quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Como acalmar fantasmas com um prato de gnocchi

"E o que vai ter de jantar?, perguntou Thomas.

"Gnocchi", respondi, ao que Laura torceu o nariz. "O que foi, criança?"

"Não gosto de gnocchi. A textura, sei lá, eu não gosto."

"Faz um esforço, então, amor? Porque não vai ter outra coisa. O jantar é só gnocchi."

"Eu vou experimentar. Mas eu não sei se vou comer."

"É gnocchi com o quê?", Thomas perguntou.

"O que o quê? Você quer dizer o molho? Gorgonzola."

"GORGONZOLA!!!", os dois exclamaram, animados, em uníssono.

"E pedacinhos de bacon."

"BAAAACOOOOON!!!", de novo.

"Tá vendo? Vocês vão gostar. Era para ser Pancetta no lugar do bacon, mas vai bacon mesmo, que eu não achei pancetta. Só preciso ver se vai dar certo. Faz tempo que a mamãe não faz gnocchi, e existe sempre a possibilidade de zoar tudo. Aí nesse caso a gente inventa outra coisa."

"Ah não", disse Thomas. "VAI DAR CERTO! Eu quero MUITO comer gnocchi com gorgonzola e bacon!"

"Eu também", afirmou Laura. 

Nada melhor que pressão extra na cozinha.

"Tá bom, tá bom.Vão brincar." 

Enquanto eles corriam ao quarto para prosseguir com seus impulsos infantis, apanhei as batatas firmes, pesadas, ásperas, de um cor-de-rosa de telhas empoeiradas de chalés franceses, e comecei a colocá-las na panela de inox repleta de água fria. Gosto de mergulhar os dedos no sal granuloso para lhe roubar um punhado gordo, quando preciso de água do mar envolvendo minha comida. A brincadeira das crianças desapareceu no silêncio daquela tarde cinza, e o toque da panela pesada sobre o vidro do fogão ecoou como numa casa antiga, sozinha na floresta. Minha respiração era o vento soprando nas folhas lá fora, e as interações modernas com embalagens plásticas e geladeira eram todos movimentos invisíveis e automáticos de quem se deixa transportar ao passado, sem nunca sair do lugar.

Vejo minhas batatas cozinhando numa cozinha comprida, de janelas grandes, que deixam entrar a luz clara do céu encoberto de branco, que às vezes incomoda meus olhos infantis. Minhas mãos pequenas estão sobre a mesinha de fórmica, desenhando com as pontas dos dedos na farinha que se derrama do saco. A beirada da cadeira de madeira corta a circulação de minhas pernas, que balançam em direção ao chão. Gosto daquele chão. Ele me provoca uma agradável confusão sensorial. Gosto dos azulejos azul-cobalto, na forma de barras de ouro, do tamanho de barras de chocolate, imaculadamente limpos, foscos, que sempre me parecem feitos de veludo quente. Eles são gelados, duros e lisos, quando estico uma das pernas para acariciá-los com as pontas dos dedos do pé. Eu sempre sei que serei enganada. Mas gosto de acreditar que serão de veludo. Gosto da alegria do microssegundo entre a fantasia e a realidade que precede o choque.

Pisco uma, duas vezes.

Vejo minha avó sentada à minha frente. Ela parece mais frágil e doce do que a mulher dura e ríspida que conheci na infância. Suas roupas antigas, que antes cobriram um corpo roliço e orgulhoso, agora pendem como num cabide do armário de alguém que se foi. Abro meu caderno de receitas naquela mesa de fórmica e presto atenção à sua voz trêmula e arranhada. Seus olhos são redondos e brilhantes como os meus. Três batatas grandes.Um ovo. Farinha quanto baste, eu rabisco no meu caderno. A imprecisão de quem cozinha com as mãos. Beijo as rugas de seu rosto gelado quando me levanto para ir embora. Meus pés adultos firmes no chão de veludo. Há uma poeira fina sobre os azulejos azuis que nunca mais vou ver.

