sábado, 2 de maio de 2020
Saudade é uma sala de porta aberta que venta pra fora
As cerejeiras floriram e o parque foi fechado dois dias depois de sua morte. A vida sem ele segue a passos mancos. Há buracos vazios por toda a casa.
Sua partida foi rápida, muito mais rápida do que jamais esperei. Mas toda morte acontece em um instante. Ele está ali. Ele não está.
Ele não está.
Meu corpo,acostumado à sua presença ao meu lado a todo momento, por toda minha vida adulta, se retorce ao buscar seu flanco sob minha palma, sofre um choque ao ser avisado de novo e de novo e de novo e de novo que ele não mais está, e dói. Apenas dói.
Dou-me conta do quanto meus dias foram criados em torno dele, de seus passeios, de suas carências. Ele estava para me fazer companhia na mesma intensa medida em que eu estava para fazer companhia a ele. Restam lacunas onde antes ficavam os pilares de minha rotina.
Já não me lembro mais o que é ser alguém que não o tem ao lado. Num momento em que faço esforços para reencontrar quem sou, esta passagem sente como a última fronteira.
Continuo sentada ao sofá esperando que ele suba desajeitada e pesadamente junto a mim, para que eu afague os pelos grossos de seu pescoço enquanto leio meu livro. O tecido áspero do sofá onde minha mão repousa agora abandonada me arranha por dentro. Falo sozinha. Sempre falei sozinha. E então olhava seus olhos redondos em mim e, na tentativa de parecer menos louca, arrematava aquele pensamento alto com um vocativo: né, Gnocchi?
Agora só uma louca que fala sozinha.
Ele era um espelho amoroso. Todo o meu afeto depositado nele reverberava de volta. Agora meu amor, sem objeto, vibra e se afasta, se esvai, dissolve no ar, eternamente sem retorno.
Ando pela casa sem saber o que fazer comigo mesma, perdida no meu dia sem relógios. Galinha sem cabeça.
Surpreendo-me procurando sua coleira de manhã, ao meio dia, no fim da tarde. Desligar a televisão e ir para cama, sem seu último passeio, é o golpe de misericórdia num dia alquebrado.
Treze anos.
Respira.
As palavras de minha amiga vibram dentro de mim: agradece.
E enquanto corro, e corro para gastar a angústia, para suar lágrimas que já me dóem a garganta, enquanto corro, agradeço. Se antes cada passo sobre a terra gelada de início de primavera me fazia refletir sobre a sorte que tenho, agora o som do peso de meus pés sobre o asfalto que cerca o parque fechado traz gratidões múltiplas, que, devagar, apaziguam o cérebro que ainda tenta negociar sua ausência em racionalizações impossíveis, e devagar abre espaço para uma doce saudade melancólica.
Obrigada pelos treze anos de amor doce e incondicional.
Obrigada pela companhia constante, por me seguir a todos os cômodos, cuidando de mim, cruzando seus olhos com os meus e vindo deitar aos meus pés. Minha humana está bem.
Obrigada por ter sido a desculpa que eu precisava para sair do confinamento da casa, tantos anos antes da possibilidade de uma quarentena, na quarentena que é a solidão do freelancer, do artista, do puerpério, da migração.
Obrigada por ter transformado um casal em uma família.
Obrigada por apoiar teu fuço rosa nos meus joelhos quando a tristeza transbordava e por ter lambido minhas lágrimas quando elas eram muitas.
Obrigada por me tornar responsável por você e assim me ensinar a ser adulta.
Obrigada por ter tornado mais leve meu recomeço, por ter me apresentado teus amigos no parque e os donos dos teus amigos, por ter criado uma rotina no caos da migração.
Obrigada por nos ter acompanhado em tantas aventuras.
Obrigada por ter me levado para passear pelos parques e por ter me levado para correr quando acreditei que nunca mais correria na vida.
Obrigada por ter sido feliz e amoroso até o teu último dia, por ter suportado com dignidade o que acontecia dentro de você e que você não deixou transparecer.
Obrigada por ter escolhido para ir embora esse momento em que não estou sozinha e que a dor de sua ausência pode ser amenizada com a presença dos teus outros humanos.
Obrigada por fechar esse teu ciclo no mesmo instante em que tantos outros se fecham, como se cosmicamente alinhado para que a transformação não seja apenas sua mas universal.
Obrigada por abrir caminho para o novo.
Obrigada pelo modo como tua partida nos trouxe imediata consciência do que precisa ser transformado.
