quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O último dia de 2020


Último dia de 2020. 

Acordo às seis da manhã ao som de passos e sussurros e portas abrindo e fechando com menos cuidado do que eu gostaria. O quarto continua escuro, guardado ainda do sol que só vai dar as caras às oito horas. Tento desligar os ouvidos e voltar à dormir, mas orelha de mãe têm essa ligação automática com barulho de filho, e me deixo levar pelos ruídos familiares que eles produzem ao prepararem seu café. Geladeira. Armário. Pratos sobre a mesa de madeira. Faca batendo devagar contra a tábua de corte. Vidro raspando e batendo: a redoma de bolo, cheia dos biscoitos de avelã e café que assei na noite anterior. O silêncio me diz que estão comendo. O som dos pratos na pia me diz que os eduquei bem.

Rolo para o lado, e jogo um braço estabanado por cima dos ombros do marido. Bom dia, amore. Bom dia. Dormiu? Não. E as costas? Continuam doendo. Um mal jeito nas costas, depois de brincar de levantar Thomas de cabeça para baixo. "La vecchiaia", brinco. Mas suspeito que o mal jeito tenha menos a ver com nossa velhice e mais a ver com o fato de que Thomas cresceu. Muito.

Demoro mais alguns minutos para levantar. É aquela preguiça, aquele jeito do corpo tentar evitar o dia por vir, aquela vontade de cobrir a cabeça com as cobertas e fingir que sou crisálida. Ou um astronauta de filme, enfiado na sua câmara criogênica, para passar pela parte difícil do filme e voltar no futuro, quando tudo estiver resolvido. Posso? Me congela e eu volto quando tudo estiver bem.

Quando era criança, sonhei que o despertador tocava, cedinho, numa manhã de inverno ainda imersa em noite. Preguiçosa, cobria-me novamente, voltando a dormir. Minha mãe me chamava no sonho, e quando me levantei, era noite ainda. Noite densa, sem estrelas. "Ai, Ana! Olha só o que você fez!", dizia minha mãe do sonho. "Você não levantou da cama quando estava amanhecendo, e agora o sol voltou! Vai ser noite para sempre! PRA SEMPRE!" O sonho era vívido, e eu era pequena o bastante para não saber se aquilo era ou não cientificamente possível: o sol voltar atrás e fazer noite só porque uma criança voltou a dormir depois do despertador tocar. Mas, só pra garantir, eu comecei a levantar mais cedo depois disso.

Nada de crisálida e criogenia, que eu não quero que seja noite pra sempre. Levanta.

Minha cabeça é uma bagunça, e quando coloquei os pés no chão, decepcionei-me com a constatação de que comprara, no dia anterior, um pacote imenso de sementes de funcho no lugar das de erva-doce que eu queria. Droga.

A poltrona amarela que comprei na Ikea é meu lugar de honra. "O trono da Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa", brincam as crianças. Mas o gesto é quase ritualístico, o caminhar para fora do quarto e me sentar na poltrona, perna direita cruzada sobre a esquerda, mãos sobre os braços amarelos do móvel. Observo em silêncio o movimento dos cortesãos enquanto aguardo minha xícara de cappuccino quente. Enquanto bebo meu café, as crianças constroem castelos de peças de Jenga e dominó, e formam exércitos feitos de dezenas de dados coloridos do Tenzi. Vê-los criando estratégias de guerra ali aos meus pés só faz aumentar a presença da Rainha de Copas no caleidoscópio que é minha personalidade. 


Último dia do ano.

Quais são os planos? O plano é não ter plano. Como foi o Natal. Nada me faz mais rabugenta do que a pressão de me divertir com dia e hora marcada. A ausência total e completa de qualquer obrigação social ou psicológica de me divertir no Natal foi o que me fez relaxar e me divertir de fato. Assim, só nós quatro e uma lasanha. 

Reveillon aqui não existe. Não como no Brasil. Nos outros anos, quando a prefeitura tentou organizar algum evento de contagem regressiva naquela praça no centro, que parece a Times Square versão miniatura e deprê, o evento foi cancelado umas horas antes, porque fazia 17oC NEGATIVOS lá fora. Nada de pular ondinha no lago. Mesmo o Polar Bear Swim, o "pular ondinha" canadense, que consiste em dar um TCHIBUM! no lago gelado no primeiro dia do ano, não aconteceu... porque o lago estava congelado. Esse ano, as temperaturas estão amenas, e seria legal saracotear até o centro com a criançada. Mas né? Pandemia. Não tem evento nenhum. Sem praia e avenida Paulista pra se aglomerar, canadense costuma fazer festa de Reveillon amontoadinho dentro de Pubs quentinhos, com direito a tiarinha e óculos com o número do ano novo. Mas né? Pandemia de novo. Então o plano sem plano é passar Reveillon em casa, olhando os fogos. Ops. Pandemia? Não, Canadá mesmo. Nada de fogos no Reveillon. Nenhum. Nenhumzinho. Com ou sem pandemia, Reveillon é o feriado mais chato dos quase inexistentes feriados canadenses. 