"Mamãe! Como está indo o jantar?"

Desperto. Thomas está ao meu lado, observando enquanto meço a farinha.

"Oi, amor. Está indo bem!"

"Ótimo! Porque você sabe que eu gosto da minha comida bem feita!", ele explica, dedo em riste, olhos fechados, como quem faz um discurso. Rio alto. Imagino aquela cena em forma de cartum. 

"Podexá, Thomas, vai ficar uma delícia!"

Um sorriso macio persevera em minha boca enquanto sigo seus passos até a estante de livros. Ele escolhe um volume do Asterix que acredita ter lido menos vezes que todos os outros, e se abandona no sofá, escondendo o rosto atrás do livro.

Apanho a panela pelas duas alças laterais. Há um estranho conforto em segurar uma panela pesada com as duas mãos. Algo de preparar comida que alimenta para pessoas com apetite. As batatas, já escorridas, deixam escapar um vapor espesso que queima minhas narinas quando me aproximo para sentir seu aroma. Uso as pontas dos dedos para movê-las da panela quente para o passa-verdura. A pele de minhas mãos já não sente a temperatura como antes. Ela é resistente, mas fina como papel, como a de minha avó. Não me lembro de minha avó materna preparando gnocchi. Só os adultos podiam entrar na cozinha. Mas lembro do pratinho fundo de plástico cor de laranja dos anos 70, fumegando aquele mesmo vapor intenso, enquanto era carregado pela mão de minha mãe até a mesa das crianças. Lembro do molho de tomate grosso sobre as bolotinhas brancas. Lembro do cheiro. Houve o dia em que preparei favas brancas no forno com molho de tomate, e o perfume daquele molho,aquele molho aquecido no forno, tinha exatamente o cheiro do gnocchi no pratinho de plástico, e eu chorava sozinha na cozinha sem saber por quê.

Retirar o passa-verdura de cima da tigela é como abrir a tampa de um minhocário, revelando as minhocas de batata amontoadas, entrelaçadas, ainda despencando uma sobre a outra devagar, num movimento lento mas repentino. Minhas avós usavam ovos no gnocchi. Talvez porque não tivessem acesso à batatas secas de que precisavam, talvez porque a farinha não fosse de boa qualidade, talvez porque tenham aprendido assim, e aquelas do passado raramente questionavam. Num ímpeto de rebeldia que posso ter, e consciente da aridez do ar do outono canadense, decido não usar nenhum, correndo o risco de minha ousadia ser punida pelos fantasmas que me cercam.

A alegria infantil de jogar comida da tigela sobre uma bancada. De espalhar farinha como areia na praia. De mexer em batatas como se fosse massinha. Cozinha italiana traz felicidade porque o cozinheiro brinca com a comida. 

"A gente vai comer gnocchi", eu costumava dizer às crianças quando eles eram pequenos, na expectativa de que eles achassem que eu falava do cachorro. Mas eles sempre foram mais espertos que minha brincadeira sem graça. Dou-me conta de que a brincadeira não faz mais sentido.

Chacoalho a cabeça com força, tentando apagar aquele pensamento como quem deleta um desenho de um Traço Mágico. 

"Posso fazer também, mamãe?", Laura pergunta, ao me ver rolando a última parte de massa sob as palmas. Eu não me dera conta de sua aproximação, e me atrapalho para responder, como se convidada de repente a um compromisso que não quero ir. Meu primeiro impulso é dizer não. Não pode. Quero terminar isso logo.Quero que saia perfeito. Então respiro. "Então, posso? Por favor!", ela repete, num sorriso largo de dentes de leite que faltam e permanentes surgindo, olhos brilhantes por trás das lentes dos óculos. 

"Você quer aprender a rolar os gnocchi no garfo?", pergunto. 

"Como assim?"

