quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O lado de fora


"Vai pra rua e volta na hora do almoço!", minha mãe ouvia quando criança, nos idos de 1900 e Guaraná com rolha. Rio alto quando ouço a frase deixando minha boca, num berro já semi-ouvido alcançando orelhas já idas na distância. 

"Vai brincar lá fora, que o dia tá bonito e logo logo é inverno", Allex emenda. Terrorismo climático aplicado ao parenting.

No primeiro dia em que as crianças sumiram, ficamos inquietos. Nossa casa fica num "Crescent", que é como chamam essas ruas que levam nada a lugar nenhum, onde não passa ônibus, só tráfego local. Rua tranquila, com jeito de vila do Chaves. As casas aqui não têm muros. Muitos dos quintais, inclusive o nosso, são abertos, com cercas que nos separam dos vizinhos, mas não do trecho de bosque que corre atrás das casas. "Lá fora" é um conceito amplo, pois não tem limites. Lá fora é a rua, é o quintal, é o bosque, é o parquinho da rua de trás, é o quintal do vizinho, o jardim da frente do amigo, a trilha que leva ao mercado. E enquanto eu bebericava minha caipirinha de domingo no lado de fora que eu considero o quintal, e Allex colocava o queijo Haloumi (que bem substitui o Coalho) na churrasqueira, nos perguntávamos quando as crianças pretendiam voltar pra casa. 

"Vão voltar quando tiverem fome", sugeri. 

"Espero que sim", respondeu.

"Acho que é assim que se sente mãe de adolescente."

"Vai se acostumando." 

A alegria de uma rede.

Demorou um dia inteiro de mudança para tirar as crianças do apartamento, mas uma semana inteira para tirar o apartamento de dentro das crianças. Na primeira semana, aproveitaram os seus quartos, cada um com o seu, pela primeira vez na vida. Desapareceram em seus mundos de Lego, gibis, cadernos e lápis de cor. Os adultos, com trabalho pra fazer, móveis pra montar, casa pra limpar, agradeceram esse momento introvertido dos pimpolhos. 

Conforme a casa foi tomando forma, porém, ficou claro que nossos filhos já não se lembravam de como era morar em uma casa-casa. A lembrança do quintal da casa do Brasil e a rua do condomínio era muito longínqua. Os últimos quatro anos de apartamento-gaiola cortaram as pontas de suas asas, e agora era preciso ensiná-los a voar novamente.

Rio Ottawa.

Vocês sabem que vocês podem ir no quintal quando quiserem, né?

Vocês sabem que podem brincar no bosque, né?

Vocês sabem que podem brincar na rua, né?

Vocês sabem que podem pegar a bicicleta e explorar o bairro, né? 

É só avisar que está saindo, dizer aonde vai e a que horas volta. 

Vai sair pra andar. Nem precisa ser de bicicleta.

Dá uma volta no quarteirão. Aí dá uma volta ao contrário. Aí vai até a próxima rua. Lê o nome na placa. Olha pra trás pra saber voltar, que nem na trilha. 

Você sabe o seu endereço de cor? Pra perguntar o caminho, se precisar? 

Só não pode entrar na casa de ninguém, tá? Nem no carro.

Vai, pode ir. Olha quanta criança da idade de vocês andando sozinha tem por aqui! 

Sai. Vai lá falar com as crianças. Pode brincar. Tudo bem que é depois do jantar. Criançada aqui sai pra brincar mais tarde mesmo. Vai lá fazer amigos.Volta às nove. 

Em dois dias, os dois já tinham aprendido o que era ser livre. Porque liberdade tem disso de não matar sede com gole pequeno. Depois do café, pulam pro quintal da vizinha para fazer carinho nos gatos. Depois do almoço, correm para a casa da esquina para chamar os novos amigos. Desaparecem por duas, três horas, e voltam para pegar a arminha de água, fazer xixi ou devolver a bicicleta na garagem. E, de repente, há um estranho silêncio e uma ausência boa de infância acontecendo, em algum lugar, sem a constante supervisão parental que foi tão estressante durante o último ano e meio de escola online. 

O momento agora é de parar e escutar e entender o novo ritmo que a casa pede, pois cada casa dança de um jeito. Essa casa baila gostoso. Respeita as pausas. Minha cozinha tem sentido isso, ou eu tenho sentido minha cozinha assim. Essa casa, no verão, pede comida no jardim. Pede churrasco e acepipes, comida leve e sem horário. Come-se quando se tem fome. Aquela rigidez de outrora dispersou no vento. As crianças curtem a noite clara dos dias longos de verão, e me alimento dos risos que entram pela janela, enquanto invento um jantar com alguma coisa que comprei meia hora antes no mercado, no improviso do meu apetite imediato. A brincadeira acaba quando a luz muda através do galhos das árvores. Janta-se à mesa da sala de jantar. Muito adulto, sala de jantar. Banho e cama. Às vezes às nove. Às vezes às onze, que eles estão brincando tranquilos no quarto, ou vendo desenho na sala, e eu só quero continuar o papo lá fora, ouvindo o som estalado dos troncos das árvores balançando no vento, e estapeando os vorazes mosquitos canadenses que insistem em se alimentar de minhas pernas. 

 Só os mosquitos continuam "snacking". 

"Posso ter um snack?", foi a frase que mais ouvi durante o ano e meio de quarentena. Criança entediada matando tédio com a boca. Conheço bem. Fui a rainha de lanchar tédio durante minha primeira década de vida. Lá fora, ninguém lembra de fazer lanche. E quando o estômago está nas costas, que coincidência, é justo a hora de sentar pra comer. Refeição-refeição. Cafe, almoço, jantar. 

