terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Biscoitos do dia seguinte


Eu sabia que estava nevando, porque a noite lá fora, através da janela de persianas abertas, ao invés de negra e densa, era cor de laranja esmaecida, esfumaçada na massa de nuvens encobrindo o céu. Um jogo duplo de espelhos: o tapete uniforme de neve branca sobre a cidade refletindo no céu as lâmpadas halógenas das ruas e dos parques, tornando a madrugada estranhamente iluminada. 

Fiquei deitada por um tempo, olhando os flocos de gelo dançando no vento, até aquele momento em que a gente não sabe mais se está dormindo ou não, o instante inefável em que se abre mão do controle e a consciência é abandonada ao sonho, leve e frágil como aqueles flocos de neve.

Na manhã seguinte, Toronto tinha uma cobertura de açúcar de confeiteiro e merengue, escondendo as cores de outras estações, numa monocromia súbita, que me fazia pensar em filmes de diretores suecos. Aquela massa de nuvens que havia sido laranja-salmonada como vestido de casamento de sogra, agora era de um cinza sem contornos e definições, que me fazia pensar nos enfeites de Natal delicados, fechados durante todo o ano numa caixinha, cobertos com uma manta protetora de algodão.

Abre tampa do céu, por favor, que eu quero ver luz.

"Posso 'ter' um biscoito, mamãe?", perguntou Thomas, já com a redoma de vidro na mão de dedos cada vez mais longos, expondo os biscoitos finos e redondos, grandes como pires, assados dois dias antes. 

"Sim, claro", respondi, apanhando meu café e preparando um pão torrado com manteiga e geleia."Que bom que pelo menos você gostou deles", continuei, sem querer disfarçar o amargor que não vinha do café.

"Você não gostou?", perguntou Allex. Minha resposta foi uma careta e um som que soou como o abrir rápido de uma porta enguiçada.

Havia assado aqueles biscoitos num afã culinário repentino. Saí para comprar chocolate para os biscoitos de avelãs e chocolate daquela revistinha da Martha Stewart, só para chegar em casa, abrir a revista, e descobrir que os biscoitos não levavam chocolate, mas café. Insisti mesmo assim e os preparei sem dificuldades. Chequei a receita uma segunda vez ao ver os montinhos de massa se espalhando feito lava na assadeira. Os biscoitos eram finos mas imensos, maiores que a palma de minha mão. Quando provei deles e me deparei com aquele gosto forte de café amargo, que encobria totalmente o sabor das avelãs, meu coração afundou. Duas xícaras de avelãs desperdiçadas num biscoito desagradável.

Guardei-os sob a boleira de vidro, consciente de que meus lábios tinham aquele mesmo formato da redoma, tensos em um desgosto frívolo, e comecei a pensar se eu poderia utilizar parte deles dentro de um sorvete de baunilha. Talvez a doçura do sorvete amenizasse o amargo do café.

Mas eu estava sem vontade de fazer sorvete.

Eu estava sem vontades.

Naquele dia cinza e nevado, Thomas comeu uma meia dúzia de biscoitos ao longo do dia, e eu me perguntava se ele realmente gostara deles ou se seu corpo se conformava em comer qualquer coisa, desde que tivesse açúcar. "Não coma demais, Thomas, que a última coisa de que preciso é uma versão sua cheia de cafeína", censurei, revirando os olhos.

Café tomado, calcei os tênis de corrida e luvas finas, e saí para aquele mundo branco e cinza lá fora, na tentativa de correr fora minhas tensões. Mas o ar do inverno era seco e duro feito um cenho franzido por rancores. Não havia nenhum animal no parque, os esquilos e pássaros que anuviam meu mau humor, e o silêncio à minha volta novamente me fez pensar em algodão, mas nos ouvidos. 

Voltei para casa carregando a mesma ansiedade que levara para passear. 

Passei meu dia como um fantasma em minha própria casa, deslocada e desencaixada, desconfortável e desconcentrada, vagando, num estado de suspensão de alma, no purgatório das minhas incertezas. Um daqueles dias em que a TV não tem imagens, os livros não têm letras, as conversas não tem nexo, e o tempo parece estagnado e quieto, exatamente como aquele inverno lá fora. 

Um dia em que o som da sua própria respiração é muito alto e seus pensamentos se arrastam como as correntes dos fantasmas dos castelos.