"Eu te mostro. Vamos só testar o gnocchi para ver se ele está bom, antes de cortar tudo."

Corto a ponta de uma das serpentes de batata e a solto na água que borbulha gorda e lenta feito lava num vulcão, com um sonoro e gratificante PLOC!. Um sacrifício aos antepassados. A certeza de que não serei punida por ter deixado os ovos de fora. O gnocco solitário descansa no fundo do vulcão. Quando desiste de lutar batalhas terrenas, sua alma leve sobe à superfície e é resgatado por minha paciente escumadeira. Corto o gnocco ao meio. Ele resiste por um microssegundo à faca, como um marshmallow. Experimento. Perfeito.

"Por que você fez isso, mamãe?"

'Porque se esse pedacinho não ficasse bom, ainda dava tempo de juntar tudo aquilo de novo e corrigir a textura. Botar mais farinha, ou ovo. Mas se você cozinhar tudo de uma vez sem testar, e estiver ruim, você vai ter um enorme prato de gnocchi ruim de jantar."

"Ah tá."

Pensei na minha travessa de cerâmica francesa, branca, na minha cozinhazinha, minha "cucinetta", repleta de gnocchi desmilinguidos,desmanchando dentro de um molho ralo, como quando o purê de batatas aguado da cantina escolar da minha infância se misturava ao molho de tomate ácido que escorria da carne moída em meu prato.

Laura adora o movimento rápido e ritmado do cortador de massa contra a bancada. Plac, plac, plac. E os travesseirinhos de massa saltam para o lado. "Agora você faz assim", explico, apanhando a parte de trás do garfo e pressionando o travesseiro com o dedão contra os dentes. "Agora você rola assim, rápido e apertando só o suficiente para ele ficar marcado."

"Pra ficar mais bonito?"

"Também. Mas é para o molho grudar melhor. Minha avó, a mãe do vovô, tinha um ralador de queijo que era aberto, não era que nem o nosso, e ela usava a parte detrás do ralador ao invés do garfo. Aí os gnocchi ficavam cheios de bolinhas."

"É assim?", ela repete o movimento. 

"Perfeito. Thomas! Quer fazer também?"

Ele pula do sofá e vem ajudar. Corto o restante da massa enquanto eles passam os pedacinhos nos garfos, às vezes perfeitamente, outras nem tanto, muitas vezes transformando os gnocchi em formas compridas que os faz parecer parafusos. Talvez um dia eles lembrem de como a farinha branca na bancada de pedra cinza parece neve polvilhada sobre um lago congelado.

As crianças vão para o banho enquanto arrumo tudo, recolhendo a neve do lago, enquanto os gnocchi descansam um pouco numa assadeira grande, secando. Douro pedaços de bacon na panela vermelha. Eles não fazem parte da receita do molho, mas fazem parte da memória. Do prato de gnocchi al gorgonzola que comi em minha primeira noite em Florença. O prato que me trouxe conforto depois de um dia de intempéries e impropérios. 

Retiro o bacon para um pratinho e preparo o molho de gorgonzola como de costume, na mesma panela, não sem antes recolher o excesso de gordura do bacon para uma tigelinha, a ser usada para saltear legumes depois. Aprendi a gostar de gorgonzola com uma amiga que tive na infância, que também me mostrou discos de corais búlgaros e as histórias da Vertigo. Mas foi na Itália que provei o queijo em forma de molho. O perfume pungente do queijo aquecido, esmagado pela colher de pau, leva-me àquela noite em Florença, o último dia dos meus vinte e quatro anos, e há uma alegria quente em meu peito quando começo a finalizar o prato. Quando os gnocchi sobem à superfície da água quente e eu os transporto carinhosamente ao molho. 

"Tá vendo, Laura? Quando o gnocchi sobe assim, é porque está pronto. Que nem Spätzle."

"Eu também não gosto de Spätzle, mamãe."

