segunda-feira, 1 de março de 2021

Pequenas coisas. Um bolo de chocolate.


 

"Mamãe, a professora pediu pra levar um snack sem pote amanhã", disse Laura, pulando de camisola pelo apartamento. Suas pernas e suas bochechas ainda tinham aquele brilho úmido e avermelhado do banho quente, os cabelos à la Mia Farrow pingando água, os óculos de aro violeta desembaçando aos poucos, com o contato do ar frio da sala. 

Eram sete da noite. Estava escuro e frio-refrigerador lá fora. Do lado de dentro, os abajures produziam uma luz amarelo-quente como as chamas de uma lareira.

"Por quê?'", perguntei, levando à mesa a panela de arroz, e interrompendo a conversa para pedir a Thomas um Untersetzer, ou "únta-zétze", como acabo pronunciando, porque essa palavra me vêm à mente mais rápido que qualquer outra quando preciso de um "descanso de panela" ou um "coaster". Thomas levantou devagar do sofá, olhar tenso por trás dos óculos azuis retangulares, deixou seu livro cuidadosamente aberto de páginas para baixo sobre a almofada, e cumpriu a tarefa em silêncio. Únta-zétse na mesa, criança de volta ao sofá com a cara enfiada no livro. Laura e eu observamos aquele movimento, como quem espera uma família de patos atravessar a avenida. 

De volta à conversa, Laura explicou: "A Mrs. Markandonis vai levar a gente no parque amanhã, e a gente não vai levar lancheira. Ela pediu pra levar um snack que é wrapped, como um cereal bar."

Eita. 

"Bom, não tem nenhum snack assim em casa", respondi, sem conseguir me imaginar me encasacando de novo para ir ao mercado por uma barra de cereal. "Mas eu posso fazer um bolo, e você leva ele em papel-alumínio. Pode ser?"

"Tá bom. Bolo do quê?"

"Menor ideia. Vou ver o que tem na geladeira. Agora venham jantar."

"O que tem?"

"Ah. Arroz, soufflé de brócolis e aquela cenoura cozida que vocês gostam."

"Por que é que ela tá marrom?"

"Porque eu usei aquelas cenouras coloridas, achando que ia ficar lindo, mas elas desbotaram e ficaram marrons." Laura fez uma careta. "Tá feio, mas o gosto é igual."

"O importante é estar gostoso, né, mamãe?"

"Exato. Agora chama teu pai, que acho que ele saiu da reunião."

As crianças levaram os pratos à pia, após a refeição. "Quem vai limpar a mesa hoje?", perguntei, ajeitando tudo nos espaços vazios da lava-louças, sentindo uma satisfação infantil ao conseguir resolver aquele quebra-cabeças de pratos, panelas e tigelas da forma mais eficiente possível. Competência. Tapinha nas costas. Um sorriso meu só para mim. Enquanto isso, Thomas já havia apanhado pano e spray e já terminava de esfregar a mesa e dobrar os guardanapos de pano. Laura deixara o ambiente sorrateiramente. "Laura, vai escovar os dentes!", exclamei, sem olhar para o quarto. "O Thomas vai primeiro!", sua voz soou do além-porta. "O Thomas limpou a mesa! Você vai primeiro!", rebati. E sua resposta veio arrastada após um som ininteligível de frustração pré-pré-pré-adolescente. "Aaaaaaaaargh! Por quêeeeeeee? Isso é tão boring...!"

Suspirei. 

"Laura, larga a mão de ser chata. Você sabe que tanto faz, dá na mesma, os dois vão ter que escovar os dentes igualzinho, e não importa quem vai primeiro."

"Se não importa, então o Thomas vai primeiro!". Sua voz soou firme e ponderada, com a cadência típica da satisfação de quem ganha uma batalha.

Argh. Respira.

"Laura, é sua RESPONSABILIDADE cuidar do seu corpo. Eu estou pedindo sua COLABORAÇÃO, para que todos possam usar o nosso único banheiro e a gente possa ter um fim de noite legal em família. Precisamos de ORGANIZAÇÃO para dar tempo de ler uma história antes de dormir. Eu continuo esperando que você tenha INICIATIVA para cumprir suas tarefas de forma INDEPENDENTE. Quando você precisa desse tipo de reminder (lembrança), quer dizer que ainda precisamos trabalhar seu SELF-REGULATION."

Silêncio. Usar os termos de avaliação da escola tem surtido efeito no último mês, ainda que me faça soar como uma palestrante de RH. Sinto-me ridícula, mas eles têm conseguido identificar mais facilmente o progresso de seu comportamento e como os professores avaliam sua conduta. Dar nomes aos bois.

Espero, olhando por cima do ombro em direção à porta aberta do quarto, como quem observa um animal selvagem que ainda não decidiu se você é comida ou apenas uma curiosidade no meio do caminho. 

"Aaaaaaargh. Tá bom", ela respondeu, saindo do quarto, não sem revirar os olhos assim que percebeu que eu a estava olhando. Ela tem oito anos. Imagino como será quando tiver dezesseis. Suspirei aliviada, e fui buscar na geladeira uma inspiração. Havia meio pote de sour cream que eu havia comprado não me lembro para o quê, e para o qual eu não tinha nenhum plano. Um bolo com sour cream. Eu tinha várias receitas de bolos que levavam sour cream. Certeza. Mas onde?

Era o repeteco infinito daquela situação que vi repetida a vida toda: você vai ao mercado e finalmente encontra aquele ingrediente exótico que você precisava para preparar uma dezena de receitas, mas quando volta pra casa com o ingrediente exótico comprado, não consegue encontrar uma única receita que o use. 

"Pronto, mamãe!", ela se aproxima, abrindo a boca para que eu verifique se o trabalho foi bem feito. "Tá ótimo, parabéns!", sorrio, dando-lhe um tapinha afetuoso na bochecha. "Vai brincar. Thomas, sua vez."

"Aaaaaaahn...", ele geme por trás do livro. 

"Não começa você também. Vai escovar os dentes e aí você pode terminar de ler. Vai."

Ele se levanta e caminha a passos propositalmente lentos e pesados, como se eu pudesse enxergar o peso imaginário da tarefa sendo carregado por seus ombros magros. Oh, the drama

"Vai logo, que senão não dá tempo de ler história, que eu ainda tenho que fazer bolo."

"Bolo do quê?", ele pára em frente à porta do banheiro. 

"Eu te conto quando você tiver escovado os dentes". 

"Aaaaaaaaaahn..."

Volto aos livros que espalhei no sofá. Não consigo encontrar nenhuma receita que queira preparar. Todas as que levavam sour cream levavam também manteiga, que eu não tinha, ou amêndoas, que eu não podia mandar para a escola. Penso em preparar meu bom e velho bolo de iogurte e substituir o iogurte pelo sour cream, mas me dá preguiça. Sinto no meio das costas e atrás das orelhas aquele comichão de vontade de algo diferente. Será? Toda vez que saio inventando coisa diferente no fim da noite, dá errado.

"Você quer um chá?", perguntou Allex, enchendo a chaleira.

"Sim, por favor", respondi, largando os livros e apanhando o celular. SOUR-CREAM-CAKE-NO-BUTTER, eu digito com o dedão na caixa de busca do Google. 

Levantei os olhos para encontrar Thomas à minha frente, corpo inclinado na minha direção, boca aberta num sorriso forçado que me faz lembrar um cavalo rindo. "Muito bom, amor", eu disse. "Agora, por favor, deem um jeito no quarto para a gente ler uma história."

"Você vai passar o Bob?", perguntou. Bob. O nome carinhoso que dei ao aspirador de pó. Ele quer saber se pode deixar o Lego no chão. 

"Não, só empurra o Lego prum canto do tapete pra ninguém tropeçar durante a noite."

"Tá bom."

"Tá aqui seu chá", Allex se inclinou para me beijar e deixar a xícara fumegante ao meu lado. "Eu preciso terminar uma apresentação para amanhã cedo, mas é coisa rápida", explicou, voltando ao computador no quarto. 

"Ok".

Ok. Encontrei uma receita. Um bolo de chocolate com laranja que usa creme de leite no lugar de manteiga. Já havia feito um destes uma vez, receita de um livro que eu não tenho mais. Perguntei-me se ainda tinha aquela receita em algum lugar, se a havia publicado no blog, mas tive preguiça de procurar. Daria certo substituir o creme de leite por aquele sour cream tão espesso? E a laranja? Eu não tinha suco de laranja. Hmmm... 

"Lauraaaa!", berrei na direção do quarto.

"Quêeeee?", ela berrou de volta. 

"Vou fazer um bolo de chocolate que eu não sei se vai dar certo. Se ficar horrível, a gente compra alguma coisa no caminho da escola amanhã, tá?"

"Tá tudo bem, mamãe!", ela disse, doce, sua cabeça aparecendo de repente do corredor, por trás da poltrona. "Se não der certo, a gente come mesmo assim."

"Tá bom, então, sua linda. Vamos ler história e dormir". 

Thomas apagou as luzes e ligou o abajur. Sentei-me na parte de baixo do beliche, a cama da Laura, e li dois capítulos de um dos livros que trouxe para eles da biblioteca. Uma história de mistério em uma noite passada no museu. O barulho não eram fantasmas: eram passarinhos, que as meninas da história conseguem libertar por uma janela do banheiro. Boa noite, boa noite. Beijinhos. Pulguinhas. Mais um abraço. Mais um. Pega água? Pego. Tá aqui. Boa noite. Boa noite, agora. Laura, pra debaixo da coberta. Thomas, pára de cantar. Laura, pára de chutar o colchão do teu irmão. Eu disse boa noite. BOA NOITE. 