"Quero um doce", sussurrei para mim mesma,a e fechando portas de armários e geladeiras, provocando no mesmo ambiente os movimentos erráticos que aconteciam dentro de mim. Mas minha casa tem essa particularidade: raramente se encontra um doce se eu mesma não o tiver feito. Às vezes há um chocolate perdido, mas a verdade é que eu não sou muito de chocolate. E a verdade da verdade mesmo, é que quando a gente busca um doce pra acalmar o peito, nenhum doce nunca é aquele que a gente procura. Nada tangível consegue preencher buracos intangíveis.

Olhei a enorme pilha de biscoitos sob a redoma de vidro, e suspirei. Era o meu corpo aceitando qualquer coisa em forma de açúcar, agora. Ergui o vidro pesado com três dedos e apanhei um biscoito redondo e grande, borbulhado de avelãs. Coloquei-o sobre um prato de sobremesa, munida de desejos da civilização e ordem ausentes dentro de mim, e levei para a mesa da sala, para acompanhar a xicarazinha de espresso que eu havia preparado. Ri internamente, e aquele riso formou um sorriso relaxado no meu rosto, e  a ansiedade se dissolveu um pouco. Apanhei a revistinha da receita novamente, olhando a fotografia que mostrava biscoitos pequenos ao lado de uma xicara de vidro repleta de café. Claro, era um café americano. Que erro de principiante fora o meu de achar que aquela xícara da foto era do tamanho de um espresso. Claro que os biscoitos eram gigantes! Aquilo na foto ao lado dos biscoitos não era uma xicarazinha, era uma enorme caneca. Proporções e referências. 

Dei uma bicada no café quente e mordi o biscoito, esperando aquele amargo desproporcional de novo. Mas ele não veio. O sabor era forte de avelãs e algo muito agradável de caramelo. Ele era crocante à mordida e derretia deliciosamente  na boca.  

Curioso.

Apanhei um copo d'água, para tirar da língua o gosto do espresso forte, que talvez estivesse encobrindo o amargor que eu sentira uns dias antes.

Hmm.

De alguma forma, o sabores haviam se entrosado melhor de um dia para o outro, e um biscoito que eu havia considerado desagradável agora estava delicioso. 

Comi mais um. 

Olhei para aquela enorme pilha de biscoitos sobre a boleira e suspirei, desta vez aliviada. Os biscoitos eram bons. Eu não precisava pensar no que fazer com eles nem me punir mentalmente por pensar em jogá-los fora. Talvez até mesmo os preparasse novamente.

Era um problema minúsculo, mas um problema minúsculo resolvido. Um pensamento a menos para arrastar pelo chão do castelo, uma ansiedade a menos para levar para passear no parque.

Deixei que aquele biscoito dourado me trouxesse paz e felicidade. Só um pouquinho. Através da janela, avistei um grupo de gaivotas voando alto em direção ao lago. Vida e movimento na monotonia depressiva do céu.

...

Olhando direito para o biscoito, acho que ele deveria ter espalhado menos e ficado não tão fino. A massa estava mais úmida, de fato, do que massas de cookie costumam ser. Culpa de medidas em volume, sempre tão pouco precisas. Na dúvida, 2 xic de farinha devem ser 250g. Se achar que a massa estiver excessivamente grudenta e molenga, junte mais uma colher ou duas de farinha até que a massa esteja mais fácil de tirar da colher. Ou asse como está, para ter biscoitos finos e crocantes.

BISCOITO de AVELÃ e CAFÉ

(Da Martha Stewart)

Faz 36 biscoitos grandes

Ingredientes:

  • 2xic farinha de trigo
  • 1 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1 colh (chá) sal
  • 230g manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic açúcar
  • 1/2 xic açúcar mascavo
  • 2 ovos grandes
  • 3 colh (sopa) café em pó instantâneo (usei Nescafé)
  • 2 xic de avelãs, sem casca, torradas e picadas grosseiramente

Preparo:

  1. Preaqueça o forno a 190oC. Forre uma assadeira com papel manteiga.
  2. Numa tigela, misture a farinha, sal e bicarbonato.
  3. Na batedeira, bata a manteiga e os açúcares até que fique claro e fofo.
  4. Junte os ovos, um a um, misturando bem. Junte o café e misture.
  5. Com a batedeira em velocidade baixa, junte a farinha e misture apenas até que tudo esteja incorporado. Misture as avelãs picadas com a ajuda de uma espátula.
  6. Coloque porções de 1 colh (sopa) na assadeira, com espaço para que espalhem, pelo menos 5cm, e asse por 12 minutos. Deixe que esfriem na assadeira por 2 minutos antes de transferir para uma grade.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O último dia de 2020


Último dia de 2020. 