"Eu sei Laura, você faz os dois lados da família rolarem no túmulo: o alemão e o italiano. A parte boa é que todo mundo fica ofendido igual."

Mas a alegria é momentaneamente interrompida quando me dou conta de que a porção de gnocchi não é tão farta quanto eu esperava. Há algo de errado na receita. Era para ter gnocchi para seis pessoas, e essa panela alimenta apenas quatro, male male

Preparo uma salada rápida de rúcula e tomates. Pronto. Problema solucionado. Alegria de volta.

Não tenho tempo de fotografar a panela na mesa antes que as crianças comecem a se servir. 

"O jantar saiu direitinho, Thomas?", brinco, enquanto faço a foto às pressas do meu prato sob a luz do abajur.

"É o melhor gnocchi da minha vida!", ele diz. Tudo para Thomas é sempre o melhor ou o pior da vida dele.

"Gostou, Laura?"

"Eu adorei! Esse gnocchi tá muito bom! Esse você pode fazer. Mas só esse. Os outros não."

"Só tem um defeito", Allex diz. 

"Tem pouco, né?", admito.

"Exatamente."

Jantamos enquanto lhes conto sobre a noite em que comi aquele prato, sozinha, do outro lado do mundo. Imagino nós quatro andando pelas ruas de Florença, à noite, num futuro qualquer. Imagino Thomas pedindo gnocchi al gorgonzola numa osteria escolhida ao acaso. Pergunto-me se ele vai fechar os olhos e, perdido no perfume do queijo fumegante do prato que o garçom lhe coloca à frente, vai lembrar de seus dedos finos rolando a massa de batatas sobre o garfo na cozinha de sua infância em Toronto. 

...

GNOCCHI AL GORGONZOLA (com ou sem bacon)

(do livro Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, de Marcella Hazan)

Rendimento: a receita original diz 6 porçôes, mas são 4, se você tiver um acompanhamento, ou 3 como principal).

Ingredientes:

  • 675g batatas, de preferência as de casca cor-de-rosa, que têm menos umidade
  • 1 1/2 xic. farinha de trigo

 (molho)

  • 115g queijo gorngonzola, em temperatura ambiente
  • 1/3 xic. leite
  • 3 colh. (sopa) manteiga
  • 1/2 xic. creme de leite fresco
  • 1/3 xic. parmesão ralado na hora e mais para ser levado à mesa
  • 3 fatias de bacon, cortado em tirinhas no sentido da largura (opcional)

NOTA: o molho é bastante para seis porções de gnocchi (ou de macarrão, 100g de massa crua por pessoa). Caso queira aumentar a receita, use 1/2 xic. de farinha para cada 225g de batata. Para quatro porções fartas eu pretendo aumentar para 800g de batata e 2xic. de farinha da próxima vez.

 

Preparo:

  1. Coloque as batatas inteiras na panela (procure usar batatas que sejam mais ou menos do mesmo tamanho, para que fiquem prontas ao mesmo tempo). Cubra de água fria com sal e leve à fervura. Cozinhe até que um garfo entre facilmente nas batatas, mas sem que se desmanchem. 
  2. Escorra bem as batatas e volte-as à panela quente, com o fogo desligado, para que o restane de umidade evapore completamente. 
  3. Passe as batatas num passa-verdura com os discos menores, ou num amassador de batatas. Não se incomode em descascar. A maior parte das cascas vai ser separada pelo próprio aparelho, ou dará sabor ao gnocchi. As cascas que forem moídas junto das batatas não ficam visíveis.
  4. Misture metade da farinha ao purê de batatas quente com uma colher. Despeje na bancada a mistura e comece a acrescentar o restante da farinha aos poucos. Aí é que entra a mnha avó e o "farinha quanto baste". O ar com 30% de umidade de Toronto no Outono, mais as batatas bem secas, fez com que bastasse 1 xic. de farinha para o gnocchi pegar ponto. No verão úmido talvez precisasse de mais. Dependendo das suas batatas e do quanto elas cozinharam, isso também pode mudar. Acrescente farinha sempre aos poucos, e vá sovando. Você quer uma massa que sove facilmente, mas que ainda grude ligeiramente nos seus dedos se você afundá-los na massa com vontade. Minha massa estava naquela linha tênue de ainda estar úmida mas começar a desgrudar sozinha da bancada. Você pode acabar usando menos farinha do que o necessário, ou um pouco mais. O importante é o ponto. Só cuidado, pois excesso de farinha torna os gnocchi pesados.
  5. Divida a massa em três ou quatro partes e role sob as palmas das mãos, como quem faz cobrinhas de massinha, polvilhando farinha na bancada se necessário. (Caso a sua massa já não esteja grudando muito, não polvilhe farinha, ou a massa vai escorregar ao invés de rolar, e você vai ter mais trabalho pra formar as cobrinhas). Os cilindros de massa devem ter mais ou menos 2,5cm de largura. Com uma faca ou raspador de massa, corte um pedaço de mais ou menos 2cm. Cozinhe-o em água fervente com sal até que ele suba à superfície. O gnocco deve ser retirado imediatamente. Experimente. Ele deve resistir à mordida apenas o suficiente para então se desmanchar enquanto você mastiga. Deve ser leve e macio. Se o gnocco estiver se desmanchando na água ou se desmilinguir na escumadeira, pare tudo, junte a massa toda de novo e acrescente um ovo à massa e um pouquinho de farinha se necessário. Sove novamente, divida e role as cobrinhas de novo.
  6. Corte todos os gnocchi com 1,8-2cm de tamanho. Um por um, role-os nas costas de um garfo, pressionando a massa com o dedo, rolando-o para fora do garfo, como quem tenta separar duas folhas de papel esfregando uma na outra. O gnocco deve ter uma cavidade de um lado e as marcas do dente do outro. Alguns vão ficar lindos e outros uma droga,mas todos vão ficar gostosos. ;) Polvilhe os gnocchi com farinha para que não grudem e deixe que descansem e sequem enquanto você deixa o molho pronto.
  7. Quando o molho estiver pronto, leve uma panela funda e larga com abudante água salgada à fervura e separe uma travessa aquecida que comporte todos os gnocchi. Quanto mais larga a panela melhor, pois você pode cozinhar mais gnocchi de uma vez. Quando a água ferver, coloque nela uma parte dos gnocchi. Imediatamente após subirem, retire-os com uma escumadeira. (Vá testando: se tiverem gosto de farinha, precisam ficar mais alguns segundos, se estiverem desmanchando, retire-os um pouco antes.) Vá colocando os gnocchi cozidos na travessa, cobrindo com uma parte do molho e polvilhando parmesão. Prossiga até que todos os gnocchi estejam cozidos e recobertos de molho. 
  8. Polvilhe com o bacon dourado, se estiver usando e sirva. Como é um prato pesado, uma salada de folhas amargas para acompanhar é mais do que benvinda.

(molho)

  1. Caso esteja usando o bacon, coloque as tirinhas numa frigideira fria e ligue o fogo médio-forte, sem nenhuma gordura extra. Mexa às vezes para que dourem por igual. Retire com uma escumadeira para um pratinho, quando estiverem dourados e crocantes. Escorra a gordura num potinho e leve à geladeira para usar em outro preparo no lugar da manteiga ou azeite.
  2. Para o molho, coloque o queijo esmigalhado, o leite e a manteiga  em uma frigideira. A minha é grande o bastante para comportar os gnocchi. Caso não seja o seu caso, na hora de preparar os gnocchi, tenha à mão uma travessa aquecida grande o bastante para os gnocchi e o molho que você retirar da frigideira. Leve ao fogo baixo. Misture e amasse o o queijo até que se dissolva completamente. Cozinhe por um minuto ou dois até que fique denso e cremoso. Junte o creme de leite e cozinhe, em fogo baixo, até que o creme reduza um pouco. Desligue o fogo e experimente. Acerte o sal, se necessário.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Soufflé de terça-feira