Porta fechada. Ainda ouço os dois conversando, aos sussurros.

Na cozinha, junto os ingredientes. Não há laranja, mas eu tenho esse hábito de congelar a casca das laranjas quando as descasco. Elas ficam muito duras e ralam no ralador muito mais fácil, feito parmesão. E sempre que preciso de raspas de laranjas, posso apanhar uns pedaços de casca congelada para usar. Mas e o suco? Ah, dane-se. Faço um xarope de açúcar. Espera! Acho que ainda tem Cointreau. Uma dose. Ótimo. Metade xarope de açúcar, metade licor de laranja. 

A receita é muito simples. Dessas de uma tigela só. Era pra bater o creme de leite até ele começar a firmar, mas meu sour cream era tão firme que fiz o contrário: bati o creme azedo com um fouet até que ele ficasse cremoso. Coloquei a mistura na forma. A receita pedia para untar com manteiga e polvilhar com farinha de rosca. Eu não tinha farinha de rosca e minha forma é daquele metal engraçado que conduz super bem o calor mas que enferruja. Então forrei com papel-manteiga e não untei coisa nenhuma. 

Bolo no forno. Silêncio. Eu não conseguia ouvir mais a conversa das crianças no quarto nem o som dos dedos de Allex tamborilando o teclado do computador. Havia o som da minha respiração e o sibilar sutil e constante dos canos do aquecedor. Allex apareceu de repente, espreguiçando-se num sorriso de trabalho entregue. "Que cheiro bom", ele disse."Bolo de chocolate", respondi. "Mas não sei se vai dar certo". Ele me olhou sem entender. "Ah, receita nova, mudei um monte de coisa, eu tô cansada e distraída, e você sabe... 2021. Não espero nada."

Assistíamos juntos a um episódio de Lupin, enquanto o bolo crescia. Saiu do forno lindo, uniforme, brilhante, para minha surpresa. Espetei-o todo, e pincelei com a calda de açúcar e licor, enquanto Allex preparava mais um chá. "Quer ver mais um episódio? Acho que é o último."

Na última cena, já dominada pelo sono, levantei para cortar um naco do bolo e guardar o restante sob a redoma de vidro. O miolo era macio e úmido. Gosto forte de chocolate amargo e um aroma delicioso e delicado de laranja. "Gente, que bolo bom", falei de boca cheia. Allex levantou para roubar um pedaço. "Deu certo, então!"

Deu muito certo.

Escovamos os dentes falando de presepadas. Eu contando presepadas das crianças, ele contando sobre presepadas de adultos. "Você vai ler um pouco?", ele perguntou. "Não, esse livro é bom, mas eu tenho tido pesadelos quando leio ele antes de dormir", explico, colocando Educated, de Tara Westover, no criado-mudo. Chamo Allex para vir ver as crianças dormindo. Nenhuma delas está coberta. Laura chutou os lençóis para os pés e dorme em pose de bailarina. Thomas se moveu tanto que os lençóis se enrolaram em seu corpo desconjuntado, parecendo uma marionete enroscada nos próprios fios. Mas dormem tranquilos. Deixamos os dois e vamos dormir. Deixo o escuro do quarto pesar sobre mim. Minhas costas se desmancham sobre o colchão. Amanhã será um dia como foi ontem. Esta noite foi igual às outras. Mas meu bolo de chocolate deu certo. Pequenas coisas. Pequenas, minúsculas coisas. Boa noite. Um beijo. Outro.

Mais um.

....

 

BOLO DE CHOCOLATE COM CREME DE LEITE (ou SOUR CREAM)

(do livro Chocolate is Forever, de Maida Heatter, no site Epicurious)

Ingredientes:

  • 1 1/4 xic, farinha de trigo
  • 2 Colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh. (chá) sal
  • 1/2 xic. cacau em pó (sem açúcar)
  • 1 xic. açúcar
  • 1 xic, creme de leite fresco ou sour cream
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 2 ovos grandes
  • Casca ralada de uma laranja

(calda)

  • 1/3 xic. suco de laranja (ou água, se não tiver suco)
  • 3 colh.(sopa) açúcar

Preparo: 

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e aqueça o forno a 180oC. Unte e enfarinhe uma forma de bolo inglês de 20cm, ou forre-a totalmente com papel-manteiga. 
  2. Numa tigela, peneire a farinha, cacau, fermento, açúcar e sal. 
  3. Em outra tigela, bata o creme de leite, a baunilha e a casca de laranja até que o creme de leite tome corpo e firme quando você levantar o fouet. Cuidado se fizer isso com a batedeira, para não bater o creme demais, ou ele pode talhar. O sour cream que usei tinha a consistência de cream cheese, e por isso apenas bati com o fouet até ele ficar cremoso e aerado. 
  4. Junte os ovos, um a um, batendo apenas até que o ovo esteja incorporado. (De novo, se estiver usando o creme de leite, não bata demais para a mistura não talhar). Os ovos vão fazer a mistura ficar mais líquida.
  5. Use uma espátula para incorporar os ingredientes secos, apenas até que não se veja mais farinha. Transfira a mistura para a forma, espalhando de modo uniforme, e leve ao forno por 1 hora, ou até que um palito saia limpo quando inserido no centro e o bolo esteja elástico quando pressionado com o dedo. Enquanto isso, misture o suco (ou água, ou uma mistura de água e licor de laranja) e o açúcar e deixe descansar até dissolver. 
  6. Quando o bolo sair do forno, ainda na forma, fure-o todo com um palito e, com um pincel de cozinha, espalhe toda a calda sobre o bolo. Deixe que ele esfrie completamente antes de desenformar. O bolo se conserva bem por alguns dias em pote fechado e fica melhor de um dia para o outro.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Volta às aulas na câmara de descompressão - um bolo e um peixe


As crianças voltaram à escola.

A casa está com aquele silêncio familiar que relaxa meus músculos e acalma meus nervos. Eu amo a companhia de meus filhos, mas eles estão grandes e independentes demais para passarem tanto tempo confinados comigo. Eles precisam de um tempo sem minha presença, muito mais do que eu, na verdade. Talvez fosse diferente se eles fossem mais novos. Não sei. Entramos nesse apartamento quando Laura tinha 4 anos e Thomas 6. Laura fez 8 em janeiro e Thomas faz 10 em abril. Duas crianças de 8 e 10 anos correndo num apartamento de 70m2 é bem diferente de duas crianças de 4 e 6 fazendo a mesma bagunça nesse mesmo espaço. Esse espaço que temos não comporta seus corpos em expansão de energia. A casa é, cada vez mais, o local de sossego, de descanso. É preciso ter um 'lá fora". É preciso ter um "outro lugar". Coisas precisam acontecer em outro ambiente, para que a casa possa atingir seu máximo potencial de acolhimento. 

E as crianças, como eu disse, voltaram à escola. 

A manhã foi estranha, desconjuntada, como um corpo reaprendendo a andar, consciente de cada músculo, cada tendão, cada nervo, em espasmos de movimento desajeitado. Putz, eu tinha que fazer almoço. Putz, não preciso mais colocar os tablets para carregar. Putz, eu costurei a calça de neve do Thomas? Putz, cadê aquele livro da biblioteca da escola que a Laura tinha que devolver? Putz, eu não posso sair para correr, porque tenho que andar até a escola com os dois. Putz, tem máscara extra? Putz, pega uma luva extra pra se a sua encharcar. Putz, não esquece os "indoor shoes". 

Putz.

Faz -20oC lá fora, e há 30cm de neve nas calçadas. Pequena aventura. Há quem reclame, mas eu tenho amor por essas nevascas noturnas que nos acordam como se alguém tivesse derrubado um saco de açúcar sobre a cidade. Afundar o pé na neve até o joelho me dá uma satisfação infantil muito semelhante a me enfiar em uma piscina de bolinhas. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que a neve é uma piscina de bolinhas. 


 

Tentei sair para correr, mas a neve fofa no asfalto me fazia escorregar, e a noite mal dormida pesou nas pernas mas do que eu gostaria. Voltei para casa cedo, com frio, pensando que deveria ter ouvido meu coração que dizia que hoje não era dia de corrida. Contentei-me em fazer um pouco de yoga e alongamento, e saí para o mercado. 

"Você vai de carro?", perguntou Allex.

"Vou."

"Você já dirigiu na neve?"

"Nunca."

"Cuidado."

"Podexá."

Dirigir na neve requer atenção. As rodas derrapam tanto quanto meus tênis de corrida. Mesmo em velocidade baixa. Há os solavancos dos montes de neve compactados nas laterais da rua. As ruas que estão limpas ficam mais estreitas, porque parte delas é ocupada pela muralha de neve ao longo da calçada, empurrada pelos caminhões que desobstruem a rua e jogam sal. É como aquela estradinha que sai da praia  no meio do mato: com areia, pedregulhos e lama, tudo junto ao mesmo tempo, só que na cidade. 

Eu estava tão focada, e ao mesmo tempo me divertindo tanto com aquela novidade, que me senti jogando video-game. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que dirigir até o mercado é como jogar video-game. 


