terça-feira, 22 de setembro de 2020

A importância de ser visível

 Eu desmontei de repente. Assim, feito castelo de cartas. Num dia de chuva fina e intermitente, daqueles em que a cor das nuvens é a mesma dos seus pensamentos. Desmontada, o tamanho do desencaixe me surpreendeu. Sem esperar aquele desmoronamento, olhei os escombros como quem não entende.Sem entender, não pude me mexer. Olhei. Por muito tempo. Tentando ser.

A gente brinca sem brincar que mãe nunca tem férias. E que quando a família está de férias, trabalhamos mais. A família estava de férias. Férias em casa, de chuva e pandemia. Mas, de repente, tão de repente quanto aquele desmonte que viria a acontecer, eu não tinha trabalho nenhum.

O livro foi entregue à editora. Pronto, revisado, lindo.

A campanha digital da loja, para bancar a publicação do livro, foi encerrada.

Todas as ilustrações encomendadas estavam entregues.

As crianças finalmente tinham uma data FIXA para começarem as aulas, dali a alguns dias.

A chuva, o vento, o frio desconvidavam. Não havia parquinho que quisesse uma criança.

As crianças estavam entretidas com a presença do pai de férias. 

O pai, de férias, cuidou da rotina das crianças.

O marido, de férias, decidiu cozinhar todos os dias. 

O marido, de férias, fez lasanha, churrasco, arroz. 

A mulher não tinha trabalho a entregar. 

A mulher não tinha criança pra cuidar.

A mulher não tinha comida a preparar.

A mulher se viu, de repente, assim, de repente, sem nenhuma das obrigações a que se obrigara. 

A mulher se viu, realmente de repente, sem nenhuma das tarefas que ela tão habilmente usara como desculpas.

A mulher se viu, dolorosamente de repente, sem nenhuma das responsabilidades pelas quais se responsabilizara nos setes meses anteriores.

E, desta forma, de repente, a mulher se viu sem chão. A lista da afazeres que até então sustentava suas pernas desapareceu. Não havia mais nada que pudesse distrair a mulher do fato de que ela estava exausta. Nada mais exigia que ela se mantivesse em pé. Ninguém mais precisava que ela prosseguisse o movimento. 

E ela caiu.

Eu caí. 

Exausta. Exausta. Usei tanto essa palavra em minha vida, que no momento em que mais precisei dela, ela já não tinha mais significado. Esvaziada de significado. A palavra e a mulher. Significante e significado numa sincronia jamais vista. 

Como quando a família fica doente. A mãe cuida da febre do filho. Depois da dor da filha. Então leva um chá pro marido. Segue forte, cuidando. Dando. Doando. E quando enfim está tudo bem e todos sob sua guarda recuperam a saúde plena, quando ninguém mais pede o que ela já não tem para dar, ela cai. Doente. Exausta. Ela tem permissão de cair. Ela se dá permissão. E cai.

Caída fiquei. O choro vinha fácil, aos borbotões, convulsivo, a qualquer hora, por qualquer motivo. Choro pelo cão, choro pela quarentena, choro pela escola, choro pelos amigos, choro pela família, choro pelo trabalho, choro pelo mundo, choro pelo pantanal, choro pela politica, choro porque não há mais nada que quisesse fazer senão chorar e dormir. Choro feito um bebê cansado cuja a mãe manteve acordado além da hora de dormir. Passei da hora de dormir. Passei dos limites. O corpo já avisara há tantos meses desses limites ultrapassados. O pé inflamado já pedia havia muito tempo o descanso que eu não me permitia. 

Eu sou invisível. 

"Eu sou invisível", murmurava a mim mesma. 

Quando tento viver uma vida normal sem estar normal por dentro, o que me é importante se torna gradualmente transparente. Aos poucos, atravesso paredes. Minhas mãos não tocam coisa nenhuma. Preciso manter tangível a dor invisível. Dar nome às tristezas. Dizer a todos quando não estou bem. 

"Não estou bem", eu disse. 

Vê? 