Faltava me deixar ir. Faltava soltar das beiradas, para aprender a nadar. Antes de nadar, às braçadas, com intenção, é preciso aprender a boiar.A flutuar por cima da água, à deriva. É preciso aprender a soltar bolhinhas embaixo d'água, saber relaxar quando submersa, saber como manter os pulmões plenos de calma antes do momento de vir à tona.Você pode atravessar toda uma piscina se agarrando firme à boias coloridas que separam as raias. Mas não está nadando. 

Tenho me deixado boiar. Solto as beiradas, relaxo, fecho os olhos, sinto a água passar por mim. A água da chuva fina que pinga das beiradas do capuz, pingando na ponta do meu nariz, enquanto caminho sem pressa por uma trilha do parque escolhida ao acaso. 

É segunda-feira. As crianças foram entregues à escola, e, nos segundos que meus passos levam para me afastar do movimento de pais e filhos, escolho um caminho para me levar à biblioteca, onde pretendo apanhar o livro que encomendei, e devolver uns outros já lidos. O céu encoberto pesa sobre a cidade, mantendo por sobre todos os sujeitos e objetos um predicado melancólico. Ninguém que não precise está do lado de fora. Quando meus pés me levam a uma das entradas do parque, dou-me conta de que sou a única ali que não tem um cão para passear.

Eu me passeio. Passeio lobos e coiotes dentro de mim. Passeio Cérbero e rio de suas três cabeças farejando esquilos. Passeio o espírito amoroso de Gnocchi.


Flutuo na floresta. Deixo ela passar por mim. Os sentidos transbordam, e minha mente começa a buscar palavras para organizá-los. Paro sob um galho grosso de carvalho, de folhas da cor de um vinho antigo, e, protegida das gotas mais gordas da chuva intermitente, escrevo aquelas impressões num aplicativo de notas do celular. 

A sensação de criar é de alívio impaciente, como o prazer paradoxal de se enfim arrancar uma farpa do dedo. Alívio de ter arrancado aquilo de dentro de mim. 

Demoro uma hora para chegar à biblioteca. Sei disso, porque a agitação da rua obriga uma parte minha a afastar a manga do casaco e olhar o relógio, num movimento automático e sem intenção. Pavlov na vida civilizada. 

Máscara, hand-sanitizer, good morning, cheiro de livros, o apito agudo de um código de barras escaneado, hand-satinizer, have a good day, vento gelado, chuva no rosto, alívio de estar sem mordaça.

Olho em volta. Procuro um café, mas estão todos fechados nesta manhã de segunda-feira de chuva. Suspiro. Começo a voltar para casa, devagar. Vou preparar mais um cappuccino quando chegar em casa. E uma torrada com manteiga. A caminhada me abriu o apetite outra vez. Minha boca enche de água antecipando o pão quente e o cheiro do café. Minha mente está confinada em suas paredes agora, e eu paro de olhar em volta. Penso num texto escrito para uma aula, em que descrevo a rotina de uma escritora ideal. Lembro dessa ideia absurda que eu tive um dia ter uma rotina tão fechada, tão rígida, tão controlada e inflexível, que viria a me tornar absolutamente miserável, estagnada e calcificada por dentro, aprisionando toda a minha criatividade em calabouços quase inalcançáveis. 

Flâneur. Descubro essa palavra e anoto num papel colado à parede. Gosto de como ela soa quando dita em voz alta, arrastando o r no final até que ele se dissolva, como os vapores de um chá. Soa como "planar". 