Obrigada, muito obrigada, por aquele teu último sorriso amoroso, teus olhos brilhantes de confiança e doçura que eu vou carregar comigo para sempre.
Obrigada por ter sido o melhor ser vivo.
Obrigada por ter feito parte.
Por ter vindo.
Por ter sido meu e por permitir que eu fosse sua.
Meu cãozinho.
A vida segue estranha sem você, mas segue. Permeada do amor que você deixou. Os espaços vazios serão preenchidos de alegria.
sexta-feira, 24 de abril de 2020
Conversas de Páscoa
A Fada do Dente morreu esse ano. Ela já estava moribunda quando ocorreram uns lapsos da parte dos adultos, em que precisei explicar às crianças como a Fada é do sindicato e não trabalha de domingo, e que portanto só troca dente durante a semana. Ela morreu de morte matada no dia em que Thomas foi apanhar os fones de ouvido na gaveta do pai e achou os potinhos com os dentes que haviam sido magicamente trocados por moedas. Isso aconteceu enquanto eu não estava em casa, e como papai não é versado em realidade criativa como a mamãe, não soube dar uma explicação lá muito convincente de como é que os dentes levados pela Fada tinham ido parar na gaveta do papai. Thomas deixou o assunto quieto com incomodada desconfiança, mas Laura juntou lé com cré. Era ela quem vinha perguntar qual era o tamanho da Fada, já que ela passava a noite carregando dente e moeda por aí. E se ela era grande o bastante pra carregar muitas moedas de uma vez, como entrava em casa sem a gente ouvir. Ou como ela entrava em casa se a gente mora em apartamento e portas e janelas estão sempre trancadas. Ou o que diabos a Fada fazia com esse bando de dente de criança.
Fala a verdade, mamãe. É você que bota o dinheiro lá.
É, filha, sou eu.
Ela ficou contentíssima em ter descoberto. Dava pra ver a aura de orgulho por ter sido mais esperta que os adultos, por pegar a gente no pulo, descobrir a mentira, resolver o mistério. Thomas só apareceu pra perguntar se ele ainda ia ganhar dinheiro pelo dente que tinha caído. Claro, filho.
Aí veio a pergunta: Mas por que os pais mentem para os filhos? Porque inventam isso de Fada?
Porque tem criança que tem medo disso de perder dente, filha, e a história da Fada e a perspectiva de ganhar uma moeda pelo dente caído torna a experiência mais suave. Só por isso.
Mas mãe, eu nunca tive medo do meu dente cair. Por que você mentiu pra mim então?
Porque você era muito pequena, e não ia entender se eu te dissesse que Fada não existe mas todos os seus amiguinhos da escola acreditam que tem Fada sim. Imagina como seria? Você com certeza falaria com seus amigos, e estragaria a brincadeira das famílias das outras crianças. Então tive que meio que botar você nessa também. Entende?
Sim. Tá tudo bem.
Que bom.
Meses depois, ela concluía isso, que se a Fada é invenção, o Coelho também. Como você prova isso?, perguntei. Eu acho que você come a cenoura e o papai toma a cerveja, ela disse, e colocam as pistas e os ovos.
Temos nossa própria caça aos ovos aqui em casa, que começou quando imigramos, quando Thomas já começava a aprender a ler. É uma caça ao tesouro em que escondo pistas em forma de charadas dentro de ovos de plástico que eles têm que ir encontrando na ordem certa, um levando ao outro, começando pelo que deixo na porta do quarto deles para não ter erro, e o último levando ao local onde os chocolates foram escondidos. A cada ano as charadas ficam mais difíceis, e é minha parte favorita da Páscoa, criar as pistas.
A cerveja para o Coelho veio na verdade do Natal. Ainda no Brasil, influenciadas por toda a propaganda natalina norte-americana, as crianças acharam graça de deixar um prato de biscoitos e um copo de leite para o Papai-Noel, não esquecendo de uma cenoura para as pobres renas que fazem todo o trabalho pesado. Daí que um dia brinquei, tadinho do Papai Noel, trabalhando madrugada adentro nesse calorão do Verão brasileiro, e é recebido com um copo de leite em temperatura ambiente? Põ, deixa uma cerveja gelada pra ele, né?
As crianças acharam que aquilo que era pra ser piada fazia sim muito sentido e passaram a deixar uma cerveja para o Papai Noel. Os adultos que antes teriam de beber um copo de leite em temperatura ambiente não reclamaram de ter uma cerveja gelada para acomoanhar a cenoura crua e com casca.