 

Mercado desorientado. Por algum motivo eu não tinha clareza para criar uma lista mental de refeições e ingredientes para a semana. O apetite das crianças anda irregular, assim como o de Allex, e eu não conseguia resolver o quebra-cabeça dos jantares para quatro, almoços em casa para dois com preferências diferentes (eu almoço leve, e Allex é do "comfort-food")  e almoços de escola para as crianças. Mais "snacks".Sem "nuts". 

Eu havia preparado dois bolos de banana, coco e nozes da Martha Stewart algumas semanas antes, e ainda tinha um deles congelado. Enquanto tirava o bolo do freezer para mandar de snack na primeira semana da escola, Thomas lembrou: "Mas mamãe! Tem nuts!"

Putz.

Então no dia anterior ao primeiro dia de escola, preparei, no improviso do que eu tinha, um bolo simples com frutas, para que as crianças tivessem lanche. 

E agora eu saía do mercado carregando sacolas demais. O reflexo de minha confusão mental, comprar mais comida do que precisamos na semana. 

Arruma tudo na geladeira. Almoça. 

"Eu não tenho reunião pela próxima meia hora. Quer tirar um cochilo?", pergunta Allex. 

"Por favor". 

O silêncio gostoso da casa pedia cochilo. Minha cabeça sem dormir também. Deito sob as cobertas, as costas relaxando e estalando sob a luz de inverno entrando pela janela aberta, e ouço o estalo da maçaneta. 

"Pra que você fechou a porta? As crianças não estão aqui!", disse, rindo. 

"Pois é, eu me perguntei isso também", ele riu. "Foi automático."

Meia hora de cochilo restaurador. Sonhei. Quão cansada está uma pessoa que entra em REM e sonha em trinta minutos de cochilo? 

Café. Tem isso de a gente ter colocado um timer na tomada da cafeteira, nos horários em que a gente gosta de tomar café, já que ela demora uns vinte minutos para esquentar a caldeira. Ela liga às seis da manhã e desliga às nove. Liga de novo ao meio-dia e meia, e desliga às duas. "A cafeteria está aberta!", Allex diz. 

Trabalho. O texto demora a se formar em minha mente, como se eu tentasse escrevê-lo em outra língua. Leio palavras formadas por ideogramas desconhecidos.  

"Ana! Eu fiz uma coisa importante que a gente tinha esquecido de fazer!", Allex grita do quarto. 

"O quê?"

'Coloquei um timer pra lembrar de buscar as crianças."

Putz. 

Ainda bem. Porque eu tenho disso. Quando engato no trabalho acho que duas horas passadas foram quinze minutos. Perco-me. Perco a noção. Perdi a conta de quantas vezes cheguei atrasada na escola pra buscar as crianças. Mas eles ficam tranquilos. São filhotes lindos, que sabem que a mamãe é meio cabeça-de-vento, mas transborda amor por eles.

Não cheguei atrasada. Bom. Mais ou menos. O elevador do meu prédio imenso, que só comporta duas pessoas por vez durante a pandemia, demorou horrores para aparecer. Mas o caminho até a escola havia sido limpo e alcancei as escadas do pátio mais rápido que de manhã, sem passar pela aventura da piscina de bolinhas. 

Eles me esperavam, juntos, ao lado da professora, todos mascarados. Acenei. Levantei o trenó de plástico preto, essa grande banheira com cordinha, chata de carregar com dedos gelados, para que eles vissem como eu sou uma mãe legal. Atrasada. Mas legal. 

É proibido brincar no pátio da escola depois da aula. O que não faz sentido, porque tem menos criança brincando no pátio depois da aula do que durante a aula. Mas tudo bem. Levei os dois ao parque em frente à escola, destino diário em tardes de inverno pós-escola pré-pandemia. Eu havia explicado aos dois, de manhã, como precisávamos voltar direto para a casa, sem brincar depois da aula, por conta da quarentena. Mas meu coração apertou. Há 30cm de neve fofa e divertida no parque, que a qualquer momento pode derreter e não voltar mais. Isso de estações marcadas faz a gente ver o tempo diferente. Não é um ano que passa. Não foi um ano de quarentena. Esse é o único inverno dos meus filhos com 8 e 10 anos. No próximo, vai saber, talvez Thomas não veja mais graça em brincar na neve. Talvez ele tenha crescido. Não vai ter outro inverno, outro dia de 30cm de neve no fevereiro que ele tem 10 anos e ainda gosta de brincar com o trenó. 

Por isso levei os dois ao parque. 

"Brinquem com as crianças da sua sala, por favor", recomendei. "E fiquem de máscara."

Havia menos gente ali do que eu esperava. O dia estava cinzento e sem graça, e os -20oC se tornaram -10oC, o que é mais confortável, mas ainda espanta muitos pais. Era possível brincar sem aglomerar. Era possível me manter distante de todos os outros adultos. Thomas correu para construir um iglu com uns amigos que carregavam pás de neve. Laura achou uns meninos da sua sala com quem ficou brincando de construir tijolos de gelo que eles quebravam com galhos. Eu fiquei ali, mãos nos bolsos, trenó aos meus pés, suspirando de alívio em ver duas carinhas contentes de quem teve um dia mais normal, de quem passou tempo com os amigos, de quem teve aula olhando para a professora sem um fundo de tela com uma praia do Caribe. 

"Eu tô no Big Hill!", avisei às crianças, puxando a cordinha do trenó atrás de mim e andando pela neve fofa em direção à grande ladeira que separa a parte alta e a parte baixa do parque. Ali, onde tem uma placa altamente ignorável em que se lê "proibido descer de trenó". Lá em cima, desviei de três crianças e dois adultos, posicionei o trenó num trajeto que imaginei ter menos buracos, e sentei minha bunda de quarenta anos no plástico já coberto de flocos de gelo. Inspirei. Expirei. Empurrei o chão. É como montanha-russa. O ar frio veio por entre meus pés, atingindo meu rosto. A parte da frente do trenó abria caminho pela neve, levantando, como água, cristais brancos e leves em ondas nas laterais do meu corpo. Gosto do jeito como o estômago se move dentro de mim na queda, abrindo um espaço vazio no meu tórax que se preenche de alegria. Deixei que o trenó desacelerasse sozinho, derrapando de um lado e do outro, até cansar no meio do descampado. Espere que o carro pare completamente antes de desafivelar os cintos de segurança. Ao sair, por favor verifiquem se não deixaram nenhum pertence para trás. Levanto. Minhas calças estão polvilhadas de branco até as coxas, por baixo do casaco comprido. Tiro a neve das roupas com batidas leves, no ritmo do coração. 

Subo de novo. Desço de novo.

De novo. De novo.

De novo. Última. 

Os dias estavam tão iguais. Me deixa brincar de trenó.  



As crianças me acompanham na rua a passos cansados, arrastados. Tiram botas molhadas, penduram casacos, colocam as luvas encharcadas para secar em cima do aquecedor. Desmontam lancheiras sem eu precisar pedir. Tomam banho e leem os livros da escola. Sento para ajudar Laura com a pronúncia. Communities. Expectations. Empathy. Empathy is when you notice other people's feelings and try to understand them. São cinco horas e Allex ainda trabalha. Coloco uma música. Há dois momentos do dia em que gosto de colocar uma música. No café da manhã, para agitar. No fim do dia, para acalmar. O App de música criou uma lista especial para mim: as músicas que eu mais ouvi em 2020. Play. Metade dela era Frozen 2, metade Moana. Tinha um Nick Cave e um Icona Pop perdidos no meio. Curioso.

Preparo o jantar. Into the unknooooooooown... Into the unknoooooown... Um risoto com tomates e ervilhas, em que uso um caldo de camarões que fiz umas semanas antes, com as cascas dos camarões que cozinhei. Eu não quis comprar mais camarões para o risotto,pois eles viriam de novo com cascas, e eu quereria fazer caldo de novo, e viraria o ciclo infinito do risotto do caldo de camarão. Mas àquela manhã, pela primeira vez na vida, as vieiras estavam em promoção no mercado. Vieiras fresquinhas. Porque aqui tem disso: quando a comida está perto do vencimento, principalmente carnes e laticínios, os mercados colocam uma etiqueta avisando que o produto tem que ser consumido hoje ou amanhã, e que por isso está com 30, 50 ou até 70% de desconto. Acho isso muito honesto. Comprei duas bandejinhas de vieiras pelo preço de uma. 50% off. Enjoy tonight! Podexá. 

Dourei as vieiras na manteiga e servi sobre o risotto. Laura adorou. Thomas achou curioso. Mas gostou mais quando eu mostrei, no Wikipedia, como era uma vieira viva, dentro de sua concha. Onde ficava sua boca, seu intestino, o modo como ela nada abrindo e fechando a concha, expulsando ar de si mesma feito um fole. Você sabia que as vieiras tem diversos olhos? Eles ficam ao longo das beiradas das conchas, entre os filamentos que elas usam para apanhar comida. Quando a luz bate neles, eles brilham feito bolinhas azuis,. Parece uma nave espacial. 

As crianças cogitaram se a vieira seria capaz de ver vários filmes ao mesmo tempo.

Escova dentes. Desenha um pouco. Senta do lado do pai no sofá. Conversa sobre o dia. O que teve de bom? O que pode melhorar? 