Sou visível, tangível, tocável, sensível. Minha dor espalha e transforma o mundo à minha volta. Ela incomoda porque me incomoda. Eu incomodo. É importante incomodar. É importante ser visível. 

Eu sou visível. 

"Preciso colocar para fora e entender tudo isso que segurei por tanto tempo", expliquei. "Eu segurei tudo por muito tempo. Eu segurei todos por muito tempo." Expliquei e fui compreendida.E me deixaram chorar tudo o que eu tinha para chorar. E me deram tempo. Tempo. Tempo, maravilhoso tempo. Esse tempo que damos à revelia, que gastamos feito crédito no cartão, sem lembrar de guardar um pouco pra gente. 

Pela primeira vez, entendi que eu nadava numa caverna apertada. Que cada uma daquelas responsabilidades das quais me cobrava diariamente eram pedras no fundo das águas geladas, onde eu apoiava a ponta de um pé para poder manter o nariz fora d'água e respirar. Sem aquelas pedras, eu tentava nadar sozinha, mantendo o rosto na superfície, mas sempre batendo a cabeça no teto frio e duro da caverna, que me jogava para baixo outra vez.

Pela primeira vez, eu parei de nadar. Exausta do esforço contínuo, deixei-me afundar devagar. Ouvi o silêncio de meu corpo submerso. Dizem, no Yoga, que você pode chegar à luz por dois caminhos: subindo diretamente em direção a ela, ou descendo às profundezas até o limite, até dar a volta na roda, romper a escuridão e encontrar aquela mesma luz. Não havia porque nadar à superfície se eu não via nenhuma luz entrando na caverna. Deixei-me afundar. Deixei-me levar à escuridão. Às fontes de todo aquele choro, de toda aquela angústia. Deixei-me afundar consciente de que não ficaria ali para sempre. Apenas o bastante para que conseguisse abrir os olhos embaixo d'água. Apenas o bastante até que conseguisse enxergar nas águas turvas outros caminhos naquela caverna. Apenas o bastante até que pudesse nadar por um desses caminhos submersos. E vir à tona. E encontrar a luz. 


Há luz novamente. 

Consigo enxergar terreno sólido onde me apoiar e sair da água. 

Quase duas semanas depois do desmoronamento, consigo entender quais pedras são sólidas e quais rolam facilmente. Os escombros estão ali, visíveis, mas menos dolorosos. Um lembrete eterno das armadilhas que um dia criei para mim. O choro foi embora. Canto um pouco quando ouço música. 

As crianças estão na escola. E eu tenho me dado tempo. Tempo, que a gente dá de presente para os outros como se não valesse nada, como se não precisássemos tanto dele. 

Fui "me levar" para passear no parque. Essa atividade mundana. Um passeio no parque em plena terça-feira. Meu primeiro passeio sozinha pelos caminhos que eu percorria, todos os dias, com Gnocchi. Enfiei-me pelas trilhas mais fechadas. Andei sobre troncos caídos, de braços estendidos para me equilibrar. Atravessei córregos de lama pulando sobre pedras e galhos. Tentei atrair esquilos com bolotas de carvalho caídas no chão. Ouvi o grasnado alto e metálico dos Blue Jays. Fui procurar ali uma parte da minha vida que desmoronou com a morte do cão. Encontrei uma parte de mim que estava faltando. A parte mais importante.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Que venha o outono

 


Atrasaram o início das aulas em uma semana. Ainda bem que eu não estava aqui brincando de ter expectativas. Há uma parte do meu cérebro que não quer pensar nisso. A dez dias do início do ano escolar, eu estaria reorganizando as roupas de Outono das crianças, planejando cardápios de lanche e repensando minha agenda de trabalho.

É preciso sair e comprar máscaras. 

Suspiro e penso e respiro e não me mexo. 

A volta às aulas deveria marcar um fim e um começo. O fim do verão, dos dias longos, fim do descanso na grama sob o sol. Mas não foi un descanso, foi? Foram meses, tantos meses, de cansaço. De greves, de quarentenas, de mortes, de ferimentos, de estresse e exaustão. Foram meses de fazer força para manter tudo bem, para manter a cabeça funcionando e o coração leve. 

