quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O lado de fora


"Vai pra rua e volta na hora do almoço!", minha mãe ouvia quando criança, nos idos de 1900 e Guaraná com rolha. Rio alto quando ouço a frase deixando minha boca, num berro já semi-ouvido alcançando orelhas já idas na distância. 

"Vai brincar lá fora, que o dia tá bonito e logo logo é inverno", Allex emenda. Terrorismo climático aplicado ao parenting.

No primeiro dia em que as crianças sumiram, ficamos inquietos. Nossa casa fica num "Crescent", que é como chamam essas ruas que levam nada a lugar nenhum, onde não passa ônibus, só tráfego local. Rua tranquila, com jeito de vila do Chaves. As casas aqui não têm muros. Muitos dos quintais, inclusive o nosso, são abertos, com cercas que nos separam dos vizinhos, mas não do trecho de bosque que corre atrás das casas. "Lá fora" é um conceito amplo, pois não tem limites. Lá fora é a rua, é o quintal, é o bosque, é o parquinho da rua de trás, é o quintal do vizinho, o jardim da frente do amigo, a trilha que leva ao mercado. E enquanto eu bebericava minha caipirinha de domingo no lado de fora que eu considero o quintal, e Allex colocava o queijo Haloumi (que bem substitui o Coalho) na churrasqueira, nos perguntávamos quando as crianças pretendiam voltar pra casa. 

"Vão voltar quando tiverem fome", sugeri. 

"Espero que sim", respondeu.

"Acho que é assim que se sente mãe de adolescente."

"Vai se acostumando." 

A alegria de uma rede.

Demorou um dia inteiro de mudança para tirar as crianças do apartamento, mas uma semana inteira para tirar o apartamento de dentro das crianças. Na primeira semana, aproveitaram os seus quartos, cada um com o seu, pela primeira vez na vida. Desapareceram em seus mundos de Lego, gibis, cadernos e lápis de cor. Os adultos, com trabalho pra fazer, móveis pra montar, casa pra limpar, agradeceram esse momento introvertido dos pimpolhos. 

Conforme a casa foi tomando forma, porém, ficou claro que nossos filhos já não se lembravam de como era morar em uma casa-casa. A lembrança do quintal da casa do Brasil e a rua do condomínio era muito longínqua. Os últimos quatro anos de apartamento-gaiola cortaram as pontas de suas asas, e agora era preciso ensiná-los a voar novamente.

Rio Ottawa.

Vocês sabem que vocês podem ir no quintal quando quiserem, né?

Vocês sabem que podem brincar no bosque, né?

Vocês sabem que podem brincar na rua, né?

Vocês sabem que podem pegar a bicicleta e explorar o bairro, né? 

É só avisar que está saindo, dizer aonde vai e a que horas volta. 

Vai sair pra andar. Nem precisa ser de bicicleta.

Dá uma volta no quarteirão. Aí dá uma volta ao contrário. Aí vai até a próxima rua. Lê o nome na placa. Olha pra trás pra saber voltar, que nem na trilha. 

Você sabe o seu endereço de cor? Pra perguntar o caminho, se precisar? 

Só não pode entrar na casa de ninguém, tá? Nem no carro.

Vai, pode ir. Olha quanta criança da idade de vocês andando sozinha tem por aqui! 

Sai. Vai lá falar com as crianças. Pode brincar. Tudo bem que é depois do jantar. Criançada aqui sai pra brincar mais tarde mesmo. Vai lá fazer amigos.Volta às nove. 

Em dois dias, os dois já tinham aprendido o que era ser livre. Porque liberdade tem disso de não matar sede com gole pequeno. Depois do café, pulam pro quintal da vizinha para fazer carinho nos gatos. Depois do almoço, correm para a casa da esquina para chamar os novos amigos. Desaparecem por duas, três horas, e voltam para pegar a arminha de água, fazer xixi ou devolver a bicicleta na garagem. E, de repente, há um estranho silêncio e uma ausência boa de infância acontecendo, em algum lugar, sem a constante supervisão parental que foi tão estressante durante o último ano e meio de escola online. 