Boa noite. Boa noite. Beijinhos. Mais um abraço. Me dá água? Allex coloca as coisas na lava-louças. Santa lava-louças, que eu sempre achei que fosse bobagem. Me lembra de só morar em casa com lava-louças. Sento na poltrona amarela com um chá. Já é noite faz tempo. Gosto de luz amarela de abajur. A sala tem quatro abajures. Eu nunca acendo a luz do teto. Como foi seu dia? Você viu a notícia? Olha esse meme. Achei que você fosse gostar. Amo você. Eu também. 

Os dias andavam tão iguais. As crianças voltaram à escola. Amanhã vou escrever um post no blog. Faz tempo que não consigo me concentrar nisso. Vou falar do peixe no forno que eu fiz e ficou uma delícia. Só precisa de menos alho. Vou falar do bolo de fruta que preparei para o primeiro dia das crianças.Vou falar de como foi um dia bom, muito bom, o primeiro dia de aula, ainda que tenha sido de alguma forma enevoado e confuso, como uma câmara de descompressão. 

Vai ficar tudo bem. 

....

 

O Bolo

Um bolo simples, muito simples. Adaptável. Pouco doce. Desses bons para o café da manhã ou bons pra mandar de lanche, quando você não pretende que seus filhos comam tanto açúcar no recreio que pirem e despenquem durante a aula de geometria. Bolo bom de fazer na mão. Mas pode fazer na batedeira. Era pra usar buttermilk, usei iogurte. Buttermilk deixa a massa mais molinha. Meu iogurte é mais consistente, gordinho, e deixou a massa com cara daqueles bolos italianos de massa compacta. Eu gosto. Mas você pode substituir uma parte do iogurte por leite, se quiser. Ou usar buttermilk. Também era para ser só de mirtilos. Mas eu tinha 3/4 xic. de um mix de frutas congeladas: mirtilo, cereja e amora preta. Achei que era pouco e piquei uma maça com casca junto. Ficou ótimo. Moral da história: use a fruta que quiser. Mas as que soltam caldinho ficam mais gostosas. Também era para ser numa forma de 12x8 polegadas. Me deu até coceira de preguiça de calcular isso. Usei uma forma quadrada de 9x9 polegadas (22-23cm). Dá pra usar forma redonda. Dá pra usar uma forma retangular, desde que não muito maior que isso. Ela pedia para untar e enfarinhar. Fui teimosa, porque achei que seria chatinho desenformar depois, e forrei tudo com papel-manteiga. Acabou que demorou bem mais pra assar. Não forre com papel-manteiga. No máximo, use um papel-manteiga untado em baixo, pra desenformar fácil. Ou use uma forma de fundo removível. Enfim. Falei que era um bolo de improviso.


BOLO DE IOGURTE E FRUTAS 

(adaptado do livro Apples for Jam, da Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 2 1/2 xic, farinha de trigo
  • 1 colh (sopa) fermento químico em pó
  • 1/2 xic. de açúcar
  • Noz moscada ralada na hora
  • 2 ovos grandes
  • 1 xic. iogurte natural
  • 4 colh. (sopa) manteiga, derretida
  • 1 colh (chá) casca ralada de um limão
  • 1 xic. frutas vermelhas ou outra de sua escolha, picada
  • 2 1/2 colh. (sopa) açúcar para polvilhar

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 205oC. Unte e enfarinhe uma forma quadrada de 22cm (ou qualquer outra de mesmo volume). Se quiser, forre o fundo com papel manteiga untado, para ajudar a desenformar. 
  2. Numa tigela, misture a farinha, fermento e uma ralada generosa de noz moscada. 
  3. Em outra tigela, bata com um fouet os ovos e o açúcar até que fique claro e fofo.
  4. Junte aos ovos o iogurte, a manteiga e a casca de limão, e misture bem. 
  5. Junte a farinha em três adições, misturando com uma espátula, apenas até que não se veja mais farinha.Não misture demais, ou o bolo ficara maçudo. 
  6. Espalhe colheradas da massa na forma (a massa é mais firme, como de muffin), e, com a ajuda de uma espátula, tente tornar uniforme. Espalhe as frutas por cima e polvilhe com o açúcar. 
  7. Leve ao forno por 25 minutos, ou até que um palito saia limpo quando espetado no centro. O bolo não necessariamente vai ficar muito dourado. A foto do livro mostrava o bolo super dourado, e eu acabei deixando bem mais tempo no forno, sem necessidade. Coisas de mente atrapalhada com o primeiro dia de aula. Deixe no forno apenas até o palito sair limpo. 
  8. Deixe que esfrie completamente antes de cortar em quadrados. O bolo se mantém bem por alguns dias em pote fechado. 

O Peixe. 

Um jeito muito fácil de fazer peixe. Assado, com ervas. Usei haddock fresco, que é peixe fácil de se encontrar aqui. Mas acho que pescada amarela, linguado, ou qualquer outro peixe branco mais alto e mais firme ficaria bom. Você pode usar as ervas que quiser, na verdade, na combinação que mais gostar. Eu só não picaria o alho, que ficou muito forte. Faria lâminas, fáceis de remover de cima do peixe na hora de comer. Ou deixaria ele em metades, apenas para aromatizar. Servi com brócolis cozidos e batatas-doces assadas nesse dia.

 

 

PEIXE BRANCO ASSADO COM ERVAS

(do livro Twelve, de Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 6 filés de peixe branco, sem pele, de cerca de 150-200g cada
  • Cerca de 30g de farinha de trigo
  • 3 colh. (sopa) azeite
  • 125ml (1/2 xic) vinho branco
  • 60ml água
  • 2 dentes de alho, fatiados ou cortados na metade 
  • 1 colh. (sopa) de cada uma destas erva, picadas; alecrim, sálvia, salsinha, tomilho e hortelã
  • 30g manteiga

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 220oC. 
  2. Corte os filés na metade, para facilitar. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Passe os filés na farinha de trigo, chacoalhando pra tirar o excesso.
  3. Coloque o azeite numa travessa de forno ou panela que comporte todos os filés numa camada só, e coloque ali os filés de peixe enfarinhados. Regue com o vinho e a água. Espalhe o alho e as ervas por cima. Divida  manteiga em pedacinhos pequenos e coloque sobre os filés. 
  4. Leve ao forno já aquecido e asse por cerca de 20 minutos. O peixe deve estar opaco, branco e macio, com um pouco de molho borbulhando em volta. Sirva quente.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

A escola subiu no telhado. Mais biscotti e amaretti.

O ano 2021 começou com aquela cara de que 2020 esqueceu de acabar. É aquele filme chato da Sessão da Tarde que repete sempre e você não entende como é que alguém continua escolhendo essa porcaria pra passar de novo e de novo. Aí eu me pego pensando como meus filhos, geração Netflix, jamais entenderão essa referência. Mas a vida segue. Chatice por chatice, os dias passam.

Quando a escola online voltou, confesso, sem vergonha nenhuma, que surtei na batatinha. Com marido na masmorra-office, esse trabalho de escritório acorrentado a reuniões sem fim na escrivaninha do nosso quarto a portas fechadas, sobrou para mim e meu "horário flexível" gerenciar a educação da pimpolhada.

Na primeira quarentena (e quanto escrevo "primeira", tenho um pensamento lúgubre da ordem de grandeza das quarentenas pelas quais ainda vamos passar), acabei pegando o jeito de manejar as atividades da escola com alguma leveza. As crianças não eram obrigadas a entrar em reuniões e podiam fazer suas lições (que eram poucas), nos horários que lhes conviessem. Foi a rigidez da escola, desta vez, que me pegou no pulo. Porque se tem uma coisa que eu aprendi que me tira do sério rapidinho é rotina rígida.

Sim, que alegria descobrir isso agora. Vontade de apanhar uma máquina do tempo e avisar à mulher que eu fui dos trinta aos quarenta anos que tudo aquilo que eu complicava era fácil de resolver. 

Descobri que as crianças teriam de participar da escola online nos mesmos moldes do que anda acontecendo desde março na escola brasileira. Ou seja, teriam de passar o dia em frente à tela do computador, das 8:45 às 3:25, com pequenas pausas para o lanche. À parte o absurdo de manter uma criança por tanto tempo em frente a uma tela, como se fosse um plano malvado para acostumá-la rápido ao cubículo que a aguarda em sua futura vida profissional, meu surto foi provocado pelo fato de não termos computadores o bastante na casa para que as crianças se mantivessem online simultaneamente.

A primeira semana foi, portanto, um imenso exercício de gerenciamento. Meu laptop foi dominado por meus filhos. Eu entrava no Google Classroom de ambos de manhã cedo, e decidia que aulas eram mais importantes para cada um, quais poderiam ser perdidas sem prejuízo, e passava meu dia brincando de dança das cadeiras com os dois, enquanto tentava me comunicar com as professoras para explicar suas ausências intermitentes, resolvia problemas de TI, ensinava Laura a usar o computador de forma independente, impedia que Thomas começasse a desenhar no meio da explicação da lição, fazia almoço e jantar, lavava roupa, e tentava planejar o lançamento do meu livro, escrevia textos para o blog pelo celular, e pensava no aniversário da Laura que estava chegando. Quando finalmente o horário da escola terminava, eu precisava sentar com cada um deles para ajudá-los a terminar as atividades da escola que tinham prazo de entrega.

Delícia. Mas era só por uma semana, disse o governo. Eu aguento uma semana. 

