sexta-feira, 24 de abril de 2020

Conversas de Páscoa



Na manhã de Páscoa Laura me pediu para admitir que era eu quem comprava os chocolates. Um riso nervoso e um encolher de ombros depois, desconversei. Ela insistiu. Olhei para Thomas, sentado no sofá, lendo seu livro que chegara pelo correio dois dias antes. Parecia desinteressado na conversa.Olhei Laura de novo, seus olhos flamejantes de certeza. Perguntei-lhe o por que de achar isso. Porque se a Fada do Dente não existe, então o Coelho não existe também, ela disse, cruzando os braços.

A Fada do Dente morreu esse ano. Ela já estava moribunda quando ocorreram uns lapsos da parte dos adultos, em que precisei explicar às crianças como a Fada é do sindicato e não trabalha de domingo, e que portanto só troca dente durante a semana. Ela morreu de morte matada no dia em que Thomas foi apanhar os fones de ouvido na gaveta do pai e achou os potinhos com os dentes que haviam sido magicamente trocados por moedas. Isso aconteceu enquanto eu não estava em casa, e como papai não é versado em realidade criativa como a mamãe, não soube dar uma explicação lá muito convincente de como é que os dentes levados pela Fada tinham ido parar na gaveta do papai. Thomas deixou o assunto quieto com incomodada desconfiança, mas Laura juntou lé com cré. Era ela quem vinha perguntar qual era o tamanho da Fada, já que ela passava a noite carregando dente e moeda por aí. E se ela era grande o bastante pra carregar muitas moedas de uma vez, como entrava em casa sem a gente ouvir. Ou como ela entrava em casa se a gente mora em apartamento e portas e janelas estão sempre trancadas. Ou o que diabos a Fada fazia com esse bando de dente de criança.

Fala a verdade, mamãe. É você que bota o dinheiro lá.
É, filha, sou eu.

Ela ficou contentíssima em ter descoberto. Dava pra ver a aura de orgulho por ter sido mais esperta que os adultos, por pegar a gente no pulo, descobrir a mentira, resolver o mistério. Thomas só apareceu pra perguntar se ele ainda ia ganhar dinheiro pelo dente que tinha caído. Claro, filho.

Aí veio a pergunta: Mas por que os pais mentem para os filhos? Porque inventam isso de Fada?

Porque tem criança que tem medo disso de perder dente, filha, e a história da Fada e a perspectiva de ganhar uma moeda pelo dente caído torna a experiência mais suave. Só por isso.

Mas mãe, eu nunca tive medo do meu dente cair. Por que você mentiu pra mim então?

Porque você era muito pequena, e não ia entender se eu te dissesse que Fada não existe mas todos os seus amiguinhos da escola acreditam que tem Fada sim. Imagina como seria? Você com certeza falaria com seus amigos, e estragaria a brincadeira das famílias das outras crianças. Então tive que meio que botar você nessa também. Entende?

Sim. Tá tudo bem.

Que bom. 

Meses depois, ela concluía isso, que se a Fada é invenção, o Coelho também. Como você prova isso?, perguntei. Eu acho que você come a cenoura e o papai toma a cerveja, ela disse, e colocam as pistas e os ovos.

Temos nossa própria caça aos ovos aqui em casa, que começou quando imigramos, quando Thomas já começava a aprender a ler. É uma caça ao tesouro em que escondo pistas em forma de charadas dentro de ovos de plástico que eles têm que ir encontrando na ordem certa, um levando ao outro, começando pelo que deixo na porta do quarto deles para não ter erro, e o último levando ao local onde os chocolates foram escondidos. A cada ano as charadas ficam mais difíceis, e é minha parte favorita da Páscoa, criar as pistas.

A cerveja para o Coelho veio na verdade do Natal. Ainda no Brasil, influenciadas por toda a propaganda natalina norte-americana, as crianças acharam graça de deixar um prato de biscoitos e um copo de leite para o Papai-Noel, não esquecendo de uma cenoura para as pobres renas que fazem todo o trabalho pesado. Daí que um dia brinquei, tadinho do Papai Noel, trabalhando madrugada adentro nesse calorão do Verão brasileiro, e é recebido com um copo de leite em temperatura ambiente? Põ, deixa uma cerveja gelada pra ele, né?

