Cansou. E se cansou por aqui, onde as coisas começam a melhorar, imagino como deve ter cansado onde nada anda para lugar nenhum.
Mas cansou. Sexta-feira passada, ousei almoçar com uma amiga no pátio externo de um café pela primeira vez desde... desde quando? Qual fora a última vez em que saíra com uma amiga para bater papo e tomar uma taça de vinho? Janeiro? Fevereiro? Se pensar em pátios externos, vixe, a memória puxa para o último verão. Eita.
Enfim, fazia tempo. Não fosse a máscara de acrílico da garçonete, o café vazio de mesas empilhadas lá dentro, e o fato de que eu precisava vestir minha máscara de volta para entrar e pedir mais uma taça, paga com cartão, pois todos estão evitando dinheiro impresso, até pareceria tudo bem. Mas mesmo esse meio-que-tudo-bem-só-que-não já bastou. O vinho desceu bem, o sol de fim de verão estava agradável, e a conversa foi boa. Libertadora. Verborrágica. Como se uma barragem se rompesse, derrubando água presa por muito tempo de repente, inundando aquela mesa de café.
Cansou, dizíamos. As crianças precisam ir à escola. Não porque a tabuada seja importante, mas porque elas já não aguentam mais olhar para a nossa cara. Porque um apartamento não comporta tanta energia. Porque a gente consegue se abnegar por algum tempo para priorizar a infância deles, e passar um dia todo no parquinho, mas não todos os dias, não para sempre, não o tempo todo, não vinte e quatro horas por dia desde março.
Noutro dia Allex levou as crianças de bicicleta até a praia, para ajudar a recolher lixo e limpar pichações das pedras. (Porque sim, isso acontece aqui no Canadá também, isso de ter gente mal educada emporcalhando a natureza e a cidade, e vira e mexe a gente sai para tentar ser parte da solução e não do problema.) Meu pé doía, e daquela vez, resolvi ficar em casa ao invés de passar tempo com os três. Quando a porta se fechou atrás de Laura, olhei em torno e me dei conta de que era a primeira vez que ficava sozinha em casa desde março. O silêncio era um abraço.
Era tanta liberdade que eu não sabia o que fazer com ela. E por duas horas e meia vaguei pelo apartamento como um espectro, uma assombração de quem eu fora um dia, sem memória bastante para materializar minha identidade.
Cansou.
Cansei.
As crianças cansaram.
Faz já um mês que passo meu dia desengalfinhando os dois. Thomas pede paz para ler sossegado. Pede sossego para brincar em paz. Laura pula em cima dele, senta perto demais, fica constantemente de ponta cabeça, virando cambalhotas no chão e no sofá e resvalando seus pés apenas perto o bastante do irmão para irritá-lo, mas sem tocá-lo. Ele pede para que ela saia. Para que pare. Ela não pára. Ela quer atenção dele, quer brincar com ele, e fica frustrada em ver o irmão num momento introspectivo e solitário. Ouço um tabefe e um berro e lá vou eu separar a briga, conversar, explicar que não se resolve conflito com tapa, que eles têm idade para usar as palavras, para dizer como se sentem, e que se tudo falha, eles precisam vir chamar papai e mamãe para ajudar com o problema. Tá bom? Tá bom. Pede desculpas. Desculpas. Vão brincar tranquilos? Vamos.
Meia hora depois, ouço as vozes de brincadeiras adquirirem outro tom. Thomas faz voz de desenho animado quando está bravo com Laura, como quem imita um monstro gritando, mas sem de fato levantar a voz. Laura berra esganiçado, naquele misto de choro com meias palavras difíceis de se entenderem, que me arrepiam os pelos da nuca feito unhas no quadro-negro. É uma briga de Schrödinger. A briga pode ou não virar tabefe, mas eu só vou saber se abrir a porta do quarto.
Abro a porta do quarto. Posso ajudar?
Não, não pode.
Mas vocês estão brigando. Quero saber se posso ajudar.
Deixa a gente resolver. Se você se meter quando a gente briga, a gente não vai aprender a resolver sozinho.
(É isso o que acontece quando se ensina uma criança de sete anos a argumentar.)
Eu sei, Laura, mas quando vocês começam a falar um com o outro nesse tom, normalmente um dos dois atinge o limite e vai pro tapa. Se vocês atingiram o limite de vocês e não enxergam uma saída para a discussão, tem que chamar a mamãe para ajudar.
Deixa a gente resolver.
Vocês vão se bater?
Não.
Tá bom.
Viro as costas e fecho a porta. A discussão continua. Uma briga por uma peça de lego que o outro pegou sem permissão. Ouço um tapa e um berro.
Eita.
É a peça de lego. É o livro com a página desmarcada. É sentar muito perto no sofá. É o bichinho de pelúcia. É o assobio. É o batuque no chão. É o "ele está olhando para mim".
Sério? Ele está OLHANDO para você?
É.
Eita.
Laura, respeita o espaço do teu irmão. Thomas, se você não diz como se sente, os outros não têm como adivinhar que estão te incomodando. Laura, você pode cantar na sala, não precisa ser no quarto onde teu irmão está brincando. Thomas, se a Laura estava usando aquela peça,você precisa pedir primeiro. Ai, gente, pelamor, tem umas duzentas dessas peças no Lego de vocês! Precisa mesmo brigar? Gente, senta um de cada lado, vai! Vocês dois! Se vocês não querem brincar juntos, fica um na sala e outro no quarto, não precisa ficar um em cima do outro o tempo todo! Eita nóis, vai, toda vez que vocês brincam de batalha um chuta o nariz do outro e os dois ficam fulos! Dá pra parar?
Cansou.
Né?
É.
Do lado de fora, nada disso acontece. E eu adoraria (mesmo) passar o dia todo do lado de fora com eles, como já fiz outras vezes. Sei que faz bem para mim e para os dois também e desse jeito ninguém briga. Mas com as pendências do livro para resolver e todas as ilustrações para entregar, anda cada vez mais difícil. Trabalho de manhã, interrompida pelas querelas infantis, e levo eles ao parque à tarde. As chuvas de fim de verão, no entanto, não têm ajudado, e muitos desses dias terminam confinados ao apartamento.
Ai, meu deus, e a como gasta a energia então?
Allex pára o trabalho dele para colocar os dois para fazer ginástica ou yoga. Faz prancha, faz polichinelo, faz burpee até suar. Faz torção, arruma a postura,estica até alcançar o pé. Cansou? Ótimo. Agora vai ler um livro sossegado.
Sabe aquele filme, Dr. Fantástico? Pois é, falei pro Allex outro dia que o personagem do pai parece um amálgama de nós dois. Hahaha.
Eu saía do café, com a cabeça ligeiramente leve do vinho e da conversa, quando Allex me ligou. "Estou saindo de bicicleta com as crianças." Eram quatro da tarde. Olhei em volta, e aquele fim de tarde de sexta-feira estava lindo e eu estava de bom humor depois daquelas horas apenas minhas. "Que bom, porque estou justo chegando em casa. Eu vou junto."
Pedalamos vinte quilômetros ao longo do lago até uma praia grande do outro lado da cidade. Havia um food truck com algumas cadeiras servindo hambúrgueres e sorvete. Jantamos. Largamos as bicicletas no calçadão e pulamos no lago, ainda aquecido pelo sol. Deixei-me flutuar um pouco, as roupas inflando feito balões sob a corrente de água. Voltamos pedalando de volta aqueles vinte quilômetros, perseguindo o por-do-sol. Eram nove da noite quando chegamos em casa.
Quando colocamos as crianças na cama, eu não me lembrava mais de suas discussões das sete da manhã. O dia fora perfeito. Eu estava restaurada pelas horas minhas e por aquelas horas do lado de fora.
Mas na manhã seguinte, é claro, começaria tudo de novo.
Bom dia começa com alegria, bom dia começa com... "Me devolve meu dragão, Laura!" "Eu não peguei seu dragão bobo!" "Pegou sim!"
Eita.
...
Justamente por conta desse clima tenso das crianças, exaustas das incertezas, do excesso de convivência um com o outro e da ausência dos amigos, é que tenho tentado me cuidar. Cuidar do corpo e da cabeça para tentar manter meus níveis Zen de paciência perto do infinito. Dá vontade de gritar de volta e botar todo mundo de castigo. Mas não, né? Zen Master. Conversa, explica, dá soluções, mostra que é possível, dá o exemplo. Afe,exemplo. É difícil. Cansa. Mas chega o dia em que dá certo.
Deixa eu me cuidar, então.
Meditação? Check.
Yoga? Check.
Kettlebell? Check.
Comida leve? Check.
Arte? Check.
Voltei a praticar yoga e kettlebell todos os dias com o marido depois que o médico começou a me passar exercícios para o pé que eram os mesmos das duas práticas. E o pé finalmente começou a melhorar. Tem sido muito bom para gastar o meu excesso de energia também, esse que anda explodindo dentro de mim depois que deixei de correr dez quilômetros por dia para ficar minha manhã inteira sentada na frente do computador.
E continuo a brincar com essa ideia de veganismo durante a semana. Tinha começado com isso durante o treino para a ultramaratona que não aconteceu por conta da pandemia e também porque os laticínios canadenses andavam me dando azia quando consumidos todos os dias. A azia foi embora e o que sobrou foi essa sensação boa de leveza no corpo.
Tenho acordado para cafés da manhã assim. Uma torrada com tahini e abacate e uma porção de frutas. Nada de cappuccino. Só café. Às vezes uma água de coco.
Se dá fome no meio da manhã, mando pra dentro mais uma porção de fruta.
Almoço, desde o começo da pandemia, tem sido restô-dontê.Havia sobrado arroz de abóbora com coco de uma receita do Jamie Oliver que eu fizera na noite anterior. Refoguei umas folhas de beterraba em cebola e alho, e preparei uma salada rápida de alface romana, rúcula, pepinos e salsão, temperada apenas azeite e limão, para acompanhar. A parte boa de comer só verdura é que dá pra montar um pratão de caminhoneiro.
Lanche é sempre no parque. Preparo o piquenique das crianças já pensando num pouquinho para mim. Frutas, frutas, frutas, que há que se aproveitá-las no verão e umas bolachas salgadas integrais. Ou algas. Ou trail mix (aquela mistura de castanhas, sementes e frutas secas).
Os dois vira e mexe saem fazendo suas invencionices. Bolacha com fruta, até vai. Mas outro dia Thomas estava fazendo rolinhos de alga com melancia. Vai entender.
Preparo o jantar enquanto as crianças estão no banho. O dia ainda é claro lá fora. Allex ainda está na última reunião do dia, em frente ao computador, ou gerenciando o banho da pimpolhada. Lavou o cabelo? Não? Então volta e lava.
No dia anterior eu preparara o arroz de coco e abóbora e os quiabos com feijão branco. Tão bom que me empolguei a fazer outra receita do seu Oliver. Fazia muito tempo que eu não cozinhava nada dele.Aliás, fazia muito tempo que eu não usava uma receita para fazer jantar. Veio logo uma sensação de tempos passados, de vida distante, essa em que toda refeição tinha um livro aberto na cozinha guiando meus passos.
As crianças viram comigo um video dele preparando um macarrão com molho de pimentão amarelo, muito simples, e imediatamente pediram para que eu fizesse também. Fiz, trocando apenas o parmesão do molho por um pouco de levedura. E ficou muito gostoso. Se a gente usasse aquele macarrão curvadinho, ia ficar parecendo Mac'n'Cheese!, disse Thomas. Olha, que parece mesmo. Posso mandar esse macarrão de almoço na escola? Poooodeeeee!
Eu tinha um maço imenso de couve que ia acabar estragando, então refoguei em alho e pimenta para acompanhar o spaghetti.
Não lembro nem como caí no video dele preparando esse arroz e esse quiabo, mas quando vi, fiquei subitamente empolgada. A receita é fácil e deliciosa. Teria saído melhor se eu não tivesse atendido o telefone no meio do preparo e ficado de papo com uma amiga. Na distração, coloquei o dobro do leite de coco e não piquei o bastante as abóboras, fazendo com que o arroz absorvesse água demais e a abóbora não dissolvesse no caldo. Também não encontrei os tal Butter beans, ou Lima beans, e acabei usando White kidney beans. Mas qualquer feijão branco serve. A receita original usava pimentas Scotch Bonnet. Como a tolerância para pimenta das crianças é baixa, preferi não usar a pimenta no preparo e simplesmente deixar um bom molho de pimenta à disposição na mesa para quem quisesse. A receita diz render 6 porções, mas rendeu bem umas oito, para ser sincera. O que não é problema para ninguém, já que ficou gostoso. Se for usar arroz agulhinha no lugar do basmati, acerte a quantidade de água + leite de coco para a proporção que você normalmente usa para o cozinhar o arroz comum.
- 400 g abóbora, descascada e picada em cubos de 2cm
- 100 g leite de coco
- 4 grãos de pimenta-da-jamaica
- 4 cebolinhas
- alguns raminhos de tomilho fresco
- 400g de couve, sem os talos, rasgada em pedaços menores
- 450 g arroz basmati
- 2 dentes de alh, fatiado
- 1 cebola, picada
- azeite
- 200 g tomates cereja, cortados ao meio
- 200 g quiabo, sem as hastes e cortado ao meio
- 700 g feijão branco cozido (em lata)
Preparo:
- Leve 800ml de água à fervura numa panela grande, e junte o leite de coco, a pimenta-da-jamaica, as cebolinhas e metade do tomilho. Junte a abóbora e a couve, mais 1/2 colh.(chá) sal e um pouco de pimenta-do-reino, tampe e deixe cozinhar por dez minutos.
- Junte o arroz, abaixe o fogo, tampe e deixe cozinhar por cerca de 12 minutos, ou até que o arroz esteja cozido. Desligue o fogo e deixe terminar de cozinhar no vapor.
- Numa frigideira grande com tampa, aqueça o azeite. Junte o alho e a cebola, uma pitada de sal, e deixe amolecer e começar a dourar.
- Junte os tomates, mexendo bem, até que amoleçam um pouco. Junte o quiabo e o tomilho, misture, tampe a panela e cozinhe por oito minutos em fogo médio-baixo.
- JUnte o feijão escorrido, um pouquinho de água, e misture bem, cozinhando por mais uns cinco minutos para que os sabores se misturem.
- Sirva o arroz e o quiabo com seu molho de pimenta favorito.