Só que não foi. Um dia antes da escola reabrir, veio a notícia de que a quarentena se estenderia por mais quinze dias. Naquele mesmo dia, meu pé voltara a doer depois de um treino de corrida. E a perspectiva de minha fascite plantar retornar, unida à constatação da permanência da escola online, fez com que eu sentasse à noite na minha poltrona amarela e chorasse com tanta força, que não achei que conseguiria parar.

Allex então resolveu trabalhar na sala, usando o minúsculo e defasado laptop da empresa, e montou nossa câmera fotográfica num tripé ao lado do desktop para servir de webcam, de modo que Thomas pudesse participar o dia todo de sua aula no meu quarto, enquanto Laura usava meu laptop na minha escrivaninha. Nesses dias, eu tive de apanhar meu celular e tentar trabalhar sentada na cama do beliche das crianças, pois o quarto delas era o único aposento (fora o banheiro) que não soava como uma central telefônica de um escritório dos anos 50. 

Para apaziguar os nervos e a ansiedade por ter trabalho para fazer e nenhum laptop para usar, enfiei-me na cozinha como não fazia desde que saí do Brasil. Pão, bolo, torta, biscoito.Pão, bolo, torta, biscoito. Biscoito, biscoito, biscoito. Biscotti integral e amaretti que adoçaram os lanches das crianças e o espresso dos adultos. O "stress cooking" aos poucos virou uma cozinha relaxada, e, pelo menos por um tempo, o método funcionou.


Tudo bem, tudo bem, eu dizia. São só mais duas semanas, eu  aguento. As férias que queria ter tido no fm de ano e que não tive por conta do lançamento do livro, poderia ter agora. Passaria meus dias lendo na minha poltrona e cozinhando, ficando à disposição da pimpolhada, e tudo correria bem. Em quinze dias eu voltaria a trabalhar, sem problemas.

Comecei a notar uma conexão entre meu nível de estresse e a dor no pé. Nos dias em que aceitei as coisas como eram, e tentei relaxar, curiosamente, corri 5km por dia sem uma única dor no calcanhar.

Tudo ia bem.

Até descobrir que as crianças haviam passado um dia inteiro vendo desenhos nos computadores, ao invés de participarem das aulas que estavam deslocando e dificultando tanto meu trabalho quanto o de Allex.

Voltamos tudo para o lugar. Allex voltou à masmorra, e as crianças retornaram à sala. Combinei com os professores que Thomas estaria presente de manhã, e Laura à tarde, e um brincaria enquanto o outro estudava, e depois eu sentaria para ajudá-los com as lições. Percebemos que os dois andavam com dificuldades em algumas matérias, e que sua dificuldade tinha mais a ver com resiliência e paciência do que entendimento. Era uma mera questão de repetir um pouco alguns exercícios até criar confiança. Quando fomos sentar para ajudá-los, nos demos conta de que eles não tinham nenhum material de referência onde pudessem revisar as teorias. Toda  matéria é dada oralmente pela professora e todos os exercícios são fotocópias de apostilas anexadas à pasta individual de cada aluno. 

Eu, que sou a louca dos livros de referência e fico comprando para os dois livros sobre botânica, evolução e espaço, fiquei chocada ao me dar conta de que as criança não tinham como estudar de forma independente o que aprendiam na escola. 

Em tempo:eu me importo muito pouco se eles tiram 5 ou 10 na escola. O que me importa é que eles, confrontados com uma questão, saibam pesquisar e resolver seus problemas de forma independente. Saber aprender e saber estudar, ou seja, "juntar lé com cré", é a habilidade que eu quero que eles levem para a vida. E não um monte de informação decorada para passar de ano. 

Além disso, os dois morrem de preguiça de escrever (casa de ferreiro), e passar quinze minutos catando milho num teclado para produzir uma única frase não estava ajudando em nada. O que eles precisavam praticar precisava sem feito com lápis e papel.

Assim, compramos livros de Kumon com o conteúdo canadense de segunda e quarta série para que eles praticassem escrita e resolução de problemas. Mas Ana! Já tem tanta coisa na escola! Tem nada. Em três semanas, eles não fizeram uma única redação. A aula tem se resumido a assistir videos de you-tube e resolver problemas em aplicativos. Mas a maior parte do tempo é usada para esperar todas as trinta crianças resolverem problemas técnicos. 

Meus filhos reclamam o tempo todo que tudo o que se faz em aula é conversar, e eles mesmos já perceberam que seus dias estão passando e seu tempo não está sendo bem aproveitado.

Livros comprados. Enquanto um participava da escola online, o outro fazia alguma lição de redação, multiplicação ou problemas com palavras (compreensão de texto). Menos tempo em tela, mais tempo de fato usando o cérebro e criando coordenação motora fina. Eu continuava sem conseguir trabalhar direito, mas ao menos os dias começaram a ficar mais calmos em torno da escola e as crianças mostraram progresso rápido com suas dificuldades iniciais. 

Veio o lançamento do livro, que não foi meu sonhado evento numa livraria, mas foi um papo gostoso numa live de Instagram. Tempos estranhos. Agora preciso sentar e assinar aqueles autógrafos e dedicatórias e enviar tudo antes que o governo suspenda o correio para o Brasil outra vez. Se é que já não suspendeu.


Passado o lançamento, senti um alívio de missão cumprida, e continuei usando a cozinha e a leitura como meios de manter a cabeça em ordem e ter paciência com todos os pequenos perrengues da escola online. Laura havia pedido, para seu aniversário, um bolo de chocolate com menta, que ela mesma decoraria, e beijinhos de coco, que ela prefere a brigadeiros, apesar de detestar coco em qualquer outra forma. "De café da manhã eu quero waffles, de almoço, hambúrguer, e de jantar, banquete", disse ela, e usei meus dias para organizar a bagunça toda. "Banquete"' é como ela chama, desde pequerrucha, uma mesa cheia de acepipes diferentes. 

 

Ela preparou sozinha seu bolo de chocolate, aquele já super batido da Alice Medrich, e me ajudou a fazer a cobertura: o vanilla buttercream do mesmo livro da Alice, mas cuja baunilha eu troquei por extrato natural de menta. Ficou exultante quando encontrei corante natural à base de plantas e eu ri dos seus pulos de alegria ao ver a cobertura se tornando verde. Vi minha menina gigante de 8 anos escrevendo o próprio nome no bolo com um sorriso daquele tão largo, que faz chorar.   

Foi um aniversário em casa, isolado do resto do mundo, com balões e coroa de rainha, com competições de tiro com o arco e flecha que ela ganhou de presente, e um filme em família que ela escolheu. Ela foi dormir feliz e exausta, dizendo como seu aniversário havia sido perfeito. E me dei conta da sorte que tenho, de poder ver meus filhos felizes no meio do desastre mundial que estão sendo esses tempos.

Então o governo, que é fã daquela piada velha do gato que subiu no telhado, resolveu estender o fechamento das escolas em mais um tanto. E a gente, que não é bobo nem nada, entendeu rápido que 2021 pode ser reprise de 2020 e resolveu criar soluções mais permanentes. Apesar de termos evitado isso até hoje com furor, compramos dois tablets para que eles possam participar das aulas de forma independente mas simultânea, e organizar seu tempo para fazer os trabalhos da escola e os livros de exercícios. E essa é a primeira vez no ano em que estou sentada na sala, em horário comercial, escrevendo. 

Os dias passam. Durante aquele surto na primeira semana de escola, ouvi minha boca dizer, em tom de autocomiseração: "Eu quero minha vida de volta!". Ao que Allex me olhou, sério mas sem julgamento, e disse: "Essa É sua vida."

Scataplaft!

Os dias passam. Depois daquele choro, decidi que não me deixaria irritar, como quem decide não comer glúten. Decidi que aceitaria as coisas como são. E que dentro das circunstâncias, tentaria relaxar e me divertir. Decidi que não lutaria mais contra esse momento inevitável de dar uma tela na mão de cada criança. 

Eles acertam o timmer do fogão para tocar feito sino da escola, e eu saio para correr depois do café. Quando volto, cansada mas sem dor, estão cada um de um lado da mesa de jantar, com seus tablets e fones, ouvindo os professores e fazendo suas lições. Tomo um banho sem pressa, dou um beijo no marido na masmorra-office, e, com uma xícara de chá, abro meu laptop e me junto ao silêncio do trabalho dos meus filhos. 

"Quando vocês terminarem, vamos ao parque brincar um pouco", eu digo.

Os dias passam.Tranquilos.

....


