domingo, 12 de abril de 2020

Estranhezas e renascimentos



Vamos comigo pegar minhas cordas, disse Allex.

Ele comprara cordas de guitarra pela internet. Não na Amazon ou coisa assim, mas na mesma loja de rua em que adquirira seu amplificador uns meses antes. A mesma loja que agora mantém as portas fechadas, com grandes avisos na vitrine sobre Covid-19, sobre lavar mãos, sobre manter distância, sobre não entrar mais de três por vez e agora, sobre não poder deixar ninguém entrar. Um museu de todas as fases da pandemia. Loja que, como quase todo o pequeno comércio de Toronto, está fazendo o possível para sobreviver.

Depois de mandar o email para a loja com os dados do cartão, metemo-nos no carro e fomos em direção ao centro até a tal loja. Fazia tempo que não via o restante da civilização, mesmo que através da janela, tendo passado o último mês no trajeto casa-parque-casa-mercado-casa.

Pouca gente na rua. Uns transeuntes passeando os cachorros, outros tantos em filas espaçadas para seus cafés de bairro favoritos, na esperança de contribuir o bastante para que seus coconut-milk-chai-lattes continuem existindo no fim da distopia. Vitrines de luzes apagadas e cartazes escritos à mão às portas. Fitas policiais nos bancos.

Estacionamos em frente à loja e, sem sair do carro, Allex telefonou para o vendedor.

"Oi. Vim pegar minha compra."
"Oi, bom dia. Confirma seus dados pra mim. Obrigado. Confirma sua compra pra mim. Obrigado. O senhor está de carro ou a pé?"
"De carro."
"Ok, ótimo. Então por favor espere no nosso estacionamento atrás da loja. Nosso vendedor vai até você e vai confirmar sua identidade. Por favor deixe o porta-malas aberto e não saia do carro."
"Ahn... ok."

Allex dirigiu o carro até o estacionamento, desligou o motor e abriu o porta-malas sem sair.
Mantivemos os olhos na porta traseira da loja, em silêncio, uma sensação de nervoso no ar. Como se estivéssemos fazendo algo errado.

"Feche seu vidro, senhor!", gritou o vendedor, de luvas e máscara, muitos metros à distância. "Posso ver sua identidade?", ele continuou, enquanto Allex fechava o vidro apressadamente, num riso nervoso de quem agora sabe que fez algo errado. Tirou do bolso a carteira de motorista e a pressionou contra o vido com a ponta dos dedos, enquanto o vendedor se aproximava para verificar, em segurança.

"Ok", ele disse num tom severo, saindo de nossa vista rapidamente. Ouvimos um som seco batucado vindo do porta-malas e o som dos passos apressados do vendedor correndo de volta para a loja. Ele acabara de jogar o pacote de cordas para dentro do carro.

Olhamos um para o outro e rimos um riso azedo e preocupado, desacreditando aquela cena.

"Meus deus! Parece que a gente comprou drogas!", eu digo e ele concorda.

Dirigimos de volta de corações pesados, pensando em todas as estranhezas.

De volta ao apartamento, distraio a cabeça preparando pudim. Deve haver uma explicação psicológica para eu voltar minha atenção às receitas antigas, do caderno, do blog. Leio os textos de dez, doze anos atrás, quando sequer sabia que queria ter filhos, quando sequer sabia que mudaria para outro país e quando não desconfiava que aquela fala minha repetida, de aprender a cozinhar para não depender de ninguém durante o apocalipse zumbi, um dia poderia ser comprovada.

Mas o retorno ao passado através da cozinha tem me mantido mais ainda consciente do presente. Faço o "pudim do moreco", aquele da Dorie Greenspan, de baunilha com ganache no fundo, e à primeira colherada Laura e eu o achamos doce demais. Doce demais. Como quase tudo o que preparo de tantos anos atrás e que era tão sensacional àquela época. O passado fica ainda mais distante quando me dou conta do quanto mudei, do quanto mudamos, passado e presente contínuo. Mudamos a cada respiração, e mudando estamos. Todo fim é um começo, e se esse é o começo do fim, então é melhor embarcar no ciclos, aceitar o movimento e lembrar que toda a mudança é estranha, todo estranho é desconhecido, e é o desconhecido que traz o medo.

