segunda-feira, 1 de março de 2021

Pequenas coisas. Um bolo de chocolate.


 

"Mamãe, a professora pediu pra levar um snack sem pote amanhã", disse Laura, pulando de camisola pelo apartamento. Suas pernas e suas bochechas ainda tinham aquele brilho úmido e avermelhado do banho quente, os cabelos à la Mia Farrow pingando água, os óculos de aro violeta desembaçando aos poucos, com o contato do ar frio da sala. 

Eram sete da noite. Estava escuro e frio-refrigerador lá fora. Do lado de dentro, os abajures produziam uma luz amarelo-quente como as chamas de uma lareira.

"Por quê?'", perguntei, levando à mesa a panela de arroz, e interrompendo a conversa para pedir a Thomas um Untersetzer, ou "únta-zétze", como acabo pronunciando, porque essa palavra me vêm à mente mais rápido que qualquer outra quando preciso de um "descanso de panela" ou um "coaster". Thomas levantou devagar do sofá, olhar tenso por trás dos óculos azuis retangulares, deixou seu livro cuidadosamente aberto de páginas para baixo sobre a almofada, e cumpriu a tarefa em silêncio. Únta-zétse na mesa, criança de volta ao sofá com a cara enfiada no livro. Laura e eu observamos aquele movimento, como quem espera uma família de patos atravessar a avenida. 

De volta à conversa, Laura explicou: "A Mrs. Markandonis vai levar a gente no parque amanhã, e a gente não vai levar lancheira. Ela pediu pra levar um snack que é wrapped, como um cereal bar."

Eita. 

"Bom, não tem nenhum snack assim em casa", respondi, sem conseguir me imaginar me encasacando de novo para ir ao mercado por uma barra de cereal. "Mas eu posso fazer um bolo, e você leva ele em papel-alumínio. Pode ser?"

"Tá bom. Bolo do quê?"

"Menor ideia. Vou ver o que tem na geladeira. Agora venham jantar."

"O que tem?"

"Ah. Arroz, soufflé de brócolis e aquela cenoura cozida que vocês gostam."

"Por que é que ela tá marrom?"

"Porque eu usei aquelas cenouras coloridas, achando que ia ficar lindo, mas elas desbotaram e ficaram marrons." Laura fez uma careta. "Tá feio, mas o gosto é igual."

"O importante é estar gostoso, né, mamãe?"

"Exato. Agora chama teu pai, que acho que ele saiu da reunião."

As crianças levaram os pratos à pia, após a refeição. "Quem vai limpar a mesa hoje?", perguntei, ajeitando tudo nos espaços vazios da lava-louças, sentindo uma satisfação infantil ao conseguir resolver aquele quebra-cabeças de pratos, panelas e tigelas da forma mais eficiente possível. Competência. Tapinha nas costas. Um sorriso meu só para mim. Enquanto isso, Thomas já havia apanhado pano e spray e já terminava de esfregar a mesa e dobrar os guardanapos de pano. Laura deixara o ambiente sorrateiramente. "Laura, vai escovar os dentes!", exclamei, sem olhar para o quarto. "O Thomas vai primeiro!", sua voz soou do além-porta. "O Thomas limpou a mesa! Você vai primeiro!", rebati. E sua resposta veio arrastada após um som ininteligível de frustração pré-pré-pré-adolescente. "Aaaaaaaaargh! Por quêeeeeeee? Isso é tão boring...!"

Suspirei. 

"Laura, larga a mão de ser chata. Você sabe que tanto faz, dá na mesma, os dois vão ter que escovar os dentes igualzinho, e não importa quem vai primeiro."

"Se não importa, então o Thomas vai primeiro!". Sua voz soou firme e ponderada, com a cadência típica da satisfação de quem ganha uma batalha.

Argh. Respira.

"Laura, é sua RESPONSABILIDADE cuidar do seu corpo. Eu estou pedindo sua COLABORAÇÃO, para que todos possam usar o nosso único banheiro e a gente possa ter um fim de noite legal em família. Precisamos de ORGANIZAÇÃO para dar tempo de ler uma história antes de dormir. Eu continuo esperando que você tenha INICIATIVA para cumprir suas tarefas de forma INDEPENDENTE. Quando você precisa desse tipo de reminder (lembrança), quer dizer que ainda precisamos trabalhar seu SELF-REGULATION."

