilíbrio? Quão quieta preciso estar para conseguir enxergar à distância o momento em que os elementos se reorganizam?

Só posso ficar quieta. E olhar. Esperar que os elementos encontrem novos modos de interagir até encontrar um novo padrão. Esperar que a tinta pare de correr sobre bolhas d'água e escolha o seu lugar.

Fico quieta. Espero. Aceito.

A raiva se dissipa. A melancolia é uma visita acenando à distânia enquanto se afasta. Sorrio um sorriso que basta. O futuro é comichão de curiosidade.

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails