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terça-feira, 17 de julho de 2018

Ansiedade em Junho, Marcella Hazan, e bolo


Bolo delicioso e fácil da Dorie Greenspan. Vanilla and Browned Butter Weekend Cake.

Lembrei-me de quando era criança, do esforço de meus pais em tentar me arrancar da cama para ir à escola, levando pão e café na cama (minha mãe), espirrando água em minha testa (meu pai), ligando o rádio na Jovem Pan AM alto o bastante para o vizinho dezesseis andares abaixo escutar (meu pai de novo). Lembrei-me da frustração dos dois, pois todo aquele cansaço que usávamos como justificativa para uns minutos a mais sob os lençóis desaparecia aos sábados e domingos, quando pulávamos da cama antes das seis e começávamos a despejar o Lego de suas caixas e brigar pelas bonecas em nosso quarto, enquanto os adultos nos maldiziam por termos arruinado sua soneca de fim de semana.

Lembrei-me disso quando comecei a ver meus filhos fazendo o mesmo.

Junho foi o último mês de aulas. Último mês do ano letivo. Meus filhos haviam passado por seu primeiro ano letivo no Canadá. Sentia algo entre surpresa e orgulho. Laura empolgada em ser do Senior Kindergarten, Thomas preocupado em ter um professor diferente no Second Grade. Ambos ansiosos ao pensar em ficar dois meses sem ver os amigos que custaram a fazer. Frustrados porque muitos colegas viajariam para seus países de origem. Mas nós não.

Ansiedade tornou-se sinônimo de Junho.

Ansiosos para terminarem as aulas. Via em Thomas olhos cansados. Ele atropelava sua lição de casa para poder descansar. Enquanto lia um dos livros da escola em voz alta, adiantado já para quem chegou há onze meses sem falar uma palavra de inglês, Laura, sentada ao seu lado, ouvindo a história, despencava num sono pesado nos ombros do irmão. Não foram poucas as vezes em que a carreguei direto para a cama, seu corpo abandonado ao sono em meus braços, sem a capacidade sequer para jantar.

O calor nos exaure.

Depois de uma primavera praticamente inexistente, tendo nevado pela última vez em Abril (!!!), o Verão veio como um meteoro para cima da cidade, rápido, incandescente, brutal. De um dia para o outro, calças e malhas finas foram arremessadas ao fundo do armário e substituídas por shorts e regatas. Havia avisos de excesso de calor vindo do Comitê de Educação por email, e pais reclamando das altas temperaturas na sala do Kindergarten. Splash Pads e Wading Pools foram acionadas nos parques. O cão arfava a caminho da escola e buscava uma sombra para andar. O sol começou a se por às dez da noite, e as vespas, moscas, bumblebees e besouros finalmente surgiram. Num apartamento preparado para um frio ártico, o calor entra e não sai, e em noites sem vento, deitamos abandonados em nosso próprio suor sobre lençóis empapados, membros estendidos como estrelas-marinhas ressecando ao sol, e a mente, sem sossego, atordoada pelo excesso de luz, excesso de calor, excesso de movimento durante o dia, excesso de tarefas a completar, não adormece.

Não se dorme.

Não durmo.

O dia está claro antes das cinco da manhã e a luz entra cortante por entre as persianas.

Há de se aproveitar o Verão que dura tão pouco. As estações definidas fazem o tempo passar mais rápido e provocam uma ansiedade estranha, um medo de aquela semana de calor passar e você ter de esperar até o ano que vem para nadar no lago outra vez. Thomas, que ficou um ano sem bicicleta, agora precisa tirar as rodinhas até o fim do outono, ou terá de esperar até o ano que vem. Ansiedade.

As crianças vão para a escola de bicicleta. Corro atrás, lancheiras e cadeado numa mão, cachorro na outra. Estamos atrasados. Há uma série de eventos escolares esse mês. Os últimos eventos para arrecadar dinheiro para a escola. As festas de classe. O teatrinho do Kindergarten.

Quando uma mãe envia a lista de pratos da festa de fim de ano de Laura, imediatamente me candidato a levar os legumes. São mais rápidos de se preparar e mais baratos que as frutas. Preciso colocar imensos avisos por toda a casa e em minha agenda e meu celular, para me lembrar de comprar tudo, lavar, cortar e levar no dia correto. A semana toda é atravancada de consultas médicas, dentistas, passeio de escola que eu me comprometera a acompanhar no mês anterior, reunião de professores. Allex me cobra a carteira de motorista, que ainda não fui tirar. Não dá tempo, explico. Na vez da festinha de sala de Thomas, não havia lista para os pais. Teria mandado legumes também, mas ele veio cheio de carinho perdir-me um bolo, e às nove da noite, cansada, com poucos ingredientes na despensa, tentei adaptar um bolo que eu fizera uma vez há anos atrás e adorara, mas que desta vez acabou falhando miseravelmente, ficando com gosto de omelete e textura borrachosa, e foi direto para o lixo. Expliquei isso a ele no dia seguinte, e sua resposta "Tudo bem, mamãe, isso acontece!" me tranquilizou. Passamos no mercadinho vinte-e-quatro-horas a caminho da escola, com cachorro e bicicletas, atrasados para a natação do primeiro período e comprei um saco de pipocas de caramelo e queijo para que não fosse de mãos vazias. No meio da manhã me dei conta de que não checara se as pipocas eram Nut-Free. Passei a manhã toda ansiosa pensando se alguma criança fora parar no hospital por conta desse descuido ou se eu tomaria bronca da escola por mandar um lanche inadequado. 

Crianças na escola, bicicletas com cadeado, corro com o cão para o parque em frente para que ele possa ao menos encontrar seus coleguinhas caninos. Dez minutos no parque, uma conversa apressada, e meu corpo inteiro parece atraído para o caminho de casa. A força imensa que me arranca daquela rotina matinal de que tanto gosto e que normalmente cumpro com calma é o trabalho.

Em Junho meu trabalho voltou de verdade, com força, múltiplos projetos ao mesmo tempo, prazos todos iguais: para ontem. Olhei minha agenda, aquela miríade de compromissos interrompendo minha manhã, e tentei encaixar meu trabalho da melhor forma possível sem interferir muito na dinâmica familiar.

Volto do passeio do cão às pressas, atropelo meu ritual de iogurte com fruta, ignoro minha necessidade de fazer algum exercício, ou de meditar, e me atiro ao computador e à prancheta, onde fico debruçada sem pausa, até a hora de buscar as crianças. Esqueço de almoçar algumas vezes. Em outras, preparo minha torrada com abacate, mas peco comendo sem proveito e sem prazer em frente ao computador. O cão choraminga. Esqueci seu passeio do meio-dia. Desculpe-me, cãozinho, mas preciso entregar tudo isso enquanto as crianças estão na escola. Nas Férias tudo será melhor.

Ergo-me da cadeira com dificuldade, depois de cinco horas corcunda e torta. Tanto tempo olhando sem piscar para a tela, pintando detalhes, que lágrimas gordas começam a escorrer por meu rosto. Os olhos ardem. Sinto-me ridícula. Não estou chorando. Apenas meus olhos entrando em estado de emergência, mandando que eu olhe para fora, para o lago, que pelamorededeus PISQUE uma mísera vez durante toda a manhã, só uma. Não precisa ser assim. Mas precisa. Preciso entregar tudo antes que as férias comecem. Preciso aproveitar essas duas horas para trabalhar, pois daqui a pouco preciso ir na apresentação da Laura e depois tenho que pegar as crianças. É isso? É e não é. A verdade é que quero entregar logo todos os trabalhos contratados para poder voltar a meus projetos pessoais e todos aqueles planos mirabolantes que eu fizera para mim.
Feijões brancos com couve e lascas de parmesão, feitos do jeito que Marcella ensina a fazer com brócolis, e salada de tomares, aipo e ovos cozidos. "Que bonito isso, mamãe! Parece uma flor!", disse Thomas.

Saí todos os dias atrasada para pegar Laura no Kindergarten, sempre a última criança dando a mão para a professora. Estava trabalhando e perdi a noção do tempo, querida, desculpe, eu dizia. Ela saía correndo para o pátio da escola elementar para brincar com as amigas e buscar o irmão. O sol das três e meia estava a pino como se fosse meio do dia. Meu corpo ainda lembrava da luz esmaecida das curtas tardes de inverno, e meu peito continuava a palpitar. Preciso aproveitar o verão. AS CRIANÇAS precisam aproveitar o Verão. Precisam ir ao parque, precisam nadar no lago, precisam tomar sorvete, precisam andar de bicicleta, precisam acampar, precisam fazer trilha, precisam... ah. Não sei. E todas as tardes corríamos da escola para o parque em frente, onde eu me sentava sobre a grama (sentar-se sobre a grama! essa ação tão simples que fora impossível durante seis meses!), abria um livro e tentava não prestar muita atenção às peripécias infantis. Deixe-os correr e se pendurarem onde quiserem, pois fazem isso na escola com abandono e eu nunca estou lá para mandá-los descer. Tento não incutir neles os meus medos. Eles são capazes. Tive mãe que me avisou o tempo todo de que forma eu poderia quebrar partes do meu corpo caindo de lugares altos, e hoje me apavoro de subir em cadeira, uma miríade de acidentes potenciais surgindo em meu cérebro como desastre em forma de fogos de artifício. Eles dão cambalhotas no Monkey Bar e sobem nos telhados da casinha do Playground. Eu enfio meus olhos nas letras do livro e levanto a vista apenas de vez em quando, para ter certeza de que ninguém sumiu. Tendo meus filhos se machucado das piores formas ao brincarem comigo, sob minha vigília, desenvolvi essa teoria de que criança brincando é como o barulho que a árvore faz numa floresta sem ninguém para ouvir. Se a criança está no trepa-trepa e nenhum adulto está olhando, ela se machuca?

Piadas à parte, manter minha atenção na leitura aplaca um pouco minha ansiedade, pois os fogos de artifício do desastre continuam provocando arrepios em minha nuca e tensionando o meio da minha coluna todas as vezes que meus filhos sobem em uma pedra.

E eu sei que o problema sou eu, não eles.
 
Então tiro os sapatos, sinto a grama hirsuta por entre os dedos dos pés, e leio através de meus óculos escuros, protegida pela sombra balouçante de uma árvore. Gritos e risos e pássaros se sobrepõem ao ruído dos carros na avenida ao lado. Leio Marcella Hazan. Amarcord. "Eu me lembro". Um livro delicioso sobre uma vida interessantíssima. Um relato de alguém que passou por uma guerra, que teve um companheiro cheio de amor por toda uma vida, que encontrou na comida e na cultura um conforto sem fim e um trabalho digno.

Quando termino o livro, há uma tristeza em mim. Ler suas palavras foi como falar com minhas avós. Saudades.

Meus pais terem me trazido meus livros de Marcella de volta causou uma revolução positiva em minha cozinha. Eu me lembro. Eu me lembro de uma dezena de suas receitas que preparara, do amor que sentia ao cozinhar aquela comida, da saudades que me dava dos meus trinta dias na Itália e de minha infância inteira com minhas avós, e minha vontade de ver um pouquinho daquela senhorinha que fora tão importante para mim (seu livro Cucina foi o primeiro livro de culinária que comprei na vida) foi tamanha que fiz uma busca na Internet para encontrar algum video em que ela aparecesse cozinhando. E foi por conta deste, em que ela ensina Martha Stewart a preparar Tortellini, que pedi sua biografia na biblioteca.

O video imediatamente lembrou-me da vez em que preparara essa mesma receita, uma década antes, no Brasil. Usando espinafre, o presunto que encontrei no mercado, a ricotta ressecada disponível, e errando totalmente o tamanho das bolinhas de recheio e dos tortellini. Ver aquela senhorinha brava preparando os bocadinhos de massa, me encheu de amor no coração e decidi que era hora de tirar minha máquina de macarrão da gaveta. Havia anos que não preparava massa recheada para meus filhos.
Os tortellini tortinhos, cada um de um tamanho. O tempo estava quente e a massa começou a secar rápido, e a pressa é inimiga da perfeição.

Ainda assim, nenhum dos tortellini abriu, e todos cozinharam maravilhosamente.

Laura fez frescura para experimentar, mas todos rasparam o prato. Foi uma das coisas mais gostosas que preparei no último ano.
Atribulada com o trabalho e sabendo que voltaria do parque com as crianças perto das cinco da tarde para que Thomas fizesse a lição de casa antes do jantar, precisei de um certo nível profissional de planejamento para continuar preparando boas refeições. Como faço pizza toda sexta-feira, e as latas de tomates aqui são bem grandes, sempre faço uma quantidade grande de molho, já usando uma receita de molho de tomate que eu queira colocar sobre um macarrão na semana que segue. O molho fica bem durante uns cinco dias na geladeira, então sempre posso me valer dele para uma refeição rápida na semana seguinte. Logo, eu já tinha o molho para os tortellini, só precisando acrescentar creme de leite. Preparei o recheio dos tortellini na noite anterior, e naquele fim de tarde, enquanto Thomas fazia lição e Laura cochilava no sofá, só precisei preparar a massa, rechear e cozinhar os travesseirinhos.

Parece muito trabalhoso para uma refeição no meio da semana, mas sovar a massa é muito rápido, e a meia hora em que ela descansa antes de ser aberta, me possibilitou ajudar Thomas com a lição e responder alguns emails de clientes. Abrir a massa na máquina, pelo menos para mim, é um processo relaxante. Mas eu sou o tipo de pessoa que relaxa debulhando feijões.

Quando Allex chegou do trabalho, eu acabara de escorrer os tortellini e misturá-los a seu molho cremoso, e o resultado foi de lamber o prato. Um pouco de paz de espírito em meu peito.



 (Eu asso as pizzas sobre papel-alumínio untado de azeite, nas costas da assadeira, o que facilita transferir a massa para o forno, e assar mais de uma pizza uma depois da outra, não importa quão fina e grudenta a massa esteja. Primeira foto, massa crua com o molho de tomate. Segunda foto, massa assada por doze minutos a 250oC. Terceira foto, vai a cobertura. Quarta foto, pizza pronta, depois de mais 8 minutos de forno. O papel alumínio destaca facilmente da base da pizza.)

 Marcella acabou sendo uma forte influência durante todo o mês depois do sucesso dos tortellini, e a cozinha foi meu oásis de tranquilidade na tempestuosa rotina do último mês de aulas.

Crianças no parque, pés na grama, livro nas mãos, eu respirava. Tentava não checar o horário. Mas eu sabia que ainda precisaria continuar trabalhando depois. Era importante para mim não fazê-las sofrer por minhas responsabilidades. Daria tempo. Daria tempo de tudo. Eu também precisava daquela pausa.

Respirava. Tentava não me aborrecer com as crianças pedindo para que eu entrasse na fila quilométrica para comprar sorvete soft-serve porcaria do caminhão de sorvetes estacionado na calçada. Como nos filmes da sessão da tarde, as crianças são atraídas por uma musiquinha metálica e dissonante que se ouve a um quarteirão de distância, e todas largam suas brincadeiras, gritando ICE CREAM! ICE CREAM! e correm para o caminhão, como ratos atrás do flautista.  Ansiedade? Ansiedade é esse comportamento louco, de pais e crianças num parque numa tarde de sol, parados por trinta minutos numa fila na calçada ESPERANDO o caminhão de sorvete chegar e estacionar no local de sempre. "Eu só vou comprar sorvete quando a fila diminuir", explico às crianças. "É um desperdício de vida ficar ali em pé. Nem sabemos se o caminhão vai chegar." E de fato, houve tardes em que ele nunca veio, e a fila dissolvia-se depois de quarenta minutos, mas mesmo depois de uma hora ainda havia duas ou três pessoas agarradas à ideia de que ele viria, ali, em pé na calçada.

Lia Bukoxwsky.

Bukowsky, Ham on Rye, On Wrtitting, você me deprimiu. Deprimiu porque me identifico muito com você, e isso foi inesperado. Lembranças de questionamentos de infância e de juventude que até hoje não se resolveram, impressões da humanidade, desapego dos valores do mundo, sensação de isolamento, desencaixe. Olhar meu trabalho, olhar o trabalho dos outros, a motivação dos outros, o processo e o resultado dos outros e me dar conta de que jamais serei assim porque minhas premissas são tão diversas, meu mundo é tão outro, minha mente sonha num universo paralelo em que tenho permissão para a apenas ser e fazer, mas sou constantemente cutucada por sombras à minha volta que me despertam para esse entorno que me diz que é preciso ganhar, ter, parecer.

Enquanto ocupo meu tempo com os projetos que trarão um pequeno incremento à conta bancária, vejo meu blog, meu livro, minhas pinturas e ilustrações pessoais ali à deriva, tomando pó (literalmente), e meu coração se amarga. Apesar de ter trabalho, sinto-me mal por interromper aqueles outros processos. Sinto-me mal por não conseguir prosseguir com eles madrugada adentro. Não dar os passeios longos de que o cão precisa me aborrece. Sinto-me mal novamente, uma amiga ruim do meu companheiro peludo. Sei que deveria catar as crianças e voltar correndo para casa para continuar meu trabalho, mas isso faz com que me sinta uma mãe ruim, depositando neles o ônus do meu trabalho. Quando terão dias assim para brincar de novo, se o frio chega tão rápido novamente? Meu coração aperta um pouco. Eles são mais importantes. Eu me viro, eu sei que me viro, eu sei que vai dar tempo de tudo. Eu sei que os trabalhos serão entregues, as crianças terão brincado, o cão estará contente e eu hei de terminar meu livro e minhas ilustrações. Sei, racionalmente sei, que tudo a seu tempo será feito e que tudo vai ficar bem. Mas havia essa ansiedade. Essa angústia. Essa sensação de não estar fazendo o suficiente.

Voltava para casa. Tentava não ter pressa. Isso é mais importante que qualquer coisa, eu repetia. E eu sentia. Sabia que estava feliz com meus filhos e que eles estavam felizes também, por poderem viver a seu tempo. As crianças em suas bicicletas, o sol da tarde por entre as árvores, a fome doendo no estômago depois de um dia todo de escola e mais um par de horas no parquinho. Eu sempre consciente da minha respiração, na tentativa de acalamar aquela palpitação constante, aquele verme da ansiedade que pulava num canto escuro do meu cérebro, sussurrando com maldade que nada disso era o bastante, que não daria tempo de nada.

Em casa, preparava aspargos, o novo legume favorito das crianças. Barato agora que é época e ele é local, faço cozido com ovos pochés e lascas de parmesão, e me felicito por fazer três ovos pochés ao mesmo tempo pela primeira vez. Depois me valho de Marcella para esse prato incrível, que as crianças ajudaram a montar: fiz a primeira trouxinha de aspargo, queijo, prosciutto e manteiga como exemplo, e eles fizeram o resto. Usei a água do cozimento dos aspargos para preparar o arroz, perfumado de ervas e manteiga. Salada verde simples para acompanhar.



Noutro dia, boto as crianças para preparar Pici. Essa massa fácil, que não requer máquina de macarrão nem habilidades maiores do que uma criança de três anos tem ao brincar de massinha. E o majericão genovês de verão perfuma novamente o molho feito com antecedência. 600g de farinha, 300ml de água, 1 colh (sopa de azeite). Basta sovar como qualquer massa, embrulhar e deixar descansar por meia hora. Então abrir como um retângulo pequeno, cortar pedaços e abrir como minhoquinhas o mais finas que conseguir, como um fio de spaghetti grosso. Cozinhe normalmente e sirva com um bom molho de tomate ou ragù.


Você sabe que passou por um longo inverno do hemisfério norte quando dá um grito de alegria ao ver abobrinhas novamente. Como senti falta de abobrinhas. E berinjelas. E pimentões. E tomates frescos. E vagens. Laura clama por vagens. Tenho colocado abobrinhas em tudo, mas essas em especial, recheadas das próprias abobrinhas refogadas em cebola e prosciutto até seu total colapso, e misturadas a um béchamel simples, ficaram deliciosas.

Vou ao mercado e a ansiedade se instala, no entanto. Quero aproveitar os aspargos. Quero aproveitar as abobrinhas. E as cerejas, e os morangos, e os tomates. Logo eles se vão de novo e lá vem mais seis meses de batata, couve e maçã. 


As abobrinhas haviam sido cozidas antes. Usei a água das abobrinhas para cozinhar o arroz, e servi com uma simples salada de cenoura com muito azeite.

As crianças vão dormir contentes e exaustas, eu desço o cão para o último passeio, trabalho mais um pouco e então desabo no sofá com o celular e uma cerveja nas mãos. Quando Allex pergunta, o dia foi bom. Deu tudo certo. Brincamos, cozinhamos, comemos, as crianças vão bem na escola, o cão está fofo, os trabalhos estão nos prazos. Apesar da correria, consegui terminar de ler mais um livro e fui catar outro na biblioteca. Sento e desenho mais um cartoon do meu #The100Day Project, e parece que tudo se encaixa mais ou menos bem.

Então por que me sinto consumida? Incapaz? Insuficiente? Bukowsky me deprimiu, explico ao marido. Mas não é isso. Usando aquela expressão boa em inglês, I can't quite put my finger on it. Não consigo identificar exatamente o que é.

Passo o resto da noite vendo o Instagram de outros ilustradores, trabalhos lindos e carreiras brilhantes e consistentes. Traço mil planos na minha cabeça. As direções são tantas que me perco.

Não durmo.

O dia seguinte é igual. Termino com o celular na mão, vendo as férias dos outros, e sentindo que sou uma mãe ruim por não viajar com meus filhos nesse verão.

Não durmo.

Então, no dia seguinte, quem não quer levantar da cama sou eu. Laura é quem me traz meu café. E se antes eu achava isso fofo, agora me pego amarga, pensando que queria ter dormido mais. Saio da cama já cansada, tomo meu café, não tenho apetite. Apanho o celular, e fico metida nele, tentando distrair a cabeça da avalanche de pensamentos. Minha mente é como os letreiros de um luminoso financeiro, mas as informações que correm nele são todas as tarefas do dia, todos os planos que fiz durante a noite insone, todos os pratos que quero fazer com os ingredientes sazonais que logo vão sumir. Uma briga das crianças por espaço para escovar os dentes me irrita e me pego explodindo com eles. Minha cabeça parece suspensa numa névoa.

O que era simples de repente parece complicado.

Saímos correndo para a escola, bicicleta, lancheiras, cachorro. Brigo com eles por todo o caminho por bobagens. Não vou ao parque com o cão. Voltamos da escola direto para a casa, trabalho, e olhar para o arquivo aberto de meu livro pela metade ou as aquarelas incompletas sobre a prancheta me enche de rancor.

Depois da escola, está quente, o cão não passeou o suficiente, eu não terminei o jantar. Mas queremos ir ao parque! Tá bem, tá bem, só um pouco. Sento na grama. Não consigo me concentrar no livro. Apanho o celular. Gente feliz em cidades européias espalhando aos quatro ventos como seus filhos não fazem birras porque eles usam disciplina positiva e todos crescerão para serem adultos absolutamente fantásticos que curarão o câncer, instituirão paz mundial e reviverão os unicórnios.

Minha vida é boa mas não é. Será que estou feliz aqui ou poderia estar melhor em outro lugar? Será que dou  bastantes oportunidades aos meus filhos? Será que estou aproveitando todo o potencial de vida plena que essa nova morada me oferece? Deveria ir a mais cafés? Deveria comprar um sapato novo? Deveria começar a fazer cartões postais dos meus desenhos? Deveria começar a pintar com guache? Deveria tentar fazer concept art, apesar de odiar ilustrar digitalmente?

Vejo meu dia como um mar de rabugice pontilhado de ilhotas de contentamento. Sirvo o jantar com farofa e as crianças acham lindo e delicioso e elogiam, e isso me enche de amor e calor. Então Laura começa a segurar o garfo torto para fazer o irmão rir e derrubar toneladas de farofa no chão, e Thomas levanta o tempo todo da mesa para fazer outra coisa, e há uma parte minha, uma parte ruim e mal resolvida, que parece se sentir ofendida porque as crianças arruinaram aquele momento bom, aquele momento que eu acabara de fotografar para compartilhar com mil pessoas. Tento conversar e ser civilizada e carinhosa e disciplinar positivamente, como se aquelas mil pessoas estivessem assistindo à cena e pudessem me cobrar qualquer outra atitude, mas eles estão cansados e agitados, e acham graça de minhas reprimendas. Explodo. E um milissegundo depois me arrependo. Sinto-me uma mãe ruim. O dia desanda, boto no lugar, desanda de novo, corrijo outra vez. 

No fim, quando paro e lembro, já na cama, o dia foi ótimo. Quase nenhuma bronca minha fizera sentido de fato. Elas tinham mais a ver com minhas expectativas do que de fato com alguma má intenção das crianças. O dia foi ótimo e eu poderia tê-lo aproveitado. Mas continuo me sentindo ansiosa e rancorosa. Sinto-me uma farsa.

Todos se esbaldando na farofa feita com a farinha de mandioca trazida pela vovó. Na outra panela, batatas-doces com ervilhas e queijo Haloumi (que parece queijo coalho), feitas daquele jeito que ensinei com salsichas no post anterior, mas agora versão vegetariana.
Converso com Allex. Minhas ansiedades com relação ao trabalho, à carreira, aos filhos, à vida de imigrante, são todas justas. Mas de alguma forma também desmedidas. Nada parece grande o bastante para me fazer sentir constantemente assim, sem ar. Essa sensação de estar fazendo tanto e que esse tanto não basta.

Então minha querida amiga me telefona. Ela que parece sempre alinhada comigo, que sempre diz exatamente o que preciso ouvir.

Ana.

Larga o Instagram.

Está te fazendo mal.

Você exagerou e agora está simplesmente sofrendo de F.O.M.O. (Feat of missing out) e excesso de comparação com os outros.

...

Hmmm...

Será?

Tentei ser racional a respeito. De fato, quando analisava as coisas, não havia nada de realmente errado na minha vida. Tudo andava, inclusive, muito bom. Minha vida tranquila. Ainda que corrida de vez em quando. Ainda que com contratempos. Ainda que absolutamente vida real. Vida de birra de criança, vida de dia cansado em que a gente dá uma bronca desmedida, vida em que não dá tempo de dar um passeio de quarenta minutos com o cachorro todo dia, vida de bolo que vai pro lixo, vida de pepino com documentos. Mas essencialmente uma vida boa. Uma vida de ler sentada na grama, vida com trabalho remunerado, vida de criança saudável brincando no parque, vida de tagliatelle fresco com molho de abobrinha e biscoito recheado de geleia feita em casa. Vida de apanhar amoras nas árvores do parque e ganhar alfaces de um senhor português cuidando de seu jardim.


Unfollow, unclutter.

Desliga o Instagram um pouco. Um dia, dois. Uma semana. Posta a ilustração nova e desliga, Ana, diz minha amiga.

Tagliatelle com molho de abobrinha frita, de Marcella Hazan.
Três dias depois meu coração batia novamente, no ritmo do vento, do sol, das crianças subindo nas árvores, do cão latindo na rua, no ritmo da luz da manhã na cadeira da varanda, no ritmo da máquina de café.

Agradeci à minha amiga. Expliquei ao meu marido. Tão simples, tão óbvio. Essa ansiedade dos novos tempos. Essa avalanche de informação e vida dos outros que nos faz achar que não somos o bastante, que não nos esforçamos tudo o que podemos, que não atingimos nosso potencial, que não usamos bem todo o nosso tempo, que não moramos no melhor lugar possível, que não criamos nosso filho da melhor forma, que não sabemos o suficiente sobre um assunto, e que não importa o que façamos, estamos sempre atrás, sempre perdendo, sempre insuficientes.




Já postei tantas receitas do livro Apples for Jam, de Tessa Kiros, aqui, que sinto que já passei da cota da infração de direitos autorais. Esses biscoitos recheados de geleia são facílimos, e dão certo mesmo quando parecem que não vão dar. Deixo o link para a receita que encontrei internet afora

Foi como desligar uma luz estroboscópica que piscava na minha cara enquanto tentava dormir.

Senti-me estúpida por cair nessa de novo, sendo justamente aquela pessoa que abandonara o Facebook pelos mesmos motivos, sendo alguém que se vê como tão atenta a essas armadilhas modernas. Mas muito rapidamente parei de me sentir estúpida. Todo mundo cai nessa. Eu não sou melhor que ninguém. Não sou especial. Basta um segundo de desatenção. Basta dar voz ao verme que nos manda "ver o que está acontecendo para não ficar por fora".

Agora conheço bem meus gatilhos, e isso me ajuda a evitar o tiro no pé. Foi assim com a comida, quando descobri qual era a emoção que me fazia comer além da conta, há anos atrás. Conhecendo meu gatilho ele fica evidente como um elefante no meio da sala, e assim basta enxotá-lo antes que faça estrago. Já sei que o primeiro sinal de que devo desligar o celular é quando penso que "preciso" ver o novo Stories da fulana antes que seja apagado. Ansiedade no nível máximo, e com besteiras sem absolutamente nenhum significado real.

Não preciso nada.

Não preciso ver Stories, não preciso dar like, não preciso comentar. Preciso tirar os sapatos e pisar na grama. Preciso ver meu cachorro correndo com seus colegas caninos, latindo feliz ao tentar juntar todos os cães no centro da clareira, como se fossem um rebanho. Preciso ver meus filhos desenhando e correndo em trilhas no mato. Preciso sentar na cadeira de plástico mequetrefe da varanda e ler Bukowsky. Bukowsky que primeiro me deprimiu, mas que depois me libertou. Que me permite escrever do jeito que escrevo, pintar do jeito que eu pinto, me relacionar do jeito que me relaciono e ser quem eu sou sem pedir desculpas nem dar explicações.

Também preciso de bolo. Nunca se esqueça do bolo.
Este, de Dorie Greenspan, é fácil e exatamente o tipo de bolo de que gosto: textura fechada, miolo macio, fácil de fatiar, casquinha úmida e doce, um sabor delicioso de manteiga queimada e baunilha.

BOLO DE MANTEIGA QUEIMADA E BAUNILHA
(do Livro Chez Moi, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:
  • 115g manteiga sem sal
  • 1 3/4 farinha de trigo
  • 1 1/2 colh (chá) fermento
  • 1/4 colh. (chá) sal    
  • 1 1/2 xic. açúcar
  • 4 colh (chá) extrato de baunilha (ou uma fava de baunilha)
  • 4 ovos
  • 1/3 xic. creme de leite fresco
  • 2 colh. (sopa) rum (opcional)

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga uma forma de bolo inglês de 22cm e polvilhe com farinha. Coloque a forma sobre uma assadeira.
  2. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio até que comece a dourar, espumar e exalar um perfume de avelã. Deslique o fogo, e cuidado pois a manteiga continua escurecendo e queima muito fácil
  3. Numa tigela, junte a farinha, o fermento e o sal. 
  4. Se estiver usando a fava, retire as sementes e esfregue-as no açúcar. Se estiver usando o extrato, coloque-o depois que os ovos estiverem batidos. 
  5. Bata os ovos e o açúcar com um fouet por cerca de um minuto até que esteja homogêneo. Junte a baunilha, o rum, se estiver usando, e o creme de leite, misturando bem
  6. Junte os ingredientes secos em três adições, misturando com uma espátula apenas até que estejam incorporados. Junte por último a manteiga, aos poucos, misturando com a espátula até que ela suma. 
  7. Despeje a mistura na forma sobre a assadeira e leve tudo ao forno por 55-65 minutos, olhando um pouco antes para que não esteja escurecendo muito rápido. Se isso acontecer, cubra com um papel alumínio solto. O bolo está pronto quando estiver dourado e um palito inserido no meio sair limpo. 
  8. Retire do forno e aguarde uns dez minutos antes de passar uma faquinha nas laterais e desenformar. Deixe esfriar sobre uma grade.