BISCOTTI INTEGRAL DE AMÊNDOAS

(do livro  Chooey Gooey Crispy Crunchy, da Alice Medrich)

Rendimento: 25 a 30 biscotti

Ingredientes:

  • 2 xic. (250g) farinha de trigo integral
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 2/3xic açúcar mascavo apertado na xícara
  • 1/4 xic. óleo vegetal (usei azeite de oliva) ou 4 colh. (sopa) manteiga, derretida
  • 2 ovos grandes
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 1 xic. amêndoas com pele, picadas grosseiramente

Preparo:

  1. Preaqueça o forno a 160oC. Posicione a grade no meio do forno. Reserve uma assadeira grande,forrada de papel-manteiga ou untada.
  2. Misture a farinha e o bicarbonato numa tigela e reserve. 
  3. Na tigela da batedeira, bata o açúcar, óleo (ou manteiga), ovos, sal e baunilha, por 2 ou 3 minutos, até que esteja espesso e claro.
  4. Junte a farinha e as amêndoas, e misture com uma espátula até que a farinha fique toda umedecida. A massa deve ser consistente e grudenta. 
  5. Com a ajuda de uma espátula, passe a massa para a assadeira preparada e espalhe, formando um retângulo grosseiro de mais ou menos 12x45cm. 
  6. Asse por 30-35 minutos, até que a massa tenha inflado e esteja firme, mas elástica ao ser tocada com a ponta do dedo. Gire a assadeira no meio do cozimento.
  7. Deixe a asssadeira com a massa esfriar por quinze minutos sobre uma grade. Deixe o forno ligado, mas abaixe para 150oC. 
  8. Transfira a massa para uma tábua de corte e, com uma faca serrilhada, corte a massa na largura em fatias de 1cm. 
  9. Transfira as fatias para a assadeira, agora sem papel-manteiga, deixando ao menos 1cm entre elas. Use duas assadeiras, se necessário, movendo as grades do forno para a parte superior e inferior. Nesse caso, troque as assadeiras de lugar no meio do cozimento. Asse por 20-25 minutos, ou até que as beiradas do biscoito fiquem douradas. 
  10. Deixe a assadeira com os biscoitos esfriando sobre uma grade. Deixe que esfriem completamente antes de guardar os biscoitos, mas guarde-os assim que esfriarem, num pote hermético,para que não percam a crocância. 

Observação: se seu forno não for elétrico, ou ele não mantiver temperaturas abaixo de 180oC (o meu do Brasil não assava nada abaixo dessa temperatura), fique atento ao tempo e cozimento, que será menor nas duas fases. Na segunda fase, você pode segurar a porta do forno entreaberta com uma colher de madeira, para que a temperatura fique mais baixa.

...

 

AMARETTI

(do livro  Chooey Gooey Crispy Crunchy, da Alice Medrich)

Rendimento: cerca de 90 amaretti (mas eles duram para sempre num pote fechado)

Ingredientes:

  • 1 3/4 xic. amêndoas sem pele
  • 2 xic.açúcar (usei o cristal orgânico) + 1/2 xíc. para usar num segundo momento
  • 1/2 xic. claras de ovo (de cerca de 4 ovos), em temperatura ambiente
  • 1/4 colh (chá) cremor tártaro (cremor tártaro é um ácido em pó, que, nesse caso, é usado para estabilizar as claras. Você pode substituir por 1 colh(chá) de suco de limão ou vinagre. Eu usei limão).
  • 2 colh. (chá) de extrato NATURAL de amêndoas (se você usar essência artificial, use metade)

Preparo:

  1. Preaqueça o forno a 150oC. (Se seu forno não mantém temperatura abaixo de 180oC, deixe a porta entreaberta com a ajuda de uma colher de pau, que era como minha avó fazia suspiro.) Posicione as grades nas partes superior e inferior do forno. Forre duas assadeiras grandes com papel-manteiga.
  2. Junte as amêndoas e a primeira quantidade de açúcar num processador. Pulse várias vezes, até que estejam finamente moídas, como uma farinha, mas com cuidado para não transformar numa pasta. (Se você mesmo tiver branqueado as amêndoas para tirar a pele, tenha certeza de que elas estão BEM secas antes de usar. Caso você não tenha um processador, use 225g de farinha de amêndoas comprada pronta. Mas talvez o sabor não seja tão intenso.)
  3. Numa tigela separada, bata, com um fouet ou batedeira, as claras de ovo e o cremor tártaro (ou limão) até que picos suaves se formem quando o batedor for levantado. 
  4. Junte o extrato de amêndoas, e continue a bater, acrescentando aos poucos aquela 1/2 xic de açúcar separado, até que as claras fiquem bem fofas, firmes e comecem a perder o brilho. 
  5. Derrame a mistura de amêndoas sobre as claras, e incorpore rápida mas delicadamente com uma espátula, puxando de baixo para cima e girando a tigela. 
  6. Passe a mistura para um saco de confeitar com bico de 1cm, ou faça como eu fiz: coloque um ziplock dentro de uma jarra, com uma das pontas inferiores para baixo. Abra as beiradas do ziplock por cima das beiradas da jarra, como quem coloca um saco plástico no lixo da cozinha. Usa uma espátula para transferir toda a massa para o ziplock, acomodando a massa até a ponta no fundo da jarra. Então desdobre as beiradas, dê uns chacoalhões para que a massa desça toda para o fundo, e torça a parte de cima do saco, até que a massa esteja bem apertadinha em direção à ponta do saco. Agora pegue uma tesoura e corte a pontinha do saco. Um corte pequeninnho.Faça montinhos de massa de cerca de 2cm de altura, deixando os montinhos uns 2,5cm de distância um do outro. Caso você não queira usar o método do ziplock, use uma colher para transferir montinhos de 15ml (1 colh. sopa) mantendo a distância de 2,5cm entre eles. Enquanto as primeiras duas assadeiras estiverem assando, vá fazendo mais montinhos em outras folhas de papel-manteiga. Na hora de assá-los, apenas puxe o papel para que escorrreguem para cima da assadeira vazia. Se os montinhos tiverem biquinhos, molhe a ponta do dedo e alise-os, para que fiquem mais arredondados. 
  7. Asse os amaretti por 30 a 35 minutos, até que os biscoitos estejam ligeiramente dourados, como um suspiro que ficou tempo demais no forno. Para que assem por igual, troque a posição das assadeiras no meio do cozimento. Deixe as assadeiras com os biscoitos sobre grades para que esfriem antes de guardá-los. Repita o processo com o restante dos biscoitos. Se guardados em potes herméticos, os amaretti duram várias semanas.


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Biscoitos do dia seguinte


Eu sabia que estava nevando, porque a noite lá fora, através da janela de persianas abertas, ao invés de negra e densa, era cor de laranja esmaecida, esfumaçada na massa de nuvens encobrindo o céu. Um jogo duplo de espelhos: o tapete uniforme de neve branca sobre a cidade refletindo no céu as lâmpadas halógenas das ruas e dos parques, tornando a madrugada estranhamente iluminada. 

Fiquei deitada por um tempo, olhando os flocos de gelo dançando no vento, até aquele momento em que a gente não sabe mais se está dormindo ou não, o instante inefável em que se abre mão do controle e a consciência é abandonada ao sonho, leve e frágil como aqueles flocos de neve.

Na manhã seguinte, Toronto tinha uma cobertura de açúcar de confeiteiro e merengue, escondendo as cores de outras estações, numa monocromia súbita, que me fazia pensar em filmes de diretores suecos. Aquela massa de nuvens que havia sido laranja-salmonada como vestido de casamento de sogra, agora era de um cinza sem contornos e definições, que me fazia pensar nos enfeites de Natal delicados, fechados durante todo o ano numa caixinha, cobertos com uma manta protetora de algodão.

Abre tampa do céu, por favor, que eu quero ver luz.

"Posso 'ter' um biscoito, mamãe?", perguntou Thomas, já com a redoma de vidro na mão de dedos cada vez mais longos, expondo os biscoitos finos e redondos, grandes como pires, assados dois dias antes. 

"Sim, claro", respondi, apanhando meu café e preparando um pão torrado com manteiga e geleia."Que bom que pelo menos você gostou deles", continuei, sem querer disfarçar o amargor que não vinha do café.

"Você não gostou?", perguntou Allex. Minha resposta foi uma careta e um som que soou como o abrir rápido de uma porta enguiçada.

Havia assado aqueles biscoitos num afã culinário repentino. Saí para comprar chocolate para os biscoitos de avelãs e chocolate daquela revistinha da Martha Stewart, só para chegar em casa, abrir a revista, e descobrir que os biscoitos não levavam chocolate, mas café. Insisti mesmo assim e os preparei sem dificuldades. Chequei a receita uma segunda vez ao ver os montinhos de massa se espalhando feito lava na assadeira. Os biscoitos eram finos mas imensos, maiores que a palma de minha mão. Quando provei deles e me deparei com aquele gosto forte de café amargo, que encobria totalmente o sabor das avelãs, meu coração afundou. Duas xícaras de avelãs desperdiçadas num biscoito desagradável.

Guardei-os sob a boleira de vidro, consciente de que meus lábios tinham aquele mesmo formato da redoma, tensos em um desgosto frívolo, e comecei a pensar se eu poderia utilizar parte deles dentro de um sorvete de baunilha. Talvez a doçura do sorvete amenizasse o amargo do café.

Mas eu estava sem vontade de fazer sorvete.

Eu estava sem vontades.

Naquele dia cinza e nevado, Thomas comeu uma meia dúzia de biscoitos ao longo do dia, e eu me perguntava se ele realmente gostara deles ou se seu corpo se conformava em comer qualquer coisa, desde que tivesse açúcar. "Não coma demais, Thomas, que a última coisa de que preciso é uma versão sua cheia de cafeína", censurei, revirando os olhos.

Café tomado, calcei os tênis de corrida e luvas finas, e saí para aquele mundo branco e cinza lá fora, na tentativa de correr fora minhas tensões. Mas o ar do inverno era seco e duro feito um cenho franzido por rancores. Não havia nenhum animal no parque, os esquilos e pássaros que anuviam meu mau humor, e o silêncio à minha volta novamente me fez pensar em algodão, mas nos ouvidos. 

Voltei para casa carregando a mesma ansiedade que levara para passear. 