Silêncio. Usar os termos de avaliação da escola tem surtido efeito no último mês, ainda que me faça soar como uma palestrante de RH. Sinto-me ridícula, mas eles têm conseguido identificar mais facilmente o progresso de seu comportamento e como os professores avaliam sua conduta. Dar nomes aos bois.

Espero, olhando por cima do ombro em direção à porta aberta do quarto, como quem observa um animal selvagem que ainda não decidiu se você é comida ou apenas uma curiosidade no meio do caminho. 

"Aaaaaaargh. Tá bom", ela respondeu, saindo do quarto, não sem revirar os olhos assim que percebeu que eu a estava olhando. Ela tem oito anos. Imagino como será quando tiver dezesseis. Suspirei aliviada, e fui buscar na geladeira uma inspiração. Havia meio pote de sour cream que eu havia comprado não me lembro para o quê, e para o qual eu não tinha nenhum plano. Um bolo com sour cream. Eu tinha várias receitas de bolos que levavam sour cream. Certeza. Mas onde?

Era o repeteco infinito daquela situação que vi repetida a vida toda: você vai ao mercado e finalmente encontra aquele ingrediente exótico que você precisava para preparar uma dezena de receitas, mas quando volta pra casa com o ingrediente exótico comprado, não consegue encontrar uma única receita que o use. 

"Pronto, mamãe!", ela se aproxima, abrindo a boca para que eu verifique se o trabalho foi bem feito. "Tá ótimo, parabéns!", sorrio, dando-lhe um tapinha afetuoso na bochecha. "Vai brincar. Thomas, sua vez."

"Aaaaaaahn...", ele geme por trás do livro. 

"Não começa você também. Vai escovar os dentes e aí você pode terminar de ler. Vai."

Ele se levanta e caminha a passos propositalmente lentos e pesados, como se eu pudesse enxergar o peso imaginário da tarefa sendo carregado por seus ombros magros. Oh, the drama

"Vai logo, que senão não dá tempo de ler história, que eu ainda tenho que fazer bolo."

"Bolo do quê?", ele pára em frente à porta do banheiro. 

"Eu te conto quando você tiver escovado os dentes". 

"Aaaaaaaaaahn..."

Volto aos livros que espalhei no sofá. Não consigo encontrar nenhuma receita que queira preparar. Todas as que levavam sour cream levavam também manteiga, que eu não tinha, ou amêndoas, que eu não podia mandar para a escola. Penso em preparar meu bom e velho bolo de iogurte e substituir o iogurte pelo sour cream, mas me dá preguiça. Sinto no meio das costas e atrás das orelhas aquele comichão de vontade de algo diferente. Será? Toda vez que saio inventando coisa diferente no fim da noite, dá errado.

"Você quer um chá?", perguntou Allex, enchendo a chaleira.

"Sim, por favor", respondi, largando os livros e apanhando o celular. SOUR-CREAM-CAKE-NO-BUTTER, eu digito com o dedão na caixa de busca do Google. 

Levantei os olhos para encontrar Thomas à minha frente, corpo inclinado na minha direção, boca aberta num sorriso forçado que me faz lembrar um cavalo rindo. "Muito bom, amor", eu disse. "Agora, por favor, deem um jeito no quarto para a gente ler uma história."

"Você vai passar o Bob?", perguntou. Bob. O nome carinhoso que dei ao aspirador de pó. Ele quer saber se pode deixar o Lego no chão. 

"Não, só empurra o Lego prum canto do tapete pra ninguém tropeçar durante a noite."

"Tá bom."

"Tá aqui seu chá", Allex se inclinou para me beijar e deixar a xícara fumegante ao meu lado. "Eu preciso terminar uma apresentação para amanhã cedo, mas é coisa rápida", explicou, voltando ao computador no quarto. 

"Ok".

Ok. Encontrei uma receita. Um bolo de chocolate com laranja que usa creme de leite no lugar de manteiga. Já havia feito um destes uma vez, receita de um livro que eu não tenho mais. Perguntei-me se ainda tinha aquela receita em algum lugar, se a havia publicado no blog, mas tive preguiça de procurar. Daria certo substituir o creme de leite por aquele sour cream tão espesso? E a laranja? Eu não tinha suco de laranja. Hmmm... 

"Lauraaaa!", berrei na direção do quarto.

"Quêeeee?", ela berrou de volta. 