Eu fui especialista em planar um dia, atravessando as horas feito um fantasma habitando o sistema. Largara os empregos das nove às seis para ser dona de meu tempo. Trabalhava rápido. Criava meus prazos de forma que comportassem minha vida. Levava o laptop para o clube. Desenhava numa mesa de um café. Preparava meus almoços com calma, e tirava a tarde para longas caminhadas por outros bairros, durante as quais eu deixava a mente relaxar e buscar as soluções gráficas para os logotipos e embalagens que precisava entregar aos clientes. Preparava um bolo quando acabava a luz. Visitava o MASP numa terça à tarde. Desenhava gansos no Ibirapuera na quinta de manhã. Tirava uma tarde inteira para parar tudo e maratonar No Reservations, do Anthony Bourdain. 

Você não está trabalhando?, alguém me perguntava. Estou sempre trabalhando, eu respondia. Estou formando ideias. Quando sentar em frente à prancheta, vou precisar de só quinze minutos para colocá-las no papel. 

Papo de louco.

Trabalho era entregue. Contas, pagas. A vida era minha. Mas apenas minha. Planava solitária. Todos à minha volta trabalhavam dez horas por dia em escritórios de multinacionais ou doze horas por dia na criação de agências de publicidade. Eu dançava em descompasso com a música. A louca que valsa na pista cheia da balada eletrônica. Tenho memórias vívidas de quando assisti ao filme O Diabo Veste Prada. Aquela rotina insana de trabalho mentia um glamour aliciante. Acreditei que aquela era a vida dos meus amigos. 

A tragédia de ser jovem e não ter a firmeza de sua convicção. Boiar por muito tempo, e, ao levantar a cabeça da água, perceber que está sozinha na piscina. A balada acontece em terra firme. E na superfície, ela parece mais divertida. "Estou trabalhando tanto, que não tenho mais tempo para nada". As palavras deixam seus lábios antes que você perceba. A onda de aprovação que se segue te arrasta para o fundo. E você percebe que não sabe mais soltar bolhinhas embaixo d'água, quando começa a dizer por aí que anda muito "produtiva".

A mais fácil síndrome de Estocolmo da modernidade é aquela causada por nossa própria insegurança em seguir nosso caminho quando ele parece solitário. Como um passarinho que entra voluntariamente na gaiola porque tem medo da amplitude do céu. Um peixe que prefere o aquário lotado ao mar.

Ironia das ironias que as paredes do meu aquário tenham se rompido num ano de quarentena. Mas aceito de bom grado o complexo senso de humor do universo.

"Rotinas rígidas matam você por dentro", disse uma pessoa linda que fez meu mapa astral de presente, sem saber que o presente que ela me dava era o da validação de uma sensação que me queimava por dentro: as rotinas que eu me criara me traziam mais medo, mais insegurança, mais controle, e me mantinham afastada da minha natureza. Sentar em frente ao computador em horário comercial não me tornava mais produtiva, mas produzia mais medo da página em branco. Entregar um trabalho não era mais o sinal de que eu podia relaxar e ler um livro, mas era o estopim da angústia por não ter outro trabalho a entregar logo em seguida. 

"Flâneur", declamo, no meio da rua, para mim mesma, despertando de meu torpor autoanalítico, enquanto me aproximo da portaria do prédio. Máscara, elevador, chaves tilintando e estalando a fechadura. Aaaah, fora mordaça. Lavar as mãos. Muito bem. Largo meu novo livro sobre a mesa e abro o laptop. Corto o pão enquanto a máquina de café faz seus barulhos. Hmmmm... café. Meu computador pisca 10:15AM na tela, como se fosse uma informação relevante. 

Num movimento rápido e desajeitado, viro o corpo na água, e começo a nadar. Braçadas firmes, decididas. Aprecio a poesia da manteiga quente escorrendo pelos furinhos do pão em direção ao prato. Um gole farto de cappuccino. Lambo automaticamente a espuma que se prende aos lábios. E começo a escrever uma história que deveria ser a respeito de preparar um soufflé doce numa noite de terça. Que não parece ser, mas é. E eu sei que esse texto parece uma louca valsando numa pista de balada eletrônica. Mas soufflé de terça tem esse gosto. Soufflé de terça tem perfume de gente que caminha sem pressa pela rua agitada. Soufflé de terça é leve como uma nuvem, quando a gente pára no meio da floresta para olhar para cima. É doce como se permitir ser quem você é sem nunca mais pedir desculpas. 