As crianças acharam que aquilo que era pra ser piada fazia sim muito sentido e passaram a deixar uma cerveja para o Papai Noel. Os adultos que antes teriam de beber um copo de leite em temperatura ambiente não reclamaram de ter uma cerveja gelada para acomoanhar a cenoura crua e com casca.

Na Páscoa seguinte houve a discussão: Thomas queria deixar para o Coelho uma cenoura, e Laura insistia em deixar uma cerveja.

Mas é o Papai Noel quem toma cerveja!
Ué, o Coelho também pode querer uma!
É nada! Coelho é um bicho e bicho não toma cerveja!

Quando a coisa começou a esquentar, interferi: Gente, a gente tá falando de um coelho que bota ovo e sai distribuindo chocolate mundo afora durante a noite. Vamos combinar que ele pode beber Piña Colada que vai continuar não fazendo sentido igual, né?

E Thomas concordou em deixar a cerveja para o Coelho.

Daí que agora Thomas insistia que o Coelho tinha sim tomado a cerveja e mordido a cenoura. Afinal, a cenoura estava pela metade e havia várias marcas de roído na casca.
Laura insistia que não, que era tudo obra do Papai e da Mamãe.

Como você prova isso?, perguntei.

Hmmm... Ela pensou, segurando o queixo com os dedos e fazendo uma careta cartunesca.

Que EVIDÊNCIAS você tem?, repeti, me divertindo. Thomas diz que foi o Coelho que comeu a cenoura, porque a cenoura tem marcas e está pela metade. Como você prova o contrário?

Ela deu um pulo, e disse: Encontrando o resto da cenoura!

E com isso foi ao lixo da cozinha, onde, extasiada, encontrou as cascas da cenoura retiradas com o descascador de legumes para simular os dentinhos do coelho. A-HÁ!

Ah, não, Laura. Mas tá faltando metade da cenoura! Eu acho que foi o Coelho mesmo!, eu provoquei.

Não foi, mamãe! Foi você!

E eu ia ficar mastigando cenoura crua de madrugada só pra te enganar? Tenho mais o que fazer, né?

E ela correu desta vez à geladeira, procurando, procurando, abrindo a gaveta de legumes e retirando dela o saco de cenouras. Olhou, olhou, comparou, e retirou do saco uma ponta de cenoura que, demonstrou, encaixava-se perfeitamente à metade deixada no prato do Coelho.

A-HÁ! Te peguei, mamãe! Te peguei! Fala a a verdade! É você que compra o chocolate e faz tudo isso!

É, Laura, sou eu mesma.

EU SABIA!

Aquele orgulho de novo, aquela satisfação consigo mesma. Olho para Thomas e ele parece, novamente, desinteressado.

O que você acha disso, Thomas?

Ah, eu acho que tem Coelho sim.

Thomas... você vai continuar ganhando chocolate.

Ah, então não tem Coelho não.

Ri e seguimos com a vida. Passeio no parque antes do café, comilança de chocolate vendo desenho, ligar para os parentes. Enquanto as crianças brincavam, Allex preparou uma tradição de Páscoa da sua avó, que ele nunca fizera antes: Pumpernickel com ovos e maionese. Simples assim: fatias desse pão preto alemão denso e forte, fatias de ovos cozidos, uma colherzinha de maionese, salsinha picada para decorar. Como ele queria fazer esses acepipes alemães, resolvi que pela primeira vez na vida não faria um almoço de Páscoa. Não me apeteceu pensar em nada no meio daquela quarentena. Os canapés puxaram queijos e frios e pãozinho e guacamole e tortillas e uvas e tomatinhos e caipirinha. Uma Páscoa tranquila.



Durante o almoço que não era almoço, conversamos sobre a chegada da Primavera, sobre a simbologia do ovo e do coelho, sobre solstícios e equinócios, sobre a alegria de ter passado por mais um inverno. Conversas que eu tinha no Brasil com eles mas que só fizeram sentido aqui. Aqui eu não preciso explicar muita coisa. Eles experimentam e concluem sozinhos. A escola deles também fala dos ciclos da natureza e religiões são mencionadas a título de curiosidade e respeito com a variedade de credos no país.

Laura passa todo o almoço contente por ter me descoberto.

Sirvo a sobremesa, abro uma cerveja, troco a música que está tocando no aparelho de som. Eles pedem Frozen de novo. E Moana.

Quando levanto para me recolher ao quarto e ler um pouco, ouço uma discussão entre as crianças.