O momento agora é de parar e escutar e entender o novo ritmo que a casa pede, pois cada casa dança de um jeito. Essa casa baila gostoso. Respeita as pausas. Minha cozinha tem sentido isso, ou eu tenho sentido minha cozinha assim. Essa casa, no verão, pede comida no jardim. Pede churrasco e acepipes, comida leve e sem horário. Come-se quando se tem fome. Aquela rigidez de outrora dispersou no vento. As crianças curtem a noite clara dos dias longos de verão, e me alimento dos risos que entram pela janela, enquanto invento um jantar com alguma coisa que comprei meia hora antes no mercado, no improviso do meu apetite imediato. A brincadeira acaba quando a luz muda através do galhos das árvores. Janta-se à mesa da sala de jantar. Muito adulto, sala de jantar. Banho e cama. Às vezes às nove. Às vezes às onze, que eles estão brincando tranquilos no quarto, ou vendo desenho na sala, e eu só quero continuar o papo lá fora, ouvindo o som estalado dos troncos das árvores balançando no vento, e estapeando os vorazes mosquitos canadenses que insistem em se alimentar de minhas pernas. 

 Só os mosquitos continuam "snacking". 

"Posso ter um snack?", foi a frase que mais ouvi durante o ano e meio de quarentena. Criança entediada matando tédio com a boca. Conheço bem. Fui a rainha de lanchar tédio durante minha primeira década de vida. Lá fora, ninguém lembra de fazer lanche. E quando o estômago está nas costas, que coincidência, é justo a hora de sentar pra comer. Refeição-refeição. Cafe, almoço, jantar. 

Talvez seja a cozinha diferente que ainda não se abriu pra mim, talvez seja o mercado novo que pouco conheço. Mas minha geladeira anda vazia de qualquer coisa que não seja de café da manhã. No meio do dia me dá umas vontades, e sigo o cheiro delas até o mercado. Compro o que quero comer, volto, preparo, como. No dia seguinte, tudo de novo. Feito descobrir trilha no parque, vou andando devagar pelas comidas que essa casa pede. Entre um churrasco e outro, um macarrão. Arrisco um peixe, mas já deu pra ver que o forte desse mercado não é peixe não. Bora lá achar peixeiro longe. Ando a esmo pelo mercado, sem imaginar prato nenhum. Falta inspiração. Tipo fotógrafo que ainda não achou o ângulo, que ainda não entendeu a luz. 

Tentando decifrar fomes e ingredientes na luz da minha cozinha.
 

Nesta manhã, vou ao mercado pegar ovos, e dou de cara com favas. Favas! Que não encontro desde que me mudei para o Canadá, e que já confundi com pacotinhos de edamame um sem número de vezes. Favas! Lembro que tenho Pecorino na geladeira.Fava fresca com pecorino! Olho os tomates coloridos e apanho uma Burrata. Abobrinhas para rechear. Alcachofras! Uma miríade de pratos que eu gostava de preparar me vêm à mente de repente, uma enxurrada de memórias do meu primeiro apartamento e da casa no Brasil. É inspiração que faltava? Achei.

Essa casa tem disso, de parecer um amálgama de todos os lugares em que morei. Parece que moro aqui há décadas. O crocitar dos corvos ao fim do dia desperta criaturas adormecidas. Lembranças de quem fui brotam da terra onde danço descalça. Surpreendo-me fazendo coisas como se nunca tivesse deixado de fazê-las, como quem por acaso encontra conhecidos em viagens ao exterior. Nossa, você por aqui! Quanto tempo! 

Encontro o lado de fora, meu velho conhecido, amigo distante que admirei naquela viagem à Itália que virou livro (já comprou o seu?), e ele me olha e olho para ele, e nos abraçamos forte, a memória muscular daquela liberdade, daquele ar, daquele céu, fazendo cócegas em minha alma. Minha alma se alimenta de árvores ao vento e passarinhos, de um chá silencioso refletindo nuvens.

Iogurte com fruta e chá depois da corrida, e uma enxurrada de lembranças de quem eu sou.
 

Retorno. Resgate. Pode uma sensação ser concreta? A roda dando a volta completa. Que nem filme de fantasia, quando a engrenagem estala e uma porta secreta é aberta. 

No meio da tarde, as crianças aparecem, assim, vindas pelo lado de trás, do bosque para o quintal. 

"Tem almoço? Tô com fome."

"Falei que eles viriam quando tivessem fome! Tem sim. Tem milho, queijo coalho, linguiça."

"A gente pode ir lá fora de novo depois de comer?"

"Claro que pode. Volta às nove."

....

 

Num momento inspirado, apanhei o livro da Suzanne Goin para preparar essa salada de tomates, que, de verdade, é mais sugestão que receita. Às vezes, tomate com sal basta. Às vezes, vale a pena ser meio metida à besta. 

SALADA DE TOMATES METIDA À BESTA

(quase nada adaptada do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes: 

  • 150g pão amanhecido, rasgado em pedacinhos
  • 1/2xic. azeite
  • 1 colh (sopa) orégano seco (eu não tinha e usei tomilho fresco)
  • 1/2 dente de alho
  • 1 1/2 colh (sopa) de vinagre de vinho tinto (usei de maçã, tanto faz)
  • 1 colh (sopa) vinagre balsâmico
  • 1,5kg tomates de cores e formas diferentes, ou simplesmente os tomates mais bonitos e maduros que você encontrar
  • 1 colh (chá) sal
  • um punhado de folhas de manjericão (pode ser de cores diferentes, ou todas iguais)
  • 500g burrata ou mozzarella de búfala
  • 1/2 xic. echalotas fatiadas fino (ou cebola roxa)
  • 1/4 xic. salsinha picada (confesso que esqueci de colocar e não fez falta)
  • pimenta-do-reino a gosto

Preparo:

  1. Coloque duas colh. (sopa) do azeite numa frigideira que comporte todos os pedacinhos de pão e leve a fogo médio, misturando às vezes, até que todos os pedacinhos estejam agradavelmente dourados. Tire do fogo e reserve os croutons. 
  2. Num pilão ou mini processador, bata o orégano (ou tomilho), alho, 1/4 colh (chá) sal até virar uma pasta. Junte os vinagres, e misture até que a pasta se dissolva neles. Misture 6 colh. (sopa) de azeite, experimente e acerte o tempero. 
  3. Corte os tomates em fatias ou cunhas ou ao meio, dependendo de seu tamanho e formato, retirando qualquer parte verde e dura próxima ao centro. Tempere os tomates com uma pitada de sal. Disponha os tomates na travessa onde você vai servir a salada, intercalando formas e tamanhos, colocando alguns pedaços da burrata ou mozzarella entre os tomates, e temperando com metade vinagrete. 
  4. Polvilhe a salada com as echalotas fatiadas, os croutons, as ervas (manjericão e salsinha) uma pitada de sal e pimenta e o restante do vinagrete. Sirva.


terça-feira, 27 de julho de 2021

Abraça o perrengue e vai: a jornada épica de uma mudança


Ready.
Set.
Go.

Acordamos às seis da manhã. Bem, honestamente, acordar não é o termo correto. Acordar infere um anterior estado adormecido, que, no caso, nunca aconteceu. Num misto de ansiedade e excesso de adrenalina pela noite passada desmontando móveis e encaixotando coisas, o sono nunca veio. 

Fomos buscar café da manhã no Tim Horton's, a Starbucks canadense, enquanto as crianças terminavam de acordar. Elas sim acordaram, uma vez que de fato dormiram. Um copo de café e um english muffin com presunto e queijo para cada um parecia suficiente. O plano era sair de Toronto ao meio-dia e meia, e almoçar na estrada. O apartamento tinha cheiro de empolgação e aquele excesso de confiança que deveria ativar um sensor interno de que tudo está prestes a dar errado. 

Mais uma vez, deixamos as crianças e seus english muffins, e levei Allex de carro até a garagem da U-Haul, para que fizesse o check-out do caminhão que havíamos reservado para as 7:30. "Volte para casa e me espere nos fundos do prédio, para me ajudar  dar ré ali", disse ele, e foi o que fiz. Pedi às crianças que tirassem os lençóis de seus colchões para que eu os colocasse na mala com os meus, e descemos todos para esperar o papai e seu caminhão.

Assim que fui ao fundo dos prédios, dei-me conta de que a equipe de manutenção havia deixado todas as caçambas de lixo na entrada do prédio, e que o caminhão não poderia passar. Também não tínhamos tido nenhum contato com o responsável por nos ensinar como travar um dos elevadores para que apenas nós pudéssemos usá-lo. Enquanto as crianças corriam pela área comum do prédio, se dependurando em corrimãos e fazendo buquês de flores arrancadas do jardim do condomínio, eu telefonava para o Serviço ao Residente, tentando fazer com que alguém removesse as caçambas e viesse falar comigo sobre os elevadores, intercalando as musiquinhas de espera com minha delicada gritaria com os pimpolhos hiperativos: "Pára de arrancar as flor do jardim, cáspita, e vê se não se pendura aí que isso não aguenta o teu peso e eu não tenho tempo de te levar no hospital se você quebrar teus dentes no chão!"

Respira. Minha paciência é inexistente quando estou com sono.

Enquanto isso, na U-Haul, Allex inspecionava o caminhão, para descobrir que o cadeado que trancaria nossa vida inteira estava quebrado. Depois de esperar na fila por vinte minutos para reclamar do cadeado, a senhora fofa que o atendeu foi tão delicada com ele quanto eu era com as crianças: "O problema não é meu. Se você quer um cadeado que funcione, pode comprar esse por dez dólares."

Dez dólares a menos, Allex chegou dando ré no caminhão nos fundos do prédio. Fazia trinta e dois segundos que um faxineiro me havia ajudado a empurrar as caçambas e ensinado a operar a trava do elevador. 

Ainda assim, tínhamos sorrisos no rosto e tudo parecia perfeitamente alinhado com os planos. Estava tudo pronto para começarmos e eram exatamente nove horas, como previsto.


It's show time.

As crianças ficaram de olho no caminhão, enquanto nós dois subíamos até o apartamento para descer as primeiras caixas pesadas de livros com a ajuda de carrinhos de mão igualmente alugados.

Esse é aquele momento em que você deve estar se perguntando: mas cadê a equipe de mudança? 

A equipe de mudança custa caro num país em que os serviços são bem remunerados. América do Norte: terra do Do It Yourself. Sabe todas aquelas séries e filmes passadas em Nova Iorque, em que o personagem principal chama os melhores amigos para descer a poltrona e as caixas de livro pro caminhãozinho? Pronto. Você entendeu. Sim. Nós estávamos fazendo a mudança inteira sozinhos. Nós dois. De encaixotar livros, embalar louça, desmontar mesa e sofá, a transportar tudo para o caminhão e então dirigir o caminhão até a casa nova, descarregar tudo, remontar e reguardar. O plano era descer tudo para o caminhão das nove ao meio-dia, dar aquela última limpadinha no apartamento, largar as chaves no escritório da manutenção e, à uma da tarde, partir para Ottawa. Allex dirigiria o caminhão,  e eu, o carro, com as crianças, e os itens mais frágeis. 

Esse era o plano. 

Conforme carregávamos o caminhão, no entanto, algo ficou dolorosamente claro: a caçamba era muito pequena. "Temos poucas coisas", eu havia dito. "Vai ser fácil", ele concordara.

Não foi. 

"Sobe você e vai trazendo tudo, e eu fico aqui montando o quebra-cabeça", eu disse, depois de cinco minutos de discussão sobre termos ou não desmontado os bancos, ter ou não comprado mais caixas, levar ou não minhas plantas e P*TA QUE PARIU, PÁRA DE ARRANCAR PLANTA E DESCE DO CARRINHO DE MÃO QUE SE VOCÊ PERDER OS DENTES VOU TE DEIXAR BANGUELA PRO RESTO DA VIDA, CÁSPITA!

Mudança é super divertido, eu sempre disse. Né?

As crianças desta vez foram gentilmente obrigadas a carregar tralha do apartamento para o caminhão junto com o pai. Não porque eles poderiam ajudar muito, mas como estratégia para pararem de aprontar. Enquanto eles ficavam no sobe e desce de elevador, eu desmontava todo o caminhão e remontava tudo de novo, como apenas uma criança que jogou Tetris na cadeira do dentista durante oito diferentes obturações conseguiria. Ana Elisa: oito cáries na boca, mas campeã de Tetris. Há!

Com precisão cirúrgica e velocidade que me fez sentir como aqueles japoneses em competição de resolver cubo mágico, fui combinado as variáveis peso, fragilidade, tamanho, resistência e flexibilidade, para criar paredões herméticos de caixas, objetos e partes de mobília do chão ao teto do caminhão.

"Não vai caber tudo. Ainda tem as bicicletas e aquele monte de coisa solta que sobrou lá em cima", resmungou Allex, exasperado. Coisas soltas. Mudança tem disso de ser afrodisíaca par tralha que não cabe em lugar nenhum, e, nos quarenta e cinco do segundo tempo, elas se reproduzem feito coelhos.  "Cabe sim", eu disse, tentando encontrar no meu eu sonolento alguma esperança de não ter de me desfazer das minhas plantas."Não cabe", ele disse. "Vou buscar o carro pra deixar aqui e ver o que cabe nele e P*RRA, TUA MÃE JÁ NÃO DISSE QUE O CARRINHO DE MÃO NÃO É SKATE, CARAMBA?"

Enquanto ele buscava o carro na garagem, eu tentava explicar para as crianças porque é que já eram duas da tarde e a gente ainda não tinha almoçado, e porque apesar de estar todo mundo com fome, a gente não tinha tempo de parar pra comer, porque iam cancelar nosso elevador e tinha um caminhão de construção querendo a nossa vaga e a gente ia ser expulso dali sem ter terminado de carregar tudo.

Allex estacionou o carro atrás do caminhão, e começou a tentar encaixar a maior quantidade de tralha lá dentro entre a TV e a cafeteira, enquanto as crianças e eu trazíamos a tralha solta do apartamento usando o elevador comum, pois nosso tempo de elevador acabara, mesmo com a boa vontade do pessoal da manutenção, e agora tínhamos os moços da reforma no nosso pescoço. 

Num dado momento, o colchão king size escorregou e empurrou pra fora do caminhão minha poltrona amarela, que caiu de ponta cabeça no chão, a dois centímetros do monitor do computador.

Gente, que divertido que é fazer mudança! Né?

"Termina de espremer tudo aí dentro eu vou limpar o apartamento!", berrei, correndo para o lobby. Varre varre varre, esfrega esfrega esfrega. Olha o lago pela última vez. Tchau lago. Tchau, apartamento. A foto mal enquadrada e fora de foco dá uma ideia da pressa que eu tinha de fechar tudo e ir embora.

 

"Coube tudo?", perguntei, apanhando a chave do Allex para juntar ao restante e devolver no escritório. "Sim. Espero que não quebre nada."
"E a TV? Tá no carro?"
"Tá. Eu abaixei um lado do banco e coube em pé."
"Vamos?"
"Vamos."

Fui até o carro, apanhei duas plantinhas que iam pro lixo e enfiei nas laterais das portas do carro. Plantinha muquiada. Beijoca, te amo, se cuida na estrada, vou te seguindo, a gente pára no On Route de Port Hope pra comer.

O bom humor e a paciência foram restaurados com o fechar do cadeado de dez dólares na porta do caminhão e o ligar dos motores.


"Mãe, tô com fome".
"Eu sei, filho. Eu também."

A pessoa lembrou de deixar um lanche pronto pra emergência? CLARQUENÃO.

Quando deixamos os fundos do prédio em direção à estrada, eram QUATRO E MEIA DA TARDE.

Port Hope fica a 89km de Toronto. Às quatro e meia da tarde numa quinta-feira, adivinhe só, havia um trânsito digno da Marginal Pinheiros com chuva. Não fosse o carro e o caminhão serem automáticos, seriam uma hora e meia de engata primeira, engata segunda, primeira, segunda, primeira, segunda. 

Já contei que a Laura enjoa? Laura enjoa. Desde bebê. Ela enjoa e vomita muito bem vomitado toda vez que seu transporte chacoalha ou fica nesse anda e pára, anda e pára. Ela já vomitou até no bonde de Toronto uma vez. É super divertido. Né? Uhú! É claro que eu dei remédio de enjoo pra ela antes de a gente sair. É claro que não funcionou porque ela estava de estômago vazio. Ieeei. 

"Mamãe, eu tô enjoada".  

Olho pelo espelho retrovisor e a criança está cinza. Olho em volta. Numa estrada de seis pistas, estou presa no trânsito bem no meio, sem a menor chance de chegar num acostamento. Abro as janelas, ligo o ventilador no máximo, começo a usar o acelerador e o freio com a delicadeza de uma bailarina.

"Tá melhor, Laura?"
"Um pouco. Mas eu ainda tô enjoada."
"Você vai vomitar?"
"Talvez."
"Ok. Deixa eu pensar. Não tem nenhuma sacolinha plástica aqui. Laura! Laura! O cesto de roupa suja tá do seu lado, não tá?"
"Tá."
"Enfia a mão nele e vê se você acha alguma camiseta grande da mamãe ou uma toalha."
"Achei uma toalha."
"ÓOoooooooteeeemo! Espalha ela no colo, aberta, e se for vomitar, vomita na toalha, please."
"Tá bom."

Laura é muito boa de vomitar com mira. Desde pequena ela sabe quando vai vomitar e sempre dá tempo de ela correr no banheiro e vomitar no vaso, sem sujar nada. Muito prático. 

Mas no fim não precisou. O trânsito aliviou, o enjoo passou e ela acabou pegando no sono. Não sem antes eu pedir pra que ela por favor deitasse a cabeça no ombro do irmão, porque do outro lado estava a tela da TV embalada em plástico-bolha.

Chegamos ao posto de conveniência de Port Hope às seis e meia, doze horas depois de nossa última refeição. Ninguém reclamou dos hambúrgueres de fast food e da batata frita. Nem eu, veja só. Quando comentei do meu cansaço para Allex, ele sugeriu açúcar no lugar do café. Antes de voltar para o carro, compramos chocolates para as crianças, e eu me dei o drink de café mais doce que encontrei no Starbucks antes de voltarmos à estrada. 

"Quanto tempo falta, mamãe?", Thomas perguntou, querendo acertar o timmer no seu relógio novo.
"Três horas e meia, filho." Laura ficou consternada. Por conta do trânsito até ali, uma viagem que costumava levar quatro horas e meia, demoraria cinco e meia no total. "Mas agora não tem trânsito, Laura", expliquei. "Só que agora troca o assento: Thomas vem pro meio, Laura vai pra janela, que eu não quero que ela enjoe mais."

A viagem seguiu tranquila. O super Caramel Vanilla Cookie Crunch Açúcar Com Mais Açúcar Coffee Frappuccino com Chantilly da Porcaria Toda do Starbucks funcionou, e pelo menos eu não sentia mais o cansaço da noite insone e das SEIS HORAS carregando peso. É lógico que eu esqueci de baixar no celular uma playlist de música para ouvir na estrada. Mas o Universo foi meu amigo e me ajudou a encontrar uma estação de rádio de Napanee que parecia uma seleção de karaoke feita sob medida para meu gosto musical eclético. As crianças já se acostumaram com a mãe cantando e dançando nas viagens de carro, e só sentiram falta da coreografia dramática dos braços enquanto eu me jogava em Roxette, Kelly Clarkson, Erasure, Backstreet Boys e Taylor Swift. Afinal, eu estava dirigindo. Só rolava chacoalhar os ombrinhos, como toda pessoa crescida nos anos 80 sabe fazer.

"Gente, olha pela janela. Esses bosquezinhos no meio das fazendas são ótimos para ver Deer (veado)!"
Laura suspirou.
"Ih, mamãe, eu tava aqui pensando que a gente justamente não viu NENHUM bicho na estrada até agora. E isso é muito estranho, porque a gente SEMPRE vê bicho na estrada. Aí eu pensei que é porque você tá dirigindo. Você não pode olhar em volta pra achar bicho, então a gente não vê nenhum. Depois disso só o papai vai dirigir, porque você tem que achar os bichos no caminho!"
"Hahah. Mamãe bruxa dos bichos."

Meia hora depois, numa estradinha menor e mais tranquila, apontei um campo de trigo ao lado da estrada, onde meia dúzia de veados com filhotes pastavam tranquilos. 

"Tá vendo só, mamãe? Você tem olho de ver bicho."
"Pois é."

A noite veio devagar, e as crianças foram silenciando no escuro. Ao nosso lado, uma lua cheia alaranjada do tamanho de um prato de bolo se escondia sob fiapos de nuvens cor de chumbo, feito uma lenta dança dos sete véus. Eu continuava seguindo o caminhão, agora de coração leve. A lua foi dormir e deixou em seu lugar uma chuva fina que sussurrava nos vidros.

Faltando uma hora para chegarmos, olho pelo retrovisor e me dou conta de que os dois adormeceram. Suspiro feliz por um segundo, até me dar conta de que Thomas está com o cabeção apoiado à tela da TV. Chamo seu nome. Chamo mais uma vez. Mais alto. Jogo o braço pra trás e cutuco sua perna. Leves tapinhas. Thomas. Thomas. THOOOOOOMAAAAAAAS. Lembro quando ele era pititico na cadeirinha do carro, e sua cabeça adormecida pendia para frente, sobre o cinto de segurança, e eu, aflita no meio da Marginal ou da Castelo Branco, esticava o braço para trás sem tirar o olho da direção, e ajeitava sua cabeça numa posição melhor, quase deslocando o ombro sobre o assento. THOOOOOOOMAAAAAAAS! Ele acorda. "Joga a cabeça no ombro da Laura, filho!" Ele obedece, sem dizer nada, e volta a dormir. TV sã e salva.

Chegamos à casa às onze da noite. A casa em que dormimos um mês antes, nos sacos de dormir que ainda estão ali nos quartos. Tiro tudo do carro, menos a TV e a cafeteira. As crianças vão à cozinha e se fazem um sanduíche com o pão e o salame comprados na estrada, e comem sobre os pratinhos de acampamento que havíamos deixado ali. Enquanto isso, Allex procurava uma vaga na vizinhança para estacionar o caminhão, já que nossa rua é rota de caminhão de bombeiro e não pode ter nada estacionado no meio-fio. O plano de descarregar o caminhão no mesmo dia foi pra cucuia.