...

Lembre-se: quem produz é fábrica. Eu sou um ser vivo. Ser e viver bastam para validar uma existência. 

SOUFFLÉ DE QUEIJO CREMOSO e calda de amoras

(Do livro Pure Dessert, de Alice Medrich)

 

Ingredientes:

  • 1 xic. de queijo Quark (queijo Quark tem gosto e textura de Labneh, aquele queijinho que a gente obtém quando deixa o iogurte sorando até ficar bem espesso. Acredito que o Quark possa ser substituído bem dessa forma)
  • 3 ovos grandes, separados
  • 3 colh.(sopa) farinha de trigo
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/8colh (chá) cremor tártaro (o cremor tártaro é um pó branco ácido, usado para estabilizar as claras. Pode ser susbtituído por uma colher (chá) suco de limão ou vinagre)
  • 1/4 (xic) + 1 colh. (sopa) açúcar, e mais para polvilhar

(Calda de amoras - opcional, prepare antes do soufflé)

  • 1 xic. amoras frescas ou congeladas (ou outra fruta vermelha de sua escolha)
  • 1 colh. (sopa) açúcar
  • 1 colh. (sopa) água
  • algumas gotas de suco de limão,ou a gosto

 

Preparo:

  1. Posicione a grade do forno no centro do forno e pré-aqueça o forno a 190oC. Unte deliberadamente com manteiga 6 ramequins com capacidade para 1xic. Polvilhe o interior deles com açúcar, girando-os, para que o açúcar recubra todo o fundo e paredes internas dos ramequins. Coloque os ramequins numa assadeira.
  2. Numa tigela média, misture bem o queijo, gemas, farinha, sal e baunilha, até que fique homogêneo.
  3. Numa tigela grande da batedeira, coloque as claras e o cremor tártaro (ou limão, ou vinagre) e comece a bater devagar até que forme picos macios e leves quando levantar os batedores. 
  4. Gradualmente acrescente o açúcar, batendo sempre, até que as claras fiquem com picos firmes mas ainda brilhantes. 
  5. Misture delicada mas rapidamente as claras batidas ao creme de queijo, usando uma espátula, com movimentos que puxem o fundo, raspando as paredes da tigela e "dobrando"a massa por cima de si mesma, preservando o ar das claras. Pare quando não houver mais sinais de clara na massa. 
  6. Divida a massa entre os ramequins igualmente. Polvilhe cada um deles com mais açúcar e leve ao forno por 15-18 minutos, até que tenham crescido e estejam dourados por cima. Sirva imediatamente com a calda de amoras. 
  7. Para a calda de amoras, basta colocar tudo numa panela e cozinhar até que as amoras soltem seus sucos e comecem a se desmanchar. O líquido precisa ter a consistência de um xarope ralo. A calda pode ser guardada em pote fechado na geladeira por alguns dias. Ela deve ser feita ANTES de se preparar o soufflé.

NOTA: Os sufflés podem ser preparados com antecedência. Não polvilhe com açúcar. Cubra a assadeira com papel alumínio, filme plástico ou o que tiver, para que não ressequem, e leve à geladeira. Eles podem ficar lá por 24h. Tire da geladeira durante o tempo que leva para pré-aquecer o forno, retire o papel de cima, polvilhe com açúcar e asse normalmente. Talvez demorem um minuto ou dois a mais para assar. Eles crescem pouca coisa menos se preparados com antecedência, mas continuam fofos, leves e deliciosos.

Cozinhe isso também!

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