Acordo às seis da manhã ao som de passos e sussurros e portas abrindo e fechando com menos cuidado do que eu gostaria. O quarto continua escuro, guardado ainda do sol que só vai dar as caras às oito horas. Tento desligar os ouvidos e voltar à dormir, mas orelha de mãe têm essa ligação automática com barulho de filho, e me deixo levar pelos ruídos familiares que eles produzem ao prepararem seu café. Geladeira. Armário. Pratos sobre a mesa de madeira. Faca batendo devagar contra a tábua de corte. Vidro raspando e batendo: a redoma de bolo, cheia dos biscoitos de avelã e café que assei na noite anterior. O silêncio me diz que estão comendo. O som dos pratos na pia me diz que os eduquei bem.

Rolo para o lado, e jogo um braço estabanado por cima dos ombros do marido. Bom dia, amore. Bom dia. Dormiu? Não. E as costas? Continuam doendo. Um mal jeito nas costas, depois de brincar de levantar Thomas de cabeça para baixo. "La vecchiaia", brinco. Mas suspeito que o mal jeito tenha menos a ver com nossa velhice e mais a ver com o fato de que Thomas cresceu. Muito.

Demoro mais alguns minutos para levantar. É aquela preguiça, aquele jeito do corpo tentar evitar o dia por vir, aquela vontade de cobrir a cabeça com as cobertas e fingir que sou crisálida. Ou um astronauta de filme, enfiado na sua câmara criogênica, para passar pela parte difícil do filme e voltar no futuro, quando tudo estiver resolvido. Posso? Me congela e eu volto quando tudo estiver bem.

Quando era criança, sonhei que o despertador tocava, cedinho, numa manhã de inverno ainda imersa em noite. Preguiçosa, cobria-me novamente, voltando a dormir. Minha mãe me chamava no sonho, e quando me levantei, era noite ainda. Noite densa, sem estrelas. "Ai, Ana! Olha só o que você fez!", dizia minha mãe do sonho. "Você não levantou da cama quando estava amanhecendo, e agora o sol voltou! Vai ser noite para sempre! PRA SEMPRE!" O sonho era vívido, e eu era pequena o bastante para não saber se aquilo era ou não cientificamente possível: o sol voltar atrás e fazer noite só porque uma criança voltou a dormir depois do despertador tocar. Mas, só pra garantir, eu comecei a levantar mais cedo depois disso.

Nada de crisálida e criogenia, que eu não quero que seja noite pra sempre. Levanta.

Minha cabeça é uma bagunça, e quando coloquei os pés no chão, decepcionei-me com a constatação de que comprara, no dia anterior, um pacote imenso de sementes de funcho no lugar das de erva-doce que eu queria. Droga.

A poltrona amarela que comprei na Ikea é meu lugar de honra. "O trono da Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa", brincam as crianças. Mas o gesto é quase ritualístico, o caminhar para fora do quarto e me sentar na poltrona, perna direita cruzada sobre a esquerda, mãos sobre os braços amarelos do móvel. Observo em silêncio o movimento dos cortesãos enquanto aguardo minha xícara de cappuccino quente. Enquanto bebo meu café, as crianças constroem castelos de peças de Jenga e dominó, e formam exércitos feitos de dezenas de dados coloridos do Tenzi. Vê-los criando estratégias de guerra ali aos meus pés só faz aumentar a presença da Rainha de Copas no caleidoscópio que é minha personalidade. 


Último dia do ano.

Quais são os planos? O plano é não ter plano. Como foi o Natal. Nada me faz mais rabugenta do que a pressão de me divertir com dia e hora marcada. A ausência total e completa de qualquer obrigação social ou psicológica de me divertir no Natal foi o que me fez relaxar e me divertir de fato. Assim, só nós quatro e uma lasanha. 

Reveillon aqui não existe. Não como no Brasil. Nos outros anos, quando a prefeitura tentou organizar algum evento de contagem regressiva naquela praça no centro, que parece a Times Square versão miniatura e deprê, o evento foi cancelado umas horas antes, porque fazia 17oC NEGATIVOS lá fora. Nada de pular ondinha no lago. Mesmo o Polar Bear Swim, o "pular ondinha" canadense, que consiste em dar um TCHIBUM! no lago gelado no primeiro dia do ano, não aconteceu... porque o lago estava congelado. Esse ano, as temperaturas estão amenas, e seria legal saracotear até o centro com a criançada. Mas né? Pandemia. Não tem evento nenhum. Sem praia e avenida Paulista pra se aglomerar, canadense costuma fazer festa de Reveillon amontoadinho dentro de Pubs quentinhos, com direito a tiarinha e óculos com o número do ano novo. Mas né? Pandemia de novo. Então o plano sem plano é passar Reveillon em casa, olhando os fogos. Ops. Pandemia? Não, Canadá mesmo. Nada de fogos no Reveillon. Nenhum. Nenhumzinho. Com ou sem pandemia, Reveillon é o feriado mais chato dos quase inexistentes feriados canadenses. 