"Vou fazer um bolo de chocolate que eu não sei se vai dar certo. Se ficar horrível, a gente compra alguma coisa no caminho da escola amanhã, tá?"

"Tá tudo bem, mamãe!", ela disse, doce, sua cabeça aparecendo de repente do corredor, por trás da poltrona. "Se não der certo, a gente come mesmo assim."

"Tá bom, então, sua linda. Vamos ler história e dormir". 

Thomas apagou as luzes e ligou o abajur. Sentei-me na parte de baixo do beliche, a cama da Laura, e li dois capítulos de um dos livros que trouxe para eles da biblioteca. Uma história de mistério em uma noite passada no museu. O barulho não eram fantasmas: eram passarinhos, que as meninas da história conseguem libertar por uma janela do banheiro. Boa noite, boa noite. Beijinhos. Pulguinhas. Mais um abraço. Mais um. Pega água? Pego. Tá aqui. Boa noite. Boa noite, agora. Laura, pra debaixo da coberta. Thomas, pára de cantar. Laura, pára de chutar o colchão do teu irmão. Eu disse boa noite. BOA NOITE. 

Porta fechada. Ainda ouço os dois conversando, aos sussurros.

Na cozinha, junto os ingredientes. Não há laranja, mas eu tenho esse hábito de congelar a casca das laranjas quando as descasco. Elas ficam muito duras e ralam no ralador muito mais fácil, feito parmesão. E sempre que preciso de raspas de laranjas, posso apanhar uns pedaços de casca congelada para usar. Mas e o suco? Ah, dane-se. Faço um xarope de açúcar. Espera! Acho que ainda tem Cointreau. Uma dose. Ótimo. Metade xarope de açúcar, metade licor de laranja. 

A receita é muito simples. Dessas de uma tigela só. Era pra bater o creme de leite até ele começar a firmar, mas meu sour cream era tão firme que fiz o contrário: bati o creme azedo com um fouet até que ele ficasse cremoso. Coloquei a mistura na forma. A receita pedia para untar com manteiga e polvilhar com farinha de rosca. Eu não tinha farinha de rosca e minha forma é daquele metal engraçado que conduz super bem o calor mas que enferruja. Então forrei com papel-manteiga e não untei coisa nenhuma. 

Bolo no forno. Silêncio. Eu não conseguia ouvir mais a conversa das crianças no quarto nem o som dos dedos de Allex tamborilando o teclado do computador. Havia o som da minha respiração e o sibilar sutil e constante dos canos do aquecedor. Allex apareceu de repente, espreguiçando-se num sorriso de trabalho entregue. "Que cheiro bom", ele disse."Bolo de chocolate", respondi. "Mas não sei se vai dar certo". Ele me olhou sem entender. "Ah, receita nova, mudei um monte de coisa, eu tô cansada e distraída, e você sabe... 2021. Não espero nada."

Assistíamos juntos a um episódio de Lupin, enquanto o bolo crescia. Saiu do forno lindo, uniforme, brilhante, para minha surpresa. Espetei-o todo, e pincelei com a calda de açúcar e licor, enquanto Allex preparava mais um chá. "Quer ver mais um episódio? Acho que é o último."

Na última cena, já dominada pelo sono, levantei para cortar um naco do bolo e guardar o restante sob a redoma de vidro. O miolo era macio e úmido. Gosto forte de chocolate amargo e um aroma delicioso e delicado de laranja. "Gente, que bolo bom", falei de boca cheia. Allex levantou para roubar um pedaço. "Deu certo, então!"

Deu muito certo.

Escovamos os dentes falando de presepadas. Eu contando presepadas das crianças, ele contando sobre presepadas de adultos. "Você vai ler um pouco?", ele perguntou. "Não, esse livro é bom, mas eu tenho tido pesadelos quando leio ele antes de dormir", explico, colocando Educated, de Tara Westover, no criado-mudo. Chamo Allex para vir ver as crianças dormindo. Nenhuma delas está coberta. Laura chutou os lençóis para os pés e dorme em pose de bailarina. Thomas se moveu tanto que os lençóis se enrolaram em seu corpo desconjuntado, parecendo uma marionete enroscada nos próprios fios. Mas dormem tranquilos. Deixamos os dois e vamos dormir. Deixo o escuro do quarto pesar sobre mim. Minhas costas se desmancham sobre o colchão. Amanhã será um dia como foi ontem. Esta noite foi igual às outras. Mas meu bolo de chocolate deu certo. Pequenas coisas. Pequenas, minúsculas coisas. Boa noite. Um beijo. Outro.