"Vão escovar os dentes e cama, agora", diz Allex, quando volta da rua. Eu rio de nervoso. "O que foi?"
"As escovas estão num tupperware... no caminhão."
"Eita, p*rra."
"Pimpolhada, enxagua bem a boca e vai pra cama."
"E os nossos colchões?', Thomas pergunta.
"Estão no caminhão, ué."
"E a gente não vai pegar?"
"São onze e meia da noite, Thomas. A gente vai pegar amanhã, com todo o resto."

Beijo, abraço, abraço de novo, Thomas vai dizer boa noite pra Laura, pois estão separados pela primeira vez, e em dez minutos estão completamente adormecidos.

E foi assim que, depois de uma noite insone, seis horas carregando peso, cinco horas e meia dirigindo, e uma cerveja dividida no chão de nossa nova sala vazia, fomos todos dormir em sacos de dormir.


A pessoa dormiu? CLARQUENÃO.

Às seis e meia da manhã seguinte "acordamos" e fomos andar até a Starbucks a 500 metros dali para comprar café. Um cappuccino gigantesco e um croissant com queijo, levado de volta para comer em casa. Meu corpo inteiro se move como um brinquedo antigo cujos parafusos enferrujaram. Minha mente continua evitando pensar no trabalho que vai dar descarregar o caminhão. Mas quando levo meu café para a varanda da sala, abro um sorriso largo e solto um grito. "UM COELHO! Tem um COELHO no quintal!" Nhóin. Este brinquedo velho usa pilhas recarregáveis à base de fofura.

Às oito, o caminhão está estacionado em frente à casa. Allex alinha a agenda do dia comigo: "Seguinte. Eu tenho a tarde de folga, mas agora de manhã tenho dois calls da empresa. A gente vai descarregar tudo o mais rápido possível, que à tarde vêm os caras da máquina de lavar e depois o cara da internet. Quando eu estiver em reunião, você espera eu voltar pra ajudar, que a gente não tem pressa."

A gente não tinha pressa. Aí vem o vizinho novo, com quem a gente quer começar com o pé direito, e pede pra tirar o caminhão ao meio-dia, porque ele precisa sair da garagem.

"Ok, então enquanto eu estiver na reunião, você faz o que conseguir."

Desta vez, as crianças quiseram e puderam ajudar no processo todo. O que puderam carregar ou ajudar a carregar, carregaram. Esse vai na sala, esse vai na cozinha, esse vai pra garagem, esse você coloca no basement, esse vai pro meu quarto, esse pro seu, esse pro da Laura. Mas o que era pesado era pesado e ponto, e só adulto carregava. E como tinha caixa pesada! Já falei quanto livro eu tenho? Pois é. E os kettlebells? Ai, que divertido carregar kettlebelll, gente! Né? Não.

Allex, super empolgado, prepara os carrinhos de mão para descer tudo do caminhão e levar pra dentro. Eu rio. "Carrinho sobe escada, Allex?"

"Merda."

Haha. Vai tudo no braço. Um por um.

Chegou a hora do colchão de casal. Segura. Segura. Usa o carrinho pra descer o bicho do caminhão. E agora? Agora f*deu. A desgraça passou pela porta feito bala Toff entalando na garganta. Pensa um colchão PESADO. Agora vem a parte divertida. Já falei que minha casa não é térrea? Pois é. Já falei que ela é meio que feita em zigzag? Pois é. Quer dizer que ela não tem dois andares inteiros, mas que cada plano ocupa um meio-andar. Sete degraus pra sala, sete degraus pra cozinha, sete degraus pro meu quarto, sete degraus pro quarto das crianças. Praticamente uma espiral de degraus desenhada por alguém que não tinha transferidor pra fazer curva e desenhou um caracol quadrado. Agora pensa dois adultos cansados tentando subir um COLCHÃO DE MOLA KING SIZE três lances de escada acima. Ieeeeei! Divertido, né? Super. A gente ria muito, porque lembrava da cena do Friends, em que tentavam fazer curva com um sofá numa escada igualzinha. Ó. Foi ÓOOTEMO.

Depois disso, Allex foi para a reunião dele, porque é importante continuar pagando os boletos, e eu liberei as crianças para brincarem de Lego no quarto, enquanto eu terminava de descarregar as últimas caixas. Laura ainda quis me ajudar (ajuda bem-vinda) a  levar partes do sofá escada acima, e fez um ótimo trabalho. 