Mamãe! Mamãe!

Que é?

Mas se a Fada do Dente e o Coelho não existem... e o Papai Noel?

Putz, não sei, Laura. Qual é a sua teoria?

domingo, 12 de abril de 2020

Estranhezas e renascimentos



Vamos comigo pegar minhas cordas, disse Allex.

Ele comprara cordas de guitarra pela internet. Não na Amazon ou coisa assim, mas na mesma loja de rua em que adquirira seu amplificador uns meses antes. A mesma loja que agora mantém as portas fechadas, com grandes avisos na vitrine sobre Covid-19, sobre lavar mãos, sobre manter distância, sobre não entrar mais de três por vez e agora, sobre não poder deixar ninguém entrar. Um museu de todas as fases da pandemia. Loja que, como quase todo o pequeno comércio de Toronto, está fazendo o possível para sobreviver.

Depois de mandar o email para a loja com os dados do cartão, metemo-nos no carro e fomos em direção ao centro até a tal loja. Fazia tempo que não via o restante da civilização, mesmo que através da janela, tendo passado o último mês no trajeto casa-parque-casa-mercado-casa.

Pouca gente na rua. Uns transeuntes passeando os cachorros, outros tantos em filas espaçadas para seus cafés de bairro favoritos, na esperança de contribuir o bastante para que seus coconut-milk-chai-lattes continuem existindo no fim da distopia. Vitrines de luzes apagadas e cartazes escritos à mão às portas. Fitas policiais nos bancos.

Estacionamos em frente à loja e, sem sair do carro, Allex telefonou para o vendedor.

"Oi. Vim pegar minha compra."
"Oi, bom dia. Confirma seus dados pra mim. Obrigado. Confirma sua compra pra mim. Obrigado. O senhor está de carro ou a pé?"
"De carro."
"Ok, ótimo. Então por favor espere no nosso estacionamento atrás da loja. Nosso vendedor vai até você e vai confirmar sua identidade. Por favor deixe o porta-malas aberto e não saia do carro."
"Ahn... ok."

Allex dirigiu o carro até o estacionamento, desligou o motor e abriu o porta-malas sem sair.
Mantivemos os olhos na porta traseira da loja, em silêncio, uma sensação de nervoso no ar. Como se estivéssemos fazendo algo errado.

"Feche seu vidro, senhor!", gritou o vendedor, de luvas e máscara, muitos metros à distância. "Posso ver sua identidade?", ele continuou, enquanto Allex fechava o vidro apressadamente, num riso nervoso de quem agora sabe que fez algo errado. Tirou do bolso a carteira de motorista e a pressionou contra o vido com a ponta dos dedos, enquanto o vendedor se aproximava para verificar, em segurança.

"Ok", ele disse num tom severo, saindo de nossa vista rapidamente. Ouvimos um som seco batucado vindo do porta-malas e o som dos passos apressados do vendedor correndo de volta para a loja. Ele acabara de jogar o pacote de cordas para dentro do carro.

Olhamos um para o outro e rimos um riso azedo e preocupado, desacreditando aquela cena.

"Meus deus! Parece que a gente comprou drogas!", eu digo e ele concorda.

Dirigimos de volta de corações pesados, pensando em todas as estranhezas.

De volta ao apartamento, distraio a cabeça preparando pudim. Deve haver uma explicação psicológica para eu voltar minha atenção às receitas antigas, do caderno, do blog. Leio os textos de dez, doze anos atrás, quando sequer sabia que queria ter filhos, quando sequer sabia que mudaria para outro país e quando não desconfiava que aquela fala minha repetida, de aprender a cozinhar para não depender de ninguém durante o apocalipse zumbi, um dia poderia ser comprovada.

Mas o retorno ao passado através da cozinha tem me mantido mais ainda consciente do presente. Faço o "pudim do moreco", aquele da Dorie Greenspan, de baunilha com ganache no fundo, e à primeira colherada Laura e eu o achamos doce demais. Doce demais. Como quase tudo o que preparo de tantos anos atrás e que era tão sensacional àquela época. O passado fica ainda mais distante quando me dou conta do quanto mudei, do quanto mudamos, passado e presente contínuo. Mudamos a cada respiração, e mudando estamos. Todo fim é um começo, e se esse é o começo do fim, então é melhor embarcar no ciclos, aceitar o movimento e lembrar que toda a mudança é estranha, todo estranho é desconhecido, e é o desconhecido que traz o medo.