Mais um.

....

 

BOLO DE CHOCOLATE COM CREME DE LEITE (ou SOUR CREAM)

(do livro Chocolate is Forever, de Maida Heatter, no site Epicurious)

Ingredientes:

  • 1 1/4 xic, farinha de trigo
  • 2 Colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh. (chá) sal
  • 1/2 xic. cacau em pó (sem açúcar)
  • 1 xic. açúcar
  • 1 xic, creme de leite fresco ou sour cream
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 2 ovos grandes
  • Casca ralada de uma laranja

(calda)

  • 1/3 xic. suco de laranja (ou água, se não tiver suco)
  • 3 colh.(sopa) açúcar

Preparo: 

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e aqueça o forno a 180oC. Unte e enfarinhe uma forma de bolo inglês de 20cm, ou forre-a totalmente com papel-manteiga. 
  2. Numa tigela, peneire a farinha, cacau, fermento, açúcar e sal. 
  3. Em outra tigela, bata o creme de leite, a baunilha e a casca de laranja até que o creme de leite tome corpo e firme quando você levantar o fouet. Cuidado se fizer isso com a batedeira, para não bater o creme demais, ou ele pode talhar. O sour cream que usei tinha a consistência de cream cheese, e por isso apenas bati com o fouet até ele ficar cremoso e aerado. 
  4. Junte os ovos, um a um, batendo apenas até que o ovo esteja incorporado. (De novo, se estiver usando o creme de leite, não bata demais para a mistura não talhar). Os ovos vão fazer a mistura ficar mais líquida.
  5. Use uma espátula para incorporar os ingredientes secos, apenas até que não se veja mais farinha. Transfira a mistura para a forma, espalhando de modo uniforme, e leve ao forno por 1 hora, ou até que um palito saia limpo quando inserido no centro e o bolo esteja elástico quando pressionado com o dedo. Enquanto isso, misture o suco (ou água, ou uma mistura de água e licor de laranja) e o açúcar e deixe descansar até dissolver. 
  6. Quando o bolo sair do forno, ainda na forma, fure-o todo com um palito e, com um pincel de cozinha, espalhe toda a calda sobre o bolo. Deixe que ele esfrie completamente antes de desenformar. O bolo se conserva bem por alguns dias em pote fechado e fica melhor de um dia para o outro.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Volta às aulas na câmara de descompressão - um bolo e um peixe


As crianças voltaram à escola.

A casa está com aquele silêncio familiar que relaxa meus músculos e acalma meus nervos. Eu amo a companhia de meus filhos, mas eles estão grandes e independentes demais para passarem tanto tempo confinados comigo. Eles precisam de um tempo sem minha presença, muito mais do que eu, na verdade. Talvez fosse diferente se eles fossem mais novos. Não sei. Entramos nesse apartamento quando Laura tinha 4 anos e Thomas 6. Laura fez 8 em janeiro e Thomas faz 10 em abril. Duas crianças de 8 e 10 anos correndo num apartamento de 70m2 é bem diferente de duas crianças de 4 e 6 fazendo a mesma bagunça nesse mesmo espaço. Esse espaço que temos não comporta seus corpos em expansão de energia. A casa é, cada vez mais, o local de sossego, de descanso. É preciso ter um 'lá fora". É preciso ter um "outro lugar". Coisas precisam acontecer em outro ambiente, para que a casa possa atingir seu máximo potencial de acolhimento. 

E as crianças, como eu disse, voltaram à escola. 

A manhã foi estranha, desconjuntada, como um corpo reaprendendo a andar, consciente de cada músculo, cada tendão, cada nervo, em espasmos de movimento desajeitado. Putz, eu tinha que fazer almoço. Putz, não preciso mais colocar os tablets para carregar. Putz, eu costurei a calça de neve do Thomas? Putz, cadê aquele livro da biblioteca da escola que a Laura tinha que devolver? Putz, eu não posso sair para correr, porque tenho que andar até a escola com os dois. Putz, tem máscara extra? Putz, pega uma luva extra pra se a sua encharcar. Putz, não esquece os "indoor shoes". 

Putz.