Chacoalha o medo.

Olha pra ele.

Respira.

Nunca pensei que meus filhos fossem passar por esses tempos estranhos. Nunca pensei que eu... não, talvez eu sim.Talvez sempre tenha havido em mim esse sentimento apocalíptico de quem leu ficção científica demais, de quem já era ecologista (quando se usava o termo ecologista) aos doze anos, de quem teve a personalidade não conformista agravada por uma criação católica que espera punição por seus pecados.

Talvez eu esperasse passar por isso. Mas não meus filhos.

Distraio-me preparando pudim doce demais. Distraio a mente na minha rotina, no mato, no cuidar do que é vivo e me é querido, distraio-me na arte. A vida é leve aqui dentro. Então a ida ao mercado, aquela fila longínqua, aqueles olhares sombrios por trás das máscaras e dos lenços, aquela vibração de medo da mulher que espera você sair da frente das latas de tomate para que ela possa se aproximar e escolher seu molho, a rádio do mercado ligada no canal de notícias, espalhando números e dados e histórias de hospitais e valas, tudo isso junto e misturado cria vida num arrepio que começa na base da nuca, e o silêncio pesado no seu peito se concentra e toma forma dum ruído elétrico à distância, um zumbido grave que chega cada vez mais perto e sobe até a cabeça, e perfura suas têmporas como uma furadeira.

Volto para casa com comida e dor de cabeça.

Distraio-me com bolo. Com bolo e com escrita, e com lições da escola e com música na sala para dançar. Distraio-me com chá quente e com vinho,com beijo e com abraço, com passeio do cachorro no mato onde tento ouvir apenas passarinhos.

E quando vou dormir, quando deito a cabeça no travesseiro e suspiro profundamente, sentindo o corpo relaxar, as distrações se acabam, e não resta mais nada a não ser deixar a cabeça lembrar de todas as estranhezas do dia, todos os rostos mascarados, todas as notícias catastróficas e preocupações. A lembrança atinge o peito como quem lembra, depois de um dia bom, que o menino de quem você gosta está namorando uma amiga sua. Meu coração se parte toda noite outra vez.

Nunca pensei que meus filhos passariam por isso.

Mas crianças são resilientes, diz meu coração partido. Eles não são como a gente, não juntaram peças o bastante no quebra-cabeça do seu mundo para acreditar que as peças estranhas não têm lugar. Seu mundo é feito de estranhezas, tudo é novo e diferente o tempo todo, e há menos resistência em seu olhar e mais acolhimento em seus corações.

Minhas frustrações não são as deles. Eles estão bem. Correm e brincam e criam e se divertem, mesmo sabendo explicar no detalhe o que está acontecendo no mundo. Eles encontram seus meios de seguirem sendo, assim como a natureza que nos visita em nossos passeios ao parque.

Quando fomos cedo na manhã de Páscoa ao parque vazio, buscar nas trilhas ainda úmidas a companhia dos coelhos e dos esquilos, encontramos um imenso falcão, ali pousado no carro de manutenção à porta do parque, olhando-nos com curiosidade. À busca de coelhos, encontramos o bicho que os come. Esse sinal da natureza, essa lembrança da deusa-mãe que tudo que é vivo morre, que a vida é impermanência, que estranho é esperar constância.

Voltamos para casa e rego minhas tulipas. Esses bulbos que só brotam com a força de vulcões num verde iridescente em direção ao céu se passarem pela morte congelante do solo duro de um inverno rigoroso.

Sinais da primavera. Sinais da natureza. Natureza segue sendo. Crianças seguem sendo.

Deixo-me levar por sua curiosidade inocente, sua resiliência aventurosa. Escondo o calendário. Evito contar os dias de quarentena. Evito referir-me ao meu tempo em casa como confinamento. Como cárcere. Como prisão. Quem conta os dias que passam risca as paredes da prisão, prende a respiração esperando a liberdade que não tem dia para chegar e se alimenta de ansiedade e angústia.

Não conto dias. Não espero futuro. Olho para as crianças e tento viver neles. No presente. O presente que muda a cada respiração. O presente permanente em sua inconstância.

O passado é doce demais. O futuro ainda não tem sabor. O presente é a medida.

Cozinhe isso também!

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