Então é isso. Eu tinha comprado um peito de pato, num ímpeto de consumismo gastronômico, e acho que, depois do texto do pato do ártico, parece de uma cafonice poética comer pato do último dia de 2020. O plano sem plano é comer o pato. E uma panna cotta em que eu inventei de colocar a quantidade errada de gelatina, e que ficou tão borrachuda que dá pra apagar meus desenhos com ela. Não dá pra acertar tudo. Mas, como diz Allex, se for doce, ele come. 

O plano sem plano é tirar da parede de bruxa o envelope que eu grudei ali no dia 31 de dezembro de 2019. Lembra 2019? Saudades, né? Ler aquela carta que escrevi para mim mesma, agradecendo por tudo o que aconteceu em 2020, tentando prever os melhores momentos do ano e dar a dica para o Universo. Eu me lembro de quando escrevi aquela carta, e de quase tudo o que coloquei nela. Teve muita coisa que aconteceu, e outras que teriam acontecido não tivesse sido... a Pandemia. Pois é, pela Pandemia eu não agradeci na carta, porque eu acho que nem a Mãe Diná previu essa joça. 


Pensar naquela carta, dobrada dentro de um envelope de envio aéreo da Canada Post, de certa forma me acalma. Acalma como acalma raiva de bicho ou birra de criança. Tenho menos raiva de 2020. Foi um ano difícil. Difícil. Vou deixar assim, resumido numa palavra simples mas também razoavelmente leve, porque cansei de carregar comigo o peso desse ano. Foi um ano difícil como uma Maratona. Cansativo, doloroso, longo; tão longo, que parece que nunca vai acabar. Mas quando acaba, quando você acha que nunca mas vai andar na vida, percebe que as pernas continuam funcionando, e que, ainda que seu corpo tenha gasto toda a energia que tinha para percorrer aquele trajeto, você ainda consegue ir em frente. Passou. Acabou a maratona. E paradoxalmente, ainda que enfraquecido pelo esforço, você se sente forte com um deus antigo. Você correu uma maratona. O que mais você consegue fazer?

Você passou por 2020. Parabéns. Assim como numa maratona, todo mundo que saiu de 2019 e chegou a 2021 inteiro, merecia uma medalha de participação. 

Olho pra 2020 com alguma gentileza, como se fosse um espelho. 2020 tornou evidente todas as rugas e cicatrizes, todas as rusgas e falhas, antes encobertas por roupas bonitas de um sistema de mentirinha. Se 2020 fosse um conto infantil, seria a Roupa Nova do Imperador. De repente, isolados e forçados à introspecção, a maioria de nós se viu nu em nossos relacionamentos. Quem soube olhar com coragem no espelho saiu mais forte.

Acordei, na madrugada do Natal, com o som seco e agudo de vidro trincando. Sentada, no escuro, olhando a porta aberta do quarto, como quem espera uma aparição, demorei um tempo para me dar conta de que o barulho não viera do armário de copos ou do vizinho, mas de dentro de mim. Era claro agora, para mim, aquele efeito tão inesperado, pois quando eu fechava os olhos, enxergava no meu peito aquela redoma de vidro, trincada e aberta, libertando prisioneiros inefáveis, mas pesados, que eu não queria mais carregar no peito.

Esse ano que acaba se quebra em cacos no chão, cada pedaço refletindo uma parte nossa deixada para trás, uma perda, uma saudade, uma frustração,uma expectativa, um relacionamento, um castelo nas nuvens, que há muito precisava ser desfeito. Remonto os cacos numa forma nova, e aponto para a luz, na esperança de fazer arco-íris. Parece que esse ano veio para nos fazer ver melhor. 

Dá licença, que eu vou lá fazer meu pato, abrir um espumante, e brindar a esse ano estranho que trouxe tantas tristezas, mas também verdades e transformações. Eu agradeço sempre a tudo o que me faz mais forte. E 2020 não é exceção. 

Feliz ano novo, e que 2021 seja um ano gentil. 

Agora deixa eu ir lá fazer meu pato e arrumar alguma coisa pras crianças fazerem, porque eles inventaram que querem ficar acordados até meia noite e eu estou tentando explicar que Reveillon em Toronto tem cara de quinta-feira.

Cozinhe isso também!

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