A última caixa de livros eu carreguei até a porta. Precisava subir um degrau para entrar. Coloquei um pé na soleira e fiz força, com a caixa nos braços. Nada. Vai, perna, sobe! Ahn-ahn. Tô mandando, perna, me obedece, cáspita! Nananinanão. Coloquei a caixa em cima do degrau e subi sem caixa nos braços, e foi desse jeito que eu fui "rolando" a caixa escada acima, usando a desgraça como se fosse um andador. A última vez em que meu corpo DESISTIU desse jeito foi quando terminei a travessia de Petrópolis-Teresópolis, acampando, e precisei que alguém me puxasse pra sair do carro pra ir à padaria tomar café, porque minhas pernas não tinham mais energia para erguer meu corpo em pé. Isso foi antes das crianças nascerem. Nem os 42km corridos na Maratona de Toronto em 2019 me cansaram desse jeito. Quando terminei a maratona, lembro de ter ido tomar banho, abrir uma cerveja e ainda ficar em pé fazendo o almoço pra galera toda. E ainda desci o cachorro.


Eram exatamente meio-dia quando eu fechei a rampa do caminhão pra que Allex o levasse para a vaga lá longe. O vizinho agradeceu. Ufa. Allex terminou de trabalhar, e veio montar a mesa da cozinha, e saímos para comprar esfihas na bakery ao lado. Almoçamos pela primeira vez no quintal, ouvindo o som dos pássaros e esquilos que habitam o minibosque que corre ao longo da parte de trás das casas. Mas o trabalho não havia terminado. Ele cuidou do cara da máquina de lavar e do cara da internet ao mesmo tempo, enquanto eu desempacotava toda a tralha da cozinha. Porque se tem um negócio que tem que estar funcionando em primeiro lugar é a cozinha. Alegria é descobrir que minha habilidade de empacotadora em mudança continua na garantia: nenhuma taça de vinho se feriu durante a mudança. 

No fim do dia, Allex instalou a cafeteira, enquanto eu descansava em minha poltrona, que não sofrera nenhum dano visível na queda do caminhão. As crianças escovaram os dentes COM MUITO CAPRICHO e foram dormir em suas camas, com lençóis fresquinhos da máquina de lavar nova. Fiquei chocada em descobrir que Thomas é um menino organizado, pois suas roupas já estavam em cabides e seu quarto estava todo em ordem, enquanto Laura parecia ter chacoalhado seu quarto com tudo dentro, feito um globo de neve. Lembrei de quando saí da casa de meus pais e minha mãe ficou igualmente chocada em descobrir que era minha irmã a bagunceira, e não eu.

Levei minha cerveja para a varanda, tentando ignorar a exaustão. Fechei os olhos para ouvir o canto dos últimos corvos atravessando os céus para se recolher ao bando, e quando os abri novamente, havia vaga-lumes por entre as árvores. Lembrei de quando havia vaga-lumes em São Paulo. Eu, pequenina, recolhendo os insetos brilhantes em caixas de fósforos, no parquinho do prédio.

Dormir no colchão que você mesma carregou escada acima tem gosto de justiça. 

Na manhã seguinte, bebericando meu cappuccino, eu brincava de ligue-os-pontos nas manchas roxas de meus braços e pernas. Eu parecia (e ainda pareço, enquanto escrevo isso) um dálmata. Minhas panturrilhas ardiam, de tanto sobe e desce degrau, e os músculos de meus antebraços estavam duros feito pedra.

"Me perguntaram por que é que a gente não pediu ajuda", comentei, rindo. "E eu disse que foi um misto de inocência com excesso de confiança."
"Ué", respondeu Allex."A gente fez, não fez? A gente fez sozinho. Chegou tudo inteiro. Foi difícil, mas deu tudo certo. Como é excesso de confiança se a gente foi lá e fez? Eu digo que a gente sabia exatamente do que era capaz."
"Você tem razão. Parabéns pra gente, então."
"Parabéns pra gente."

Epílogo: Allex pegou suas coisas, e foi dirigir quatro horas e meia de volta a Toronto para devolver o caminhão, e então pegar quatro horas e meia de trem para voltar a Ottawa, já que entregar o caminhão em outra cidade custava o dobro. "Pára de desmontar caixa", ele disse. "Descansa. Vai passear. A gente faz o resto junto depois, que vai mais rápido." Sim, senhor. Teve passeio de bicicleta pela vizinhança nova, teve visita ao mercado pra comprar flores e comidinhas, almoço no quintal, e cochilo. Merecido cochilo.

Fomos buscar Allex na estação de trem no fm do dia, e, quando atravessamos a porta, eu estava em casa.



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