Faz -20oC lá fora, e há 30cm de neve nas calçadas. Pequena aventura. Há quem reclame, mas eu tenho amor por essas nevascas noturnas que nos acordam como se alguém tivesse derrubado um saco de açúcar sobre a cidade. Afundar o pé na neve até o joelho me dá uma satisfação infantil muito semelhante a me enfiar em uma piscina de bolinhas. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que a neve é uma piscina de bolinhas. 


 

Tentei sair para correr, mas a neve fofa no asfalto me fazia escorregar, e a noite mal dormida pesou nas pernas mas do que eu gostaria. Voltei para casa cedo, com frio, pensando que deveria ter ouvido meu coração que dizia que hoje não era dia de corrida. Contentei-me em fazer um pouco de yoga e alongamento, e saí para o mercado. 

"Você vai de carro?", perguntou Allex.

"Vou."

"Você já dirigiu na neve?"

"Nunca."

"Cuidado."

"Podexá."

Dirigir na neve requer atenção. As rodas derrapam tanto quanto meus tênis de corrida. Mesmo em velocidade baixa. Há os solavancos dos montes de neve compactados nas laterais da rua. As ruas que estão limpas ficam mais estreitas, porque parte delas é ocupada pela muralha de neve ao longo da calçada, empurrada pelos caminhões que desobstruem a rua e jogam sal. É como aquela estradinha que sai da praia  no meio do mato: com areia, pedregulhos e lama, tudo junto ao mesmo tempo, só que na cidade. 

Eu estava tão focada, e ao mesmo tempo me divertindo tanto com aquela novidade, que me senti jogando video-game. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que dirigir até o mercado é como jogar video-game. 


 

Mercado desorientado. Por algum motivo eu não tinha clareza para criar uma lista mental de refeições e ingredientes para a semana. O apetite das crianças anda irregular, assim como o de Allex, e eu não conseguia resolver o quebra-cabeça dos jantares para quatro, almoços em casa para dois com preferências diferentes (eu almoço leve, e Allex é do "comfort-food")  e almoços de escola para as crianças. Mais "snacks".Sem "nuts". 

Eu havia preparado dois bolos de banana, coco e nozes da Martha Stewart algumas semanas antes, e ainda tinha um deles congelado. Enquanto tirava o bolo do freezer para mandar de snack na primeira semana da escola, Thomas lembrou: "Mas mamãe! Tem nuts!"

Putz.

Então no dia anterior ao primeiro dia de escola, preparei, no improviso do que eu tinha, um bolo simples com frutas, para que as crianças tivessem lanche. 

E agora eu saía do mercado carregando sacolas demais. O reflexo de minha confusão mental, comprar mais comida do que precisamos na semana. 

Arruma tudo na geladeira. Almoça. 

"Eu não tenho reunião pela próxima meia hora. Quer tirar um cochilo?", pergunta Allex. 

"Por favor". 

O silêncio gostoso da casa pedia cochilo. Minha cabeça sem dormir também. Deito sob as cobertas, as costas relaxando e estalando sob a luz de inverno entrando pela janela aberta, e ouço o estalo da maçaneta. 

"Pra que você fechou a porta? As crianças não estão aqui!", disse, rindo. 

"Pois é, eu me perguntei isso também", ele riu. "Foi automático."

Meia hora de cochilo restaurador. Sonhei. Quão cansada está uma pessoa que entra em REM e sonha em trinta minutos de cochilo? 

Café. Tem isso de a gente ter colocado um timer na tomada da cafeteira, nos horários em que a gente gosta de tomar café, já que ela demora uns vinte minutos para esquentar a caldeira. Ela liga às seis da manhã e desliga às nove. Liga de novo ao meio-dia e meia, e desliga às duas. "A cafeteria está aberta!", Allex diz. 

Trabalho. O texto demora a se formar em minha mente, como se eu tentasse escrevê-lo em outra língua. Leio palavras formadas por ideogramas desconhecidos.  

"Ana! Eu fiz uma coisa importante que a gente tinha esquecido de fazer!", Allex grita do quarto. 

"O quê?"

'Coloquei um timer pra lembrar de buscar as crianças."

Putz. 

Ainda bem. Porque eu tenho disso. Quando engato no trabalho acho que duas horas passadas foram quinze minutos. Perco-me. Perco a noção. Perdi a conta de quantas vezes cheguei atrasada na escola pra buscar as crianças. Mas eles ficam tranquilos. São filhotes lindos, que sabem que a mamãe é meio cabeça-de-vento, mas transborda amor por eles.