A volta às aulas não tem gosto de fim de descanso nem começo de um. Porque nada acabou, e não tenho em mim a certeza de que enviar as crianças à escola seja sinal de normalidade. Não acredito sequer que vá durar muito. Olho para o futuro com desconfiança e para o passado com a sensação de quem sonhou um sonho estranho.

Atenho-me a outros ciclos, então, que este calendário de horário comercial não anda fazendo sentido. Fecho minha campanha de vendas na loja com imensa felicidade. Com a meta financeira praticamente alcançada, sinto-me forte e feliz por ter tido meios de usar uma arte para pagar a outra. E nesta semana, assinei o contrato com uma editora. 

O sol foi embora de repente e fechou as cortinas antes de sair. A luz lá fora é prateada e difusa, mal atravessando as nuvens densas que tocam o chão em forma de névoa. A brisa é fria nas canelas ainda expostas, e os braços pedem o conforto de um moletom velho. 

Outono aqui sempre traz mudanças à base de muito vento. E a brisa vira vendaval. O livro que vai ser publicado, a escola que recomeça aos tropeços, o trabalho que ganha um novo fôlego, e o pé. O pé que começa a melhorar, enfim. 

Um massagem ayurvédica nas pernas que me arrancou tanto choro do peito que achei que nunca teria fim.Talvez o verão ainda tenha monções restantes. E então o pé doeu menos. E menos. O choro lavando embora aquelas inflamações. 


 

E num dia saio para andar no mato. E no dia seguinte de novo. Olho aquele mato que quer mudar de cor, o cheiro do inicio da destruição suspenso na umidade do ar, e vejo que é o tempo que está suspenso ali naquela névoa. Um respiro entre estações. A pausa que precede a mudança. Esses últimos dias de férias escolares que prometiam ser as últimas explosões energéticas do verão tornam-se passos lentos na lama e sons de água, chá quente e pés no sofá, pensamentos que não chegam à boca, enlaçados no som de suspiros como uma criança no cobertor.

Devagar.

É sabedoria antiga respeitar o ritmo das árvores? Então tudo bem. Fecho os olhos e ouço as folhas. Os pequenos Chipmunks começam a recolher folhas e castanhas para seus ninhos, preparando a toca para o longo sono do inverno. Esperto o bicho que não gasta energia à toa. 

"Não quero que vocês se deem bem o tempo todo", digo à crianças. "Isso é impossível e muito injusto de pedir a vocês. É lógico que vocês vão brigar. Conflitos existem o tempo todo e não é possível evitá-los o tempo todo. Quero que vocês resolvam a briga de uma forma melhor."

Parem de gastar energia à toa, digo a eles.

Sempre haverá um conflito. O futuro está cheio deles. Inevitáveis. Inexcrutáveis. Imprevisíveis. Gritar, bater, espernear, digo a eles, é gastar energia à toa. O Inverno está chegando, já dizia o seriado.

Preciso parar de gastar energia à toa. Ser mais esperta. Recolher minhas folhas e castanhas para a toca. Tocar a ponta da língua no céu da boca e manter meus pensamentos enlaçados no silêncio de quem observa. Ouvir a respiração no ritmo do vento e amar a pausa antes do novo ciclo. 

Que venha a escola, pelo tempo que durar. O novo criado a partir dos escombros da torre que cai. "Quando a torre cai, é o fim de uma vida organizada", dizia a carta do baralho de Tarot que carrego comigo desde os quinze anos. 

O pé doeu de tanto fincar no passado, sem querer andar para frente. Sem querer pisar na lama decadente do que se desfez, nas pedras e farelos daquilo que não podia mais ficar em pé. As palavras tentavam convencer o peito a não sentir, mas tudo o que doeu e não foi sentido virou pé quebrado, pé torcido, pé inflamado que me fez parar e olhar para a destruição. A vida é desorganizada e o conflito é inevitável. 