Passei meu dia como um fantasma em minha própria casa, deslocada e desencaixada, desconfortável e desconcentrada, vagando, num estado de suspensão de alma, no purgatório das minhas incertezas. Um daqueles dias em que a TV não tem imagens, os livros não têm letras, as conversas não tem nexo, e o tempo parece estagnado e quieto, exatamente como aquele inverno lá fora. 

Um dia em que o som da sua própria respiração é muito alto e seus pensamentos se arrastam como as correntes dos fantasmas dos castelos.

"Quero um doce", sussurrei para mim mesma,a e fechando portas de armários e geladeiras, provocando no mesmo ambiente os movimentos erráticos que aconteciam dentro de mim. Mas minha casa tem essa particularidade: raramente se encontra um doce se eu mesma não o tiver feito. Às vezes há um chocolate perdido, mas a verdade é que eu não sou muito de chocolate. E a verdade da verdade mesmo, é que quando a gente busca um doce pra acalmar o peito, nenhum doce nunca é aquele que a gente procura. Nada tangível consegue preencher buracos intangíveis.

Olhei a enorme pilha de biscoitos sob a redoma de vidro, e suspirei. Era o meu corpo aceitando qualquer coisa em forma de açúcar, agora. Ergui o vidro pesado com três dedos e apanhei um biscoito redondo e grande, borbulhado de avelãs. Coloquei-o sobre um prato de sobremesa, munida de desejos da civilização e ordem ausentes dentro de mim, e levei para a mesa da sala, para acompanhar a xicarazinha de espresso que eu havia preparado. Ri internamente, e aquele riso formou um sorriso relaxado no meu rosto, e  a ansiedade se dissolveu um pouco. Apanhei a revistinha da receita novamente, olhando a fotografia que mostrava biscoitos pequenos ao lado de uma xicara de vidro repleta de café. Claro, era um café americano. Que erro de principiante fora o meu de achar que aquela xícara da foto era do tamanho de um espresso. Claro que os biscoitos eram gigantes! Aquilo na foto ao lado dos biscoitos não era uma xicarazinha, era uma enorme caneca. Proporções e referências. 

Dei uma bicada no café quente e mordi o biscoito, esperando aquele amargo desproporcional de novo. Mas ele não veio. O sabor era forte de avelãs e algo muito agradável de caramelo. Ele era crocante à mordida e derretia deliciosamente  na boca.  

Curioso.

Apanhei um copo d'água, para tirar da língua o gosto do espresso forte, que talvez estivesse encobrindo o amargor que eu sentira uns dias antes.

Hmm.

De alguma forma, o sabores haviam se entrosado melhor de um dia para o outro, e um biscoito que eu havia considerado desagradável agora estava delicioso. 

Comi mais um. 

Olhei para aquela enorme pilha de biscoitos sobre a boleira e suspirei, desta vez aliviada. Os biscoitos eram bons. Eu não precisava pensar no que fazer com eles nem me punir mentalmente por pensar em jogá-los fora. Talvez até mesmo os preparasse novamente.

Era um problema minúsculo, mas um problema minúsculo resolvido. Um pensamento a menos para arrastar pelo chão do castelo, uma ansiedade a menos para levar para passear no parque.

Deixei que aquele biscoito dourado me trouxesse paz e felicidade. Só um pouquinho. Através da janela, avistei um grupo de gaivotas voando alto em direção ao lago. Vida e movimento na monotonia depressiva do céu.

...

Olhando direito para o biscoito, acho que ele deveria ter espalhado menos e ficado não tão fino. A massa estava mais úmida, de fato, do que massas de cookie costumam ser. Culpa de medidas em volume, sempre tão pouco precisas. Na dúvida, 2 xic de farinha devem ser 250g. Se achar que a massa estiver excessivamente grudenta e molenga, junte mais uma colher ou duas de farinha até que a massa esteja mais fácil de tirar da colher. Ou asse como está, para ter biscoitos finos e crocantes.

BISCOITO de AVELÃ e CAFÉ

(Da Martha Stewart)

Faz 36 biscoitos grandes

Ingredientes:

  • 2xic farinha de trigo
  • 1 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1 colh (chá) sal
  • 230g manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic açúcar
  • 1/2 xic açúcar mascavo
  • 2 ovos grandes
  • 3 colh (sopa) café em pó instantâneo (usei Nescafé)
  • 2 xic de avelãs, sem casca, torradas e picadas grosseiramente

Preparo:

  1. Preaqueça o forno a 190oC. Forre uma assadeira com papel manteiga.
  2. Numa tigela, misture a farinha, sal e bicarbonato.
  3. Na batedeira, bata a manteiga e os açúcares até que fique claro e fofo.
  4. Junte os ovos, um a um, misturando bem. Junte o café e misture.
  5. Com a batedeira em velocidade baixa, junte a farinha e misture apenas até que tudo esteja incorporado. Misture as avelãs picadas com a ajuda de uma espátula.
  6. Coloque porções de 1 colh (sopa) na assadeira, com espaço para que espalhem, pelo menos 5cm, e asse por 12 minutos. Deixe que esfriem na assadeira por 2 minutos antes de transferir para uma grade.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O último dia de 2020


Último dia de 2020. 

Acordo às seis da manhã ao som de passos e sussurros e portas abrindo e fechando com menos cuidado do que eu gostaria. O quarto continua escuro, guardado ainda do sol que só vai dar as caras às oito horas. Tento desligar os ouvidos e voltar à dormir, mas orelha de mãe têm essa ligação automática com barulho de filho, e me deixo levar pelos ruídos familiares que eles produzem ao prepararem seu café. Geladeira. Armário. Pratos sobre a mesa de madeira. Faca batendo devagar contra a tábua de corte. Vidro raspando e batendo: a redoma de bolo, cheia dos biscoitos de avelã e café que assei na noite anterior. O silêncio me diz que estão comendo. O som dos pratos na pia me diz que os eduquei bem.

Rolo para o lado, e jogo um braço estabanado por cima dos ombros do marido. Bom dia, amore. Bom dia. Dormiu? Não. E as costas? Continuam doendo. Um mal jeito nas costas, depois de brincar de levantar Thomas de cabeça para baixo. "La vecchiaia", brinco. Mas suspeito que o mal jeito tenha menos a ver com nossa velhice e mais a ver com o fato de que Thomas cresceu. Muito.

Demoro mais alguns minutos para levantar. É aquela preguiça, aquele jeito do corpo tentar evitar o dia por vir, aquela vontade de cobrir a cabeça com as cobertas e fingir que sou crisálida. Ou um astronauta de filme, enfiado na sua câmara criogênica, para passar pela parte difícil do filme e voltar no futuro, quando tudo estiver resolvido. Posso? Me congela e eu volto quando tudo estiver bem.

Quando era criança, sonhei que o despertador tocava, cedinho, numa manhã de inverno ainda imersa em noite. Preguiçosa, cobria-me novamente, voltando a dormir. Minha mãe me chamava no sonho, e quando me levantei, era noite ainda. Noite densa, sem estrelas. "Ai, Ana! Olha só o que você fez!", dizia minha mãe do sonho. "Você não levantou da cama quando estava amanhecendo, e agora o sol voltou! Vai ser noite para sempre! PRA SEMPRE!" O sonho era vívido, e eu era pequena o bastante para não saber se aquilo era ou não cientificamente possível: o sol voltar atrás e fazer noite só porque uma criança voltou a dormir depois do despertador tocar. Mas, só pra garantir, eu comecei a levantar mais cedo depois disso.

Nada de crisálida e criogenia, que eu não quero que seja noite pra sempre. Levanta.

Minha cabeça é uma bagunça, e quando coloquei os pés no chão, decepcionei-me com a constatação de que comprara, no dia anterior, um pacote imenso de sementes de funcho no lugar das de erva-doce que eu queria. Droga.

A poltrona amarela que comprei na Ikea é meu lugar de honra. "O trono da Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa", brincam as crianças. Mas o gesto é quase ritualístico, o caminhar para fora do quarto e me sentar na poltrona, perna direita cruzada sobre a esquerda, mãos sobre os braços amarelos do móvel. Observo em silêncio o movimento dos cortesãos enquanto aguardo minha xícara de cappuccino quente. Enquanto bebo meu café, as crianças constroem castelos de peças de Jenga e dominó, e formam exércitos feitos de dezenas de dados coloridos do Tenzi. Vê-los criando estratégias de guerra ali aos meus pés só faz aumentar a presença da Rainha de Copas no caleidoscópio que é minha personalidade. 


Último dia do ano.

Quais são os planos? O plano é não ter plano. Como foi o Natal. Nada me faz mais rabugenta do que a pressão de me divertir com dia e hora marcada. A ausência total e completa de qualquer obrigação social ou psicológica de me divertir no Natal foi o que me fez relaxar e me divertir de fato. Assim, só nós quatro e uma lasanha. 