Na Páscoa seguinte houve a discussão: Thomas queria deixar para o Coelho uma cenoura, e Laura insistia em deixar uma cerveja.
Mas é o Papai Noel quem toma cerveja!
Ué, o Coelho também pode querer uma!
É nada! Coelho é um bicho e bicho não toma cerveja!
Quando a coisa começou a esquentar, interferi: Gente, a gente tá falando de um coelho que bota ovo e sai distribuindo chocolate mundo afora durante a noite. Vamos combinar que ele pode beber Piña Colada que vai continuar não fazendo sentido igual, né?
E Thomas concordou em deixar a cerveja para o Coelho.
Daí que agora Thomas insistia que o Coelho tinha sim tomado a cerveja e mordido a cenoura. Afinal, a cenoura estava pela metade e havia várias marcas de roído na casca.
Laura insistia que não, que era tudo obra do Papai e da Mamãe.
Como você prova isso?, perguntei.
Hmmm... Ela pensou, segurando o queixo com os dedos e fazendo uma careta cartunesca.
Que EVIDÊNCIAS você tem?, repeti, me divertindo. Thomas diz que foi o Coelho que comeu a cenoura, porque a cenoura tem marcas e está pela metade. Como você prova o contrário?
Ela deu um pulo, e disse: Encontrando o resto da cenoura!
E com isso foi ao lixo da cozinha, onde, extasiada, encontrou as cascas da cenoura retiradas com o descascador de legumes para simular os dentinhos do coelho. A-HÁ!
Ah, não, Laura. Mas tá faltando metade da cenoura! Eu acho que foi o Coelho mesmo!, eu provoquei.
Não foi, mamãe! Foi você!
E eu ia ficar mastigando cenoura crua de madrugada só pra te enganar? Tenho mais o que fazer, né?
E ela correu desta vez à geladeira, procurando, procurando, abrindo a gaveta de legumes e retirando dela o saco de cenouras. Olhou, olhou, comparou, e retirou do saco uma ponta de cenoura que, demonstrou, encaixava-se perfeitamente à metade deixada no prato do Coelho.
A-HÁ! Te peguei, mamãe! Te peguei! Fala a a verdade! É você que compra o chocolate e faz tudo isso!
É, Laura, sou eu mesma.
EU SABIA!
Aquele orgulho de novo, aquela satisfação consigo mesma. Olho para Thomas e ele parece, novamente, desinteressado.
O que você acha disso, Thomas?
Ah, eu acho que tem Coelho sim.
Thomas... você vai continuar ganhando chocolate.
Ah, então não tem Coelho não.
Ri e seguimos com a vida. Passeio no parque antes do café, comilança de chocolate vendo desenho, ligar para os parentes. Enquanto as crianças brincavam, Allex preparou uma tradição de Páscoa da sua avó, que ele nunca fizera antes: Pumpernickel com ovos e maionese. Simples assim: fatias desse pão preto alemão denso e forte, fatias de ovos cozidos, uma colherzinha de maionese, salsinha picada para decorar. Como ele queria fazer esses acepipes alemães, resolvi que pela primeira vez na vida não faria um almoço de Páscoa. Não me apeteceu pensar em nada no meio daquela quarentena. Os canapés puxaram queijos e frios e pãozinho e guacamole e tortillas e uvas e tomatinhos e caipirinha. Uma Páscoa tranquila.

Durante o almoço que não era almoço, conversamos sobre a chegada da Primavera, sobre a simbologia do ovo e do coelho, sobre solstícios e equinócios, sobre a alegria de ter passado por mais um inverno. Conversas que eu tinha no Brasil com eles mas que só fizeram sentido aqui. Aqui eu não preciso explicar muita coisa. Eles experimentam e concluem sozinhos. A escola deles também fala dos ciclos da natureza e religiões são mencionadas a título de curiosidade e respeito com a variedade de credos no país.
Laura passa todo o almoço contente por ter me descoberto.
Sirvo a sobremesa, abro uma cerveja, troco a música que está tocando no aparelho de som. Eles pedem Frozen de novo. E Moana.
Quando levanto para me recolher ao quarto e ler um pouco, ouço uma discussão entre as crianças.
Mamãe! Mamãe!
Que é?
Mas se a Fada do Dente e o Coelho não existem... e o Papai Noel?
Putz, não sei, Laura. Qual é a sua teoria?
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