É poesia pensar que meu livro sai na Primavera. 

Vou passar meu Outono olhando a força destruidora da natureza, que faz cair folhas e as consome até o restar de sua estrutura rendada, e as desfaz até que não sejam sequer lembrança do que foram um dia. Até que sejam a terra fértil para o que ainda não sabemos que vai nascer. Vou confiar no Outono para que a Primavera venha. 


 

....

 Enquanto isso, minha cozinha segue cíclica. Todos os anos, as mesmas fases. O verão é simplicidade e leveza, e os primeiros ventos trazem não apenas as calças compridas, mas os preparos mais complexos. A vontade de barrigar o fogão retorna.  

Um Daal de lentilhas com berinjelas do Jamie Oliver. Uma salada quente de repolho, milho e bacon para acompanhar um peixe grelhado. Um arroz de forno com abobrinhas e tomates puxado da memória, acho que de um livro do Mark Bittman.

Mal esfriou e as crianças já pedem sopa.

Que venha o Outono.


SALADA QUENTE DE MILHO VERDE, REPOLHO E BACON

(do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)

Ingredientes:

  • 200g bacon fatiado, cortado em tirinhas finas
  • 2 colh. (sopa) manteiga sem sal
  • 1 xic. cebolinhas fatiadas bem fininho
  • 1 1/2 xic. milho verde, tirado da espiga
  • 2 colh.(chá) folhas de tomilho
  • 1/2 repolho pequeno, fatiado fininho
  • 2colh (sopa) salsinha picada
  • sal e pimenta do reino

 Preparo:

  1. Aqueça uma frigideira bem grande em fogo médio de acrescente o bacon, coznhando por cinco minutos, mexendo, até que doure e fique crocante. Transfira o bacon para um prato. 
  2. Junte à gordura do bacon na frigideira a manteiga, as cebolinhas, o tomilho, 1/2 colh.(chá) sal e uma pitada de pimenta. Refogue por uns três minutos.
  3. Junte o milho debulhado, mais uma pitada generosa de sal e pimenta e cozinhe por três minutos.
  4. Junte o repolho, e cozinhe,mexendo,até que o repolho murche um pouco. 
  5. JUnte o bacon, a salsinha,acerte o tempero e sirva como acompanhamento de um peixe, por exemplo. 

 

O Daal foi feito segundo a receita de Jamie Oliver, daqui: https://www.jamieoliver.com/recipes/vegetables-recipes/aubergine-daal/

 Mas ao invés de usar a pasta de curry pronta, fiz minha própria pasta, com meia colher de chá de cada um dos temperos: canela em pó, cominho em grão, coentro em grão,mostarda em grão, erva-doce em grão, cúrcuma em pó, gengibre em pó, 1/4 colh.(chá) cardamomo em pó, 2 cravos, 4 grãos de pimenta-do-reino, 4 folhas secas de curry, 1 pitada de pimenta calabresa e 1 pitada de sal. Moí tudo no pilão e misturei a duas colheres de óleo de coco. Você pode simplesmente usar sua mistura de curry em pó favorita também. Fica ótimo de qualquer forma. 

Dica: use metade da quantidade de lentilha e arroz pedida. 250g de lentilha para o Daal rendeu 2 refeições e meia para quatro bocas.Se usar o meio quilo que ele pede, vai ter Daal para um vilarejo indiano inteiro. o_O

Este arroz de forno foi muito simples. Foram duas xícaras de arroz branco que cozinhei. No panelão grande, refoguei duas abobrinhas fatiadas fino em azeite até amaciarem.Juntei meia cebola picada e um dente de alho  e um ramo de tomilho e continuei refogando em fogo médio até tudo estar dourado. Juntei o arroz cozido, dois ovos e um punhado de parmesão e espalhei na panela. Espalhei fatias de tomate por cima, temperei com sal, pimenta e azeite e polvilhei com um punhado de parmesão e levei ao forno médio (180oC) até os tomates murcharem e o queijo derreter.


Cozinhe isso também!

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