Então é isso. Eu tinha comprado um peito de pato, num ímpeto de consumismo gastronômico, e acho que, depois do texto do pato do ártico, parece de uma cafonice poética comer pato do último dia de 2020. O plano sem plano é comer o pato. E uma panna cotta em que eu inventei de colocar a quantidade errada de gelatina, e que ficou tão borrachuda que dá pra apagar meus desenhos com ela. Não dá pra acertar tudo. Mas, como diz Allex, se for doce, ele come. 

O plano sem plano é tirar da parede de bruxa o envelope que eu grudei ali no dia 31 de dezembro de 2019. Lembra 2019? Saudades, né? Ler aquela carta que escrevi para mim mesma, agradecendo por tudo o que aconteceu em 2020, tentando prever os melhores momentos do ano e dar a dica para o Universo. Eu me lembro de quando escrevi aquela carta, e de quase tudo o que coloquei nela. Teve muita coisa que aconteceu, e outras que teriam acontecido não tivesse sido... a Pandemia. Pois é, pela Pandemia eu não agradeci na carta, porque eu acho que nem a Mãe Diná previu essa joça. 


Pensar naquela carta, dobrada dentro de um envelope de envio aéreo da Canada Post, de certa forma me acalma. Acalma como acalma raiva de bicho ou birra de criança. Tenho menos raiva de 2020. Foi um ano difícil. Difícil. Vou deixar assim, resumido numa palavra simples mas também razoavelmente leve, porque cansei de carregar comigo o peso desse ano. Foi um ano difícil como uma Maratona. Cansativo, doloroso, longo; tão longo, que parece que nunca vai acabar. Mas quando acaba, quando você acha que nunca mas vai andar na vida, percebe que as pernas continuam funcionando, e que, ainda que seu corpo tenha gasto toda a energia que tinha para percorrer aquele trajeto, você ainda consegue ir em frente. Passou. Acabou a maratona. E paradoxalmente, ainda que enfraquecido pelo esforço, você se sente forte com um deus antigo. Você correu uma maratona. O que mais você consegue fazer?

Você passou por 2020. Parabéns. Assim como numa maratona, todo mundo que saiu de 2019 e chegou a 2021 inteiro, merecia uma medalha de participação. 

Olho pra 2020 com alguma gentileza, como se fosse um espelho. 2020 tornou evidente todas as rugas e cicatrizes, todas as rusgas e falhas, antes encobertas por roupas bonitas de um sistema de mentirinha. Se 2020 fosse um conto infantil, seria a Roupa Nova do Imperador. De repente, isolados e forçados à introspecção, a maioria de nós se viu nu em nossos relacionamentos. Quem soube olhar com coragem no espelho saiu mais forte.

Acordei, na madrugada do Natal, com o som seco e agudo de vidro trincando. Sentada, no escuro, olhando a porta aberta do quarto, como quem espera uma aparição, demorei um tempo para me dar conta de que o barulho não viera do armário de copos ou do vizinho, mas de dentro de mim. Era claro agora, para mim, aquele efeito tão inesperado, pois quando eu fechava os olhos, enxergava no meu peito aquela redoma de vidro, trincada e aberta, libertando prisioneiros inefáveis, mas pesados, que eu não queria mais carregar no peito.

Esse ano que acaba se quebra em cacos no chão, cada pedaço refletindo uma parte nossa deixada para trás, uma perda, uma saudade, uma frustração,uma expectativa, um relacionamento, um castelo nas nuvens, que há muito precisava ser desfeito. Remonto os cacos numa forma nova, e aponto para a luz, na esperança de fazer arco-íris. Parece que esse ano veio para nos fazer ver melhor. 

Dá licença, que eu vou lá fazer meu pato, abrir um espumante, e brindar a esse ano estranho que trouxe tantas tristezas, mas também verdades e transformações. Eu agradeço sempre a tudo o que me faz mais forte. E 2020 não é exceção. 

Feliz ano novo, e que 2021 seja um ano gentil. 

Agora deixa eu ir lá fazer meu pato e arrumar alguma coisa pras crianças fazerem, porque eles inventaram que querem ficar acordados até meia noite e eu estou tentando explicar que Reveillon em Toronto tem cara de quinta-feira.

Cozinhe isso também!

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