segunda-feira, 11 de maio de 2020

O universo é um mensageiro insistente


Em Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Hilke faz um elogio à melancolia. Há que se deixar mergulhar na melancolia para se colher frutos criativos. E imersa numa melancolia intermitente, sei que há nela, de fato, uma estranha busca por poesia, um olhar atento a qualquer coisa de mágico, uma ânsia natural por detalhes que elevem o espírito, que não existe em outro estado emocional. Como se o corpo inteiro soubesse que a pisque se equilibra num fio delicado, e os dedos buscassem nas flores e pássaros apoios para atravessarem o abismo em segurança e superarem o perigo.

Flores de primavera num dia cinzento. Chuva leve que faz a grama nova brilhar. O ninho de um cisne à beira do lago.

Detalhes que não teriam significado para alguém imerso num êxtase veranil. Para o melancólico, são a mão que resgata a concha delicada na areia do mar, filtrando a água e areia que escorre devagar por entre os dedos. 

Na melancolaia encontram-se as delicadezas da vida.

A melancolia recolheu-se de repente a seu canto e abriu espaço para a raiva. Uma raiva sem começo ou fim, sem direção, que apenas era e surgia e explodia assim que alguém a tocasse, como se por sob minha pele crua e permeável, se escondessem pequenas e letais minas terrestres.

Foram dias difíceis. As crianças vinham pedir mas eu não tinha nada que pudesse dar. Recolhi-me dentro de mim, das histórias dos filmes e dos livros, buscando compreender a nova história se escrevendo aos meus pés.

Nos meus pés ela se escreveu então, na forma de um pequeno acidente doméstico, um escorregão à toa saindo da cama, um pé apoiado às pressas que se torceu e provocou o tombo, o tombo do universo, desmoronamento de um mundo. Duas semanas depois da morte do cão, que removeu da minha rotina os principais pilares que sustentavam meu dia, um dedo do pé quebrado me tira o chão. E quando acordo, muito tarde, e olho essa estranha neve de primavera que cai lá fora no mesmo dia em que os parques são reabertos, pergunto-me se compreendi a mensagem do universo completamente desta vez ou se ele ainda pretende uma rasteira por trâs, um golpe na têmpora, um tiro de misericórdia.

Sem o cão para passear e sem poder correr, abro meus olhos ainda coberta de lençóis e observo o teto. Ouço, como se fosse em outra casa, os sons das crianças preparando o próprio café da manhã e trocando detalhes de seus planos infantis em um tom casual que me faz questionar quando é que minhas crianças se tornaram adultas. Tento imaginar motivos convincentes para sair da cama. Os relógios contam o tempo aos pulos com ponteiros que giram ao contrário em velocidades intermitentes. A perspectiva do novo dia parece envolto em névoa, difuso, desfocado, sem forma, sem contornos, como tinta em papel molhado.

Respiro fundo e espero a tinta secar. O tempo fixa as manchas e cria linhas delicadas às bordas das pinceladas. Quando me afasto dos borrões e observo à distância, uma imagem se configura.

No caderno, pinto as cores do dedo quebrado. Quem eu sou quando não sou alguém com um cão? Quem eu sou quando não sou alguém que corre?

Assisto a um filme sobre o delicado equilibrio de ecossistema, uma fazenda tradicional, em que cada novo elemento traz um novo problema, e cada resolução de problema traz um novo elemento. Observo no silêncio de minha taça de vinho, a movimentação antes previsível e agora errática dos elementos do meu ecossistema. Minha casa. Meu corpo. Na ausência de um elemento ou dois, como o sistema recupera o equilíbrio? Quão quieta preciso estar para conseguir enxergar à distância o momento em que os elementos se reorganizam?

Só posso ficar quieta. E olhar. Esperar que os elementos encontrem novos modos de interagir até encontrar um novo padrão. Esperar que a tinta pare de correr sobre bolhas d'água e escolha o seu lugar.

Fico quieta. Espero. Aceito.

A raiva se dissipa. A melancolia é uma visita acenando à distânia enquanto se afasta. Sorrio um sorriso que basta. O futuro é comichão de curiosidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Saudade é uma sala de porta aberta que venta pra fora




As cerejeiras floriram e o parque foi fechado dois dias depois de sua morte. A vida sem ele segue a passos mancos. Há buracos vazios por toda a casa.

Sua partida foi rápida, muito mais rápida do que jamais esperei. Mas toda morte acontece em um instante. Ele está ali. Ele não está.

Ele não está.