Chacoalha o medo.

Olha pra ele.

Respira.

Nunca pensei que meus filhos fossem passar por esses tempos estranhos. Nunca pensei que eu... não, talvez eu sim.Talvez sempre tenha havido em mim esse sentimento apocalíptico de quem leu ficção científica demais, de quem já era ecologista (quando se usava o termo ecologista) aos doze anos, de quem teve a personalidade não conformista agravada por uma criação católica que espera punição por seus pecados.

Talvez eu esperasse passar por isso. Mas não meus filhos.

Distraio-me preparando pudim doce demais. Distraio a mente na minha rotina, no mato, no cuidar do que é vivo e me é querido, distraio-me na arte. A vida é leve aqui dentro. Então a ida ao mercado, aquela fila longínqua, aqueles olhares sombrios por trás das máscaras e dos lenços, aquela vibração de medo da mulher que espera você sair da frente das latas de tomate para que ela possa se aproximar e escolher seu molho, a rádio do mercado ligada no canal de notícias, espalhando números e dados e histórias de hospitais e valas, tudo isso junto e misturado cria vida num arrepio que começa na base da nuca, e o silêncio pesado no seu peito se concentra e toma forma dum ruído elétrico à distância, um zumbido grave que chega cada vez mais perto e sobe até a cabeça, e perfura suas têmporas como uma furadeira.

Volto para casa com comida e dor de cabeça.

Distraio-me com bolo. Com bolo e com escrita, e com lições da escola e com música na sala para dançar. Distraio-me com chá quente e com vinho,com beijo e com abraço, com passeio do cachorro no mato onde tento ouvir apenas passarinhos.

E quando vou dormir, quando deito a cabeça no travesseiro e suspiro profundamente, sentindo o corpo relaxar, as distrações se acabam, e não resta mais nada a não ser deixar a cabeça lembrar de todas as estranhezas do dia, todos os rostos mascarados, todas as notícias catastróficas e preocupações. A lembrança atinge o peito como quem lembra, depois de um dia bom, que o menino de quem você gosta está namorando uma amiga sua. Meu coração se parte toda noite outra vez.

Nunca pensei que meus filhos passariam por isso.

Mas crianças são resilientes, diz meu coração partido. Eles não são como a gente, não juntaram peças o bastante no quebra-cabeça do seu mundo para acreditar que as peças estranhas não têm lugar. Seu mundo é feito de estranhezas, tudo é novo e diferente o tempo todo, e há menos resistência em seu olhar e mais acolhimento em seus corações.

Minhas frustrações não são as deles. Eles estão bem. Correm e brincam e criam e se divertem, mesmo sabendo explicar no detalhe o que está acontecendo no mundo. Eles encontram seus meios de seguirem sendo, assim como a natureza que nos visita em nossos passeios ao parque.

Quando fomos cedo na manhã de Páscoa ao parque vazio, buscar nas trilhas ainda úmidas a companhia dos coelhos e dos esquilos, encontramos um imenso falcão, ali pousado no carro de manutenção à porta do parque, olhando-nos com curiosidade. À busca de coelhos, encontramos o bicho que os come. Esse sinal da natureza, essa lembrança da deusa-mãe que tudo que é vivo morre, que a vida é impermanência, que estranho é esperar constância.

Voltamos para casa e rego minhas tulipas. Esses bulbos que só brotam com a força de vulcões num verde iridescente em direção ao céu se passarem pela morte congelante do solo duro de um inverno rigoroso.

Sinais da primavera. Sinais da natureza. Natureza segue sendo. Crianças seguem sendo.

Deixo-me levar por sua curiosidade inocente, sua resiliência aventurosa. Escondo o calendário. Evito contar os dias de quarentena. Evito referir-me ao meu tempo em casa como confinamento. Como cárcere. Como prisão. Quem conta os dias que passam risca as paredes da prisão, prende a respiração esperando a liberdade que não tem dia para chegar e se alimenta de ansiedade e angústia.

Não conto dias. Não espero futuro. Olho para as crianças e tento viver neles. No presente. O presente que muda a cada respiração. O presente permanente em sua inconstância.

O passado é doce demais. O futuro ainda não tem sabor. O presente é a medida.

Cozinhe isso também!

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