Talvez seja a cozinha diferente que ainda não se abriu pra mim, talvez seja o mercado novo que pouco conheço. Mas minha geladeira anda vazia de qualquer coisa que não seja de café da manhã. No meio do dia me dá umas vontades, e sigo o cheiro delas até o mercado. Compro o que quero comer, volto, preparo, como. No dia seguinte, tudo de novo. Feito descobrir trilha no parque, vou andando devagar pelas comidas que essa casa pede. Entre um churrasco e outro, um macarrão. Arrisco um peixe, mas já deu pra ver que o forte desse mercado não é peixe não. Bora lá achar peixeiro longe. Ando a esmo pelo mercado, sem imaginar prato nenhum. Falta inspiração. Tipo fotógrafo que ainda não achou o ângulo, que ainda não entendeu a luz. 

Tentando decifrar fomes e ingredientes na luz da minha cozinha.
 

Nesta manhã, vou ao mercado pegar ovos, e dou de cara com favas. Favas! Que não encontro desde que me mudei para o Canadá, e que já confundi com pacotinhos de edamame um sem número de vezes. Favas! Lembro que tenho Pecorino na geladeira.Fava fresca com pecorino! Olho os tomates coloridos e apanho uma Burrata. Abobrinhas para rechear. Alcachofras! Uma miríade de pratos que eu gostava de preparar me vêm à mente de repente, uma enxurrada de memórias do meu primeiro apartamento e da casa no Brasil. É inspiração que faltava? Achei.

Essa casa tem disso, de parecer um amálgama de todos os lugares em que morei. Parece que moro aqui há décadas. O crocitar dos corvos ao fim do dia desperta criaturas adormecidas. Lembranças de quem fui brotam da terra onde danço descalça. Surpreendo-me fazendo coisas como se nunca tivesse deixado de fazê-las, como quem por acaso encontra conhecidos em viagens ao exterior. Nossa, você por aqui! Quanto tempo! 

Encontro o lado de fora, meu velho conhecido, amigo distante que admirei naquela viagem à Itália que virou livro (já comprou o seu?), e ele me olha e olho para ele, e nos abraçamos forte, a memória muscular daquela liberdade, daquele ar, daquele céu, fazendo cócegas em minha alma. Minha alma se alimenta de árvores ao vento e passarinhos, de um chá silencioso refletindo nuvens.

Iogurte com fruta e chá depois da corrida, e uma enxurrada de lembranças de quem eu sou.
 

Retorno. Resgate. Pode uma sensação ser concreta? A roda dando a volta completa. Que nem filme de fantasia, quando a engrenagem estala e uma porta secreta é aberta. 

No meio da tarde, as crianças aparecem, assim, vindas pelo lado de trás, do bosque para o quintal. 

"Tem almoço? Tô com fome."

"Falei que eles viriam quando tivessem fome! Tem sim. Tem milho, queijo coalho, linguiça."

"A gente pode ir lá fora de novo depois de comer?"

"Claro que pode. Volta às nove."

....

 

Num momento inspirado, apanhei o livro da Suzanne Goin para preparar essa salada de tomates, que, de verdade, é mais sugestão que receita. Às vezes, tomate com sal basta. Às vezes, vale a pena ser meio metida à besta. 

SALADA DE TOMATES METIDA À BESTA

(quase nada adaptada do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes: 

  • 150g pão amanhecido, rasgado em pedacinhos
  • 1/2xic. azeite
  • 1 colh (sopa) orégano seco (eu não tinha e usei tomilho fresco)
  • 1/2 dente de alho
  • 1 1/2 colh (sopa) de vinagre de vinho tinto (usei de maçã, tanto faz)
  • 1 colh (sopa) vinagre balsâmico
  • 1,5kg tomates de cores e formas diferentes, ou simplesmente os tomates mais bonitos e maduros que você encontrar
  • 1 colh (chá) sal
  • um punhado de folhas de manjericão (pode ser de cores diferentes, ou todas iguais)
  • 500g burrata ou mozzarella de búfala
  • 1/2 xic. echalotas fatiadas fino (ou cebola roxa)
  • 1/4 xic. salsinha picada (confesso que esqueci de colocar e não fez falta)
  • pimenta-do-reino a gosto

Preparo:

  1. Coloque duas colh. (sopa) do azeite numa frigideira que comporte todos os pedacinhos de pão e leve a fogo médio, misturando às vezes, até que todos os pedacinhos estejam agradavelmente dourados. Tire do fogo e reserve os croutons. 
  2. Num pilão ou mini processador, bata o orégano (ou tomilho), alho, 1/4 colh (chá) sal até virar uma pasta. Junte os vinagres, e misture até que a pasta se dissolva neles. Misture 6 colh. (sopa) de azeite, experimente e acerte o tempero. 
  3. Corte os tomates em fatias ou cunhas ou ao meio, dependendo de seu tamanho e formato, retirando qualquer parte verde e dura próxima ao centro. Tempere os tomates com uma pitada de sal. Disponha os tomates na travessa onde você vai servir a salada, intercalando formas e tamanhos, colocando alguns pedaços da burrata ou mozzarella entre os tomates, e temperando com metade vinagrete. 
  4. Polvilhe a salada com as echalotas fatiadas, os croutons, as ervas (manjericão e salsinha) uma pitada de sal e pimenta e o restante do vinagrete. Sirva.


Cozinhe isso também!

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