Não cheguei atrasada. Bom. Mais ou menos. O elevador do meu prédio imenso, que só comporta duas pessoas por vez durante a pandemia, demorou horrores para aparecer. Mas o caminho até a escola havia sido limpo e alcancei as escadas do pátio mais rápido que de manhã, sem passar pela aventura da piscina de bolinhas. 

Eles me esperavam, juntos, ao lado da professora, todos mascarados. Acenei. Levantei o trenó de plástico preto, essa grande banheira com cordinha, chata de carregar com dedos gelados, para que eles vissem como eu sou uma mãe legal. Atrasada. Mas legal. 

É proibido brincar no pátio da escola depois da aula. O que não faz sentido, porque tem menos criança brincando no pátio depois da aula do que durante a aula. Mas tudo bem. Levei os dois ao parque em frente à escola, destino diário em tardes de inverno pós-escola pré-pandemia. Eu havia explicado aos dois, de manhã, como precisávamos voltar direto para a casa, sem brincar depois da aula, por conta da quarentena. Mas meu coração apertou. Há 30cm de neve fofa e divertida no parque, que a qualquer momento pode derreter e não voltar mais. Isso de estações marcadas faz a gente ver o tempo diferente. Não é um ano que passa. Não foi um ano de quarentena. Esse é o único inverno dos meus filhos com 8 e 10 anos. No próximo, vai saber, talvez Thomas não veja mais graça em brincar na neve. Talvez ele tenha crescido. Não vai ter outro inverno, outro dia de 30cm de neve no fevereiro que ele tem 10 anos e ainda gosta de brincar com o trenó. 

Por isso levei os dois ao parque. 

"Brinquem com as crianças da sua sala, por favor", recomendei. "E fiquem de máscara."

Havia menos gente ali do que eu esperava. O dia estava cinzento e sem graça, e os -20oC se tornaram -10oC, o que é mais confortável, mas ainda espanta muitos pais. Era possível brincar sem aglomerar. Era possível me manter distante de todos os outros adultos. Thomas correu para construir um iglu com uns amigos que carregavam pás de neve. Laura achou uns meninos da sua sala com quem ficou brincando de construir tijolos de gelo que eles quebravam com galhos. Eu fiquei ali, mãos nos bolsos, trenó aos meus pés, suspirando de alívio em ver duas carinhas contentes de quem teve um dia mais normal, de quem passou tempo com os amigos, de quem teve aula olhando para a professora sem um fundo de tela com uma praia do Caribe. 

"Eu tô no Big Hill!", avisei às crianças, puxando a cordinha do trenó atrás de mim e andando pela neve fofa em direção à grande ladeira que separa a parte alta e a parte baixa do parque. Ali, onde tem uma placa altamente ignorável em que se lê "proibido descer de trenó". Lá em cima, desviei de três crianças e dois adultos, posicionei o trenó num trajeto que imaginei ter menos buracos, e sentei minha bunda de quarenta anos no plástico já coberto de flocos de gelo. Inspirei. Expirei. Empurrei o chão. É como montanha-russa. O ar frio veio por entre meus pés, atingindo meu rosto. A parte da frente do trenó abria caminho pela neve, levantando, como água, cristais brancos e leves em ondas nas laterais do meu corpo. Gosto do jeito como o estômago se move dentro de mim na queda, abrindo um espaço vazio no meu tórax que se preenche de alegria. Deixei que o trenó desacelerasse sozinho, derrapando de um lado e do outro, até cansar no meio do descampado. Espere que o carro pare completamente antes de desafivelar os cintos de segurança. Ao sair, por favor verifiquem se não deixaram nenhum pertence para trás. Levanto. Minhas calças estão polvilhadas de branco até as coxas, por baixo do casaco comprido. Tiro a neve das roupas com batidas leves, no ritmo do coração. 

Subo de novo. Desço de novo.

De novo. De novo.

De novo. Última. 

Os dias estavam tão iguais. Me deixa brincar de trenó.  