Meu corpo,acostumado à sua presença ao meu lado a todo momento, por toda minha vida adulta, se retorce ao buscar seu flanco sob minha palma, sofre um choque ao ser avisado de novo e de novo e de novo e de novo que ele não mais está, e dói. Apenas dói.

Dou-me conta do quanto meus dias foram criados em torno dele, de seus passeios, de suas carências. Ele estava para me fazer companhia na mesma intensa medida em que eu estava para fazer companhia a ele. Restam lacunas onde antes ficavam os pilares de minha rotina.

Já não me lembro mais o que é ser alguém que não o tem ao lado. Num momento em que faço esforços para reencontrar quem sou, esta passagem sente como a última fronteira.

Continuo sentada ao sofá esperando que ele suba desajeitada e pesadamente junto a mim, para que eu afague os pelos grossos de seu pescoço enquanto leio meu livro. O tecido áspero do sofá onde minha mão repousa agora abandonada me arranha por dentro. Falo sozinha. Sempre falei sozinha. E então olhava seus olhos redondos em mim e, na tentativa de parecer menos louca, arrematava aquele pensamento alto com um vocativo: né, Gnocchi?

Agora só uma louca que fala sozinha.

Ele era um espelho amoroso. Todo o meu afeto depositado nele reverberava de volta. Agora meu amor, sem objeto, vibra e se afasta, se esvai, dissolve no ar, eternamente sem retorno.

Ando pela casa sem saber o que fazer comigo mesma, perdida no meu dia sem relógios. Galinha sem cabeça.

Surpreendo-me procurando sua coleira de manhã, ao meio dia, no fim da tarde. Desligar a televisão e ir para cama, sem seu último passeio, é o golpe de misericórdia num dia alquebrado.

Treze anos.

Respira.

As palavras de minha amiga vibram dentro de mim: agradece.

E enquanto corro, e corro para gastar a angústia, para suar lágrimas que já me dóem a garganta, enquanto corro, agradeço. Se antes cada passo sobre a terra gelada de início de primavera me fazia refletir sobre a sorte que tenho, agora o som do peso de meus pés sobre o asfalto que cerca o parque fechado traz gratidões múltiplas, que, devagar, apaziguam o cérebro que ainda tenta negociar sua ausência em racionalizações impossíveis, e devagar abre espaço para uma doce saudade melancólica.

Obrigada pelos treze anos de amor doce e incondicional.
Obrigada pela companhia constante, por me seguir a todos os cômodos, cuidando de mim, cruzando seus olhos com os meus e vindo deitar aos meus pés. Minha humana está bem.
Obrigada por ter sido a desculpa que eu precisava para sair do confinamento da casa, tantos anos antes da possibilidade de uma quarentena, na quarentena que é a solidão do freelancer, do artista, do puerpério, da migração.
Obrigada por ter transformado um casal em uma família.
Obrigada por apoiar teu fuço rosa nos meus joelhos quando a tristeza transbordava e por ter lambido minhas lágrimas quando elas eram muitas.
Obrigada por me tornar responsável por você e assim me ensinar a ser adulta.
Obrigada por ter tornado mais leve meu recomeço, por ter me apresentado teus amigos no parque e os donos dos teus amigos, por ter criado uma rotina no caos da migração.
Obrigada por nos ter acompanhado em tantas aventuras.
Obrigada por ter me levado para passear pelos parques e por ter me levado para correr quando acreditei que nunca mais correria na vida.
Obrigada por ter sido feliz e amoroso até o teu último dia, por ter suportado com dignidade o que acontecia dentro de você e que você não deixou transparecer.
Obrigada por ter escolhido para ir embora esse momento em que não estou sozinha e que a dor de sua ausência pode ser amenizada com a presença dos teus outros humanos.
Obrigada por fechar esse teu ciclo no mesmo instante em que tantos outros se fecham, como se cosmicamente alinhado para que a transformação não seja apenas sua mas universal.
Obrigada por abrir caminho para o novo.
Obrigada pelo modo como tua partida nos trouxe imediata consciência do que precisa ser transformado.
Obrigada, muito obrigada, por aquele teu último sorriso amoroso, teus olhos brilhantes de confiança e doçura que eu vou carregar comigo para sempre.
Obrigada por ter sido o melhor ser vivo.
Obrigada por ter feito parte.
Por ter vindo.
Por ter sido meu e por permitir que eu fosse sua.

Meu cãozinho.

A vida segue estranha sem você, mas segue. Permeada do amor que você deixou. Os espaços vazios serão preenchidos de alegria.

Cozinhe isso também!

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