As crianças me acompanham na rua a passos cansados, arrastados. Tiram botas molhadas, penduram casacos, colocam as luvas encharcadas para secar em cima do aquecedor. Desmontam lancheiras sem eu precisar pedir. Tomam banho e leem os livros da escola. Sento para ajudar Laura com a pronúncia. Communities. Expectations. Empathy. Empathy is when you notice other people's feelings and try to understand them. São cinco horas e Allex ainda trabalha. Coloco uma música. Há dois momentos do dia em que gosto de colocar uma música. No café da manhã, para agitar. No fim do dia, para acalmar. O App de música criou uma lista especial para mim: as músicas que eu mais ouvi em 2020. Play. Metade dela era Frozen 2, metade Moana. Tinha um Nick Cave e um Icona Pop perdidos no meio. Curioso.

Preparo o jantar. Into the unknooooooooown... Into the unknoooooown... Um risoto com tomates e ervilhas, em que uso um caldo de camarões que fiz umas semanas antes, com as cascas dos camarões que cozinhei. Eu não quis comprar mais camarões para o risotto,pois eles viriam de novo com cascas, e eu quereria fazer caldo de novo, e viraria o ciclo infinito do risotto do caldo de camarão. Mas àquela manhã, pela primeira vez na vida, as vieiras estavam em promoção no mercado. Vieiras fresquinhas. Porque aqui tem disso: quando a comida está perto do vencimento, principalmente carnes e laticínios, os mercados colocam uma etiqueta avisando que o produto tem que ser consumido hoje ou amanhã, e que por isso está com 30, 50 ou até 70% de desconto. Acho isso muito honesto. Comprei duas bandejinhas de vieiras pelo preço de uma. 50% off. Enjoy tonight! Podexá. 

Dourei as vieiras na manteiga e servi sobre o risotto. Laura adorou. Thomas achou curioso. Mas gostou mais quando eu mostrei, no Wikipedia, como era uma vieira viva, dentro de sua concha. Onde ficava sua boca, seu intestino, o modo como ela nada abrindo e fechando a concha, expulsando ar de si mesma feito um fole. Você sabia que as vieiras tem diversos olhos? Eles ficam ao longo das beiradas das conchas, entre os filamentos que elas usam para apanhar comida. Quando a luz bate neles, eles brilham feito bolinhas azuis,. Parece uma nave espacial. 

As crianças cogitaram se a vieira seria capaz de ver vários filmes ao mesmo tempo.

Escova dentes. Desenha um pouco. Senta do lado do pai no sofá. Conversa sobre o dia. O que teve de bom? O que pode melhorar? 

Boa noite. Boa noite. Beijinhos. Mais um abraço. Me dá água? Allex coloca as coisas na lava-louças. Santa lava-louças, que eu sempre achei que fosse bobagem. Me lembra de só morar em casa com lava-louças. Sento na poltrona amarela com um chá. Já é noite faz tempo. Gosto de luz amarela de abajur. A sala tem quatro abajures. Eu nunca acendo a luz do teto. Como foi seu dia? Você viu a notícia? Olha esse meme. Achei que você fosse gostar. Amo você. Eu também. 

Os dias andavam tão iguais. As crianças voltaram à escola. Amanhã vou escrever um post no blog. Faz tempo que não consigo me concentrar nisso. Vou falar do peixe no forno que eu fiz e ficou uma delícia. Só precisa de menos alho. Vou falar do bolo de fruta que preparei para o primeiro dia das crianças.Vou falar de como foi um dia bom, muito bom, o primeiro dia de aula, ainda que tenha sido de alguma forma enevoado e confuso, como uma câmara de descompressão. 

Vai ficar tudo bem. 

....

 

O Bolo

Um bolo simples, muito simples. Adaptável. Pouco doce. Desses bons para o café da manhã ou bons pra mandar de lanche, quando você não pretende que seus filhos comam tanto açúcar no recreio que pirem e despenquem durante a aula de geometria. Bolo bom de fazer na mão. Mas pode fazer na batedeira. Era pra usar buttermilk, usei iogurte. Buttermilk deixa a massa mais molinha. Meu iogurte é mais consistente, gordinho, e deixou a massa com cara daqueles bolos italianos de massa compacta. Eu gosto. Mas você pode substituir uma parte do iogurte por leite, se quiser. Ou usar buttermilk. Também era para ser só de mirtilos. Mas eu tinha 3/4 xic. de um mix de frutas congeladas: mirtilo, cereja e amora preta. Achei que era pouco e piquei uma maça com casca junto. Ficou ótimo. Moral da história: use a fruta que quiser. Mas as que soltam caldinho ficam mais gostosas. Também era para ser numa forma de 12x8 polegadas. Me deu até coceira de preguiça de calcular isso. Usei uma forma quadrada de 9x9 polegadas (22-23cm). Dá pra usar forma redonda. Dá pra usar uma forma retangular, desde que não muito maior que isso. Ela pedia para untar e enfarinhar. Fui teimosa, porque achei que seria chatinho desenformar depois, e forrei tudo com papel-manteiga. Acabou que demorou bem mais pra assar. Não forre com papel-manteiga. No máximo, use um papel-manteiga untado em baixo, pra desenformar fácil. Ou use uma forma de fundo removível. Enfim. Falei que era um bolo de improviso.


BOLO DE IOGURTE E FRUTAS 

(adaptado do livro Apples for Jam, da Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 2 1/2 xic, farinha de trigo
  • 1 colh (sopa) fermento químico em pó
  • 1/2 xic. de açúcar
  • Noz moscada ralada na hora
  • 2 ovos grandes
  • 1 xic. iogurte natural
  • 4 colh. (sopa) manteiga, derretida
  • 1 colh (chá) casca ralada de um limão
  • 1 xic. frutas vermelhas ou outra de sua escolha, picada
  • 2 1/2 colh. (sopa) açúcar para polvilhar

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 205oC. Unte e enfarinhe uma forma quadrada de 22cm (ou qualquer outra de mesmo volume). Se quiser, forre o fundo com papel manteiga untado, para ajudar a desenformar. 
  2. Numa tigela, misture a farinha, fermento e uma ralada generosa de noz moscada. 
  3. Em outra tigela, bata com um fouet os ovos e o açúcar até que fique claro e fofo.
  4. Junte aos ovos o iogurte, a manteiga e a casca de limão, e misture bem. 
  5. Junte a farinha em três adições, misturando com uma espátula, apenas até que não se veja mais farinha.Não misture demais, ou o bolo ficara maçudo. 
  6. Espalhe colheradas da massa na forma (a massa é mais firme, como de muffin), e, com a ajuda de uma espátula, tente tornar uniforme. Espalhe as frutas por cima e polvilhe com o açúcar. 
  7. Leve ao forno por 25 minutos, ou até que um palito saia limpo quando espetado no centro. O bolo não necessariamente vai ficar muito dourado. A foto do livro mostrava o bolo super dourado, e eu acabei deixando bem mais tempo no forno, sem necessidade. Coisas de mente atrapalhada com o primeiro dia de aula. Deixe no forno apenas até o palito sair limpo. 
  8. Deixe que esfrie completamente antes de cortar em quadrados. O bolo se mantém bem por alguns dias em pote fechado. 

O Peixe. 

Um jeito muito fácil de fazer peixe. Assado, com ervas. Usei haddock fresco, que é peixe fácil de se encontrar aqui. Mas acho que pescada amarela, linguado, ou qualquer outro peixe branco mais alto e mais firme ficaria bom. Você pode usar as ervas que quiser, na verdade, na combinação que mais gostar. Eu só não picaria o alho, que ficou muito forte. Faria lâminas, fáceis de remover de cima do peixe na hora de comer. Ou deixaria ele em metades, apenas para aromatizar. Servi com brócolis cozidos e batatas-doces assadas nesse dia.

 

 

PEIXE BRANCO ASSADO COM ERVAS

(do livro Twelve, de Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 6 filés de peixe branco, sem pele, de cerca de 150-200g cada
  • Cerca de 30g de farinha de trigo
  • 3 colh. (sopa) azeite
  • 125ml (1/2 xic) vinho branco
  • 60ml água
  • 2 dentes de alho, fatiados ou cortados na metade 
  • 1 colh. (sopa) de cada uma destas erva, picadas; alecrim, sálvia, salsinha, tomilho e hortelã
  • 30g manteiga

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 220oC. 
  2. Corte os filés na metade, para facilitar. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Passe os filés na farinha de trigo, chacoalhando pra tirar o excesso.
  3. Coloque o azeite numa travessa de forno ou panela que comporte todos os filés numa camada só, e coloque ali os filés de peixe enfarinhados. Regue com o vinho e a água. Espalhe o alho e as ervas por cima. Divida  manteiga em pedacinhos pequenos e coloque sobre os filés. 
  4. Leve ao forno já aquecido e asse por cerca de 20 minutos. O peixe deve estar opaco, branco e macio, com um pouco de molho borbulhando em volta. Sirva quente.

Cozinhe isso também!

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