Reveillon aqui não existe. Não como no Brasil. Nos outros anos, quando a prefeitura tentou organizar algum evento de contagem regressiva naquela praça no centro, que parece a Times Square versão miniatura e deprê, o evento foi cancelado umas horas antes, porque fazia 17oC NEGATIVOS lá fora. Nada de pular ondinha no lago. Mesmo o Polar Bear Swim, o "pular ondinha" canadense, que consiste em dar um TCHIBUM! no lago gelado no primeiro dia do ano, não aconteceu... porque o lago estava congelado. Esse ano, as temperaturas estão amenas, e seria legal saracotear até o centro com a criançada. Mas né? Pandemia. Não tem evento nenhum. Sem praia e avenida Paulista pra se aglomerar, canadense costuma fazer festa de Reveillon amontoadinho dentro de Pubs quentinhos, com direito a tiarinha e óculos com o número do ano novo. Mas né? Pandemia de novo. Então o plano sem plano é passar Reveillon em casa, olhando os fogos. Ops. Pandemia? Não, Canadá mesmo. Nada de fogos no Reveillon. Nenhum. Nenhumzinho. Com ou sem pandemia, Reveillon é o feriado mais chato dos quase inexistentes feriados canadenses. 

Então é isso. Eu tinha comprado um peito de pato, num ímpeto de consumismo gastronômico, e acho que, depois do texto do pato do ártico, parece de uma cafonice poética comer pato do último dia de 2020. O plano sem plano é comer o pato. E uma panna cotta em que eu inventei de colocar a quantidade errada de gelatina, e que ficou tão borrachuda que dá pra apagar meus desenhos com ela. Não dá pra acertar tudo. Mas, como diz Allex, se for doce, ele come. 

O plano sem plano é tirar da parede de bruxa o envelope que eu grudei ali no dia 31 de dezembro de 2019. Lembra 2019? Saudades, né? Ler aquela carta que escrevi para mim mesma, agradecendo por tudo o que aconteceu em 2020, tentando prever os melhores momentos do ano e dar a dica para o Universo. Eu me lembro de quando escrevi aquela carta, e de quase tudo o que coloquei nela. Teve muita coisa que aconteceu, e outras que teriam acontecido não tivesse sido... a Pandemia. Pois é, pela Pandemia eu não agradeci na carta, porque eu acho que nem a Mãe Diná previu essa joça. 


Pensar naquela carta, dobrada dentro de um envelope de envio aéreo da Canada Post, de certa forma me acalma. Acalma como acalma raiva de bicho ou birra de criança. Tenho menos raiva de 2020. Foi um ano difícil. Difícil. Vou deixar assim, resumido numa palavra simples mas também razoavelmente leve, porque cansei de carregar comigo o peso desse ano. Foi um ano difícil como uma Maratona. Cansativo, doloroso, longo; tão longo, que parece que nunca vai acabar. Mas quando acaba, quando você acha que nunca mas vai andar na vida, percebe que as pernas continuam funcionando, e que, ainda que seu corpo tenha gasto toda a energia que tinha para percorrer aquele trajeto, você ainda consegue ir em frente. Passou. Acabou a maratona. E paradoxalmente, ainda que enfraquecido pelo esforço, você se sente forte com um deus antigo. Você correu uma maratona. O que mais você consegue fazer?

Você passou por 2020. Parabéns. Assim como numa maratona, todo mundo que saiu de 2019 e chegou a 2021 inteiro, merecia uma medalha de participação. 

Olho pra 2020 com alguma gentileza, como se fosse um espelho. 2020 tornou evidente todas as rugas e cicatrizes, todas as rusgas e falhas, antes encobertas por roupas bonitas de um sistema de mentirinha. Se 2020 fosse um conto infantil, seria a Roupa Nova do Imperador. De repente, isolados e forçados à introspecção, a maioria de nós se viu nu em nossos relacionamentos. Quem soube olhar com coragem no espelho saiu mais forte.

Acordei, na madrugada do Natal, com o som seco e agudo de vidro trincando. Sentada, no escuro, olhando a porta aberta do quarto, como quem espera uma aparição, demorei um tempo para me dar conta de que o barulho não viera do armário de copos ou do vizinho, mas de dentro de mim. Era claro agora, para mim, aquele efeito tão inesperado, pois quando eu fechava os olhos, enxergava no meu peito aquela redoma de vidro, trincada e aberta, libertando prisioneiros inefáveis, mas pesados, que eu não queria mais carregar no peito.

Esse ano que acaba se quebra em cacos no chão, cada pedaço refletindo uma parte nossa deixada para trás, uma perda, uma saudade, uma frustração,uma expectativa, um relacionamento, um castelo nas nuvens, que há muito precisava ser desfeito. Remonto os cacos numa forma nova, e aponto para a luz, na esperança de fazer arco-íris. Parece que esse ano veio para nos fazer ver melhor. 

Dá licença, que eu vou lá fazer meu pato, abrir um espumante, e brindar a esse ano estranho que trouxe tantas tristezas, mas também verdades e transformações. Eu agradeço sempre a tudo o que me faz mais forte. E 2020 não é exceção. 

Feliz ano novo, e que 2021 seja um ano gentil. 

Agora deixa eu ir lá fazer meu pato e arrumar alguma coisa pras crianças fazerem, porque eles inventaram que querem ficar acordados até meia noite e eu estou tentando explicar que Reveillon em Toronto tem cara de quinta-feira.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Meu livro, autografado, agora! Quer? Leia o texto com atenção e carinho, que o número é limitado.


Na sexta-feira à tarde, logo antes de buscar as crianças na escola, coloquei à venda meus livros autografados em minha loja Etsy.Não, não saia daí. Senta e escuta. Cinco minutos depois, tão logo o elevador chegou ao térreo, apaguei tudo. Não era certo. Não parecia justo. E como boa libriana, harmonia e justiça são grandes ideais dos quais não abro mão. 

Eu quebrei a cabeça por um bocado de tempo, pedi ajuda aos universitários (vulgo seguidores do Instagram), conversei com amigos e colegas escritores, para encontrar uma solução para o dilema: como autografar e enviar livros que estão do outro lado do mundo. Os livros no Brasil, eu no Canadá, e uma pandemia sentada no meio, fazendo birra de que não vai a lugar nenhum tão cedo. 

A solução foi autografar cartões e enviá-los à minha mãe, que então colocaria cada cartão num livro, cada livro num envelope, escreveria os endereços, e enviaria os pacotes de meio quilo (MEIO QUILO DE LIVRO) a cada um dos leitores queridos. Parecia perfeito, a não ser pelo fato de que o peso das minhas palavras impressas tornava o frete dos livros um bocado caro. Eu me perguntava porque alguém pagaria 95 reais num livro, se ele é vendido a 50 na livraria, só porque tem minha assinatura. Não parecia justo. Além disso, a venda dos livros com autógrafo ficaria restrita a residentes no Brasil, pois ninguém fora do Brasil pagaria mais de 100 reais de frete por um livro que pode ser enviado a 19 reais pelo site da editora. Outra injustiça. Também não parecia justo fazer minha mãe ter toda essa trabalheira e ainda ficar levando pilhas de livros de meio quilo até uma agência de correio cheia de gente, depois de ter passado tantos meses isolada em casa, cumprindo as recomendações de segurança contra o vírus. 

Então comecei a receber mensagens de pessoas queridas, que compraram o livro impresso nos primeiros minutos em que ele apareceu na pré-venda das livrarias: "Ana, já que o autógrafo é um cartão separado do livro, a gente que comprou o impresso na pré-venda também pode ganhar?" Claro, pensei. Nada mais justo. Se eu tivesse um evento de lançamento em uma livraria, a maior parte dessas pessoas levaria o livro debaixo do braço para pegar seu autógrafo. Seu apoio comprando o livro tem o mesmo valor (literal e figurativamente) que daquelas pessoas que esperaram para comprar diretamente comigo.

Mas isso é outra logística. É enviar um envelope separado, apenas com o cartão. Nesse caso, eu teria de cobrar o frete e o envelope, o que tornaria a coisa toda do autógrafo algo quase mercenário. Comercialização de autógrafo. Eca. Que.Nojo. 

Não, né? 

No fim, foi uma conversa com uma amiga e com meu marido que colocou minha cabeça no lugar. Pandemia requer medidas pandêmicas. Não posso querer fazer coisas de um jeito normal se tudo em volta está fora da norma. 

"O que é importante para você?", perguntou Allex. 

"Eu quero ser lida. Quero estar no mundo. Quero espalhar meu livro. Quero que as pessoas tenham uma relação positiva com meu texto. E quero que elas saibam como estou feliz com o apoio delas."

"Você sempre fala que a solução mais simples é a mais correta. Qual é a solução mais simples?"

Suspirei. 

A solução mais simples é não vou vender minhas cópias. Elas ficam lá, quietinhas, aguardando um evento futuro que um dia vai acontecer. Um dia eu vou assinar aquelas cópias. Quem estava esperando pelo livro autografado está liberado para comprar o impresso nas livrarias. Mas eu ainda quero fazer algo legal. Eu quero agradecer. Por isso estou mandando fazer 100 cartões para autografar, com dedicatória. E eu vou enviá-los daqui de Toronto, envio simples, sem custo nenhum para meus leitores.
Por que 100? Primeiro, é a soma arredondada das cópias que eu tinha para vender mais o número de pessoas que me escreveu dizendo que já comprou o impresso; segundo, porque é o que está dentro do meu orçamento, contando a impressão dos cartões e o envio internacional. 

Isso vale para os livros impressos apenas, por uma questão muito óbvia: só se autografa livro impresso. Vale também para o mundo todo, MENOS quem mora aqui em Toronto. Quem mora em Toronto e adjacências pode comprar o livro no site da CHIADO BOOKS e me encontrar pessoalmente para eu assinar (quando acabar o lockdown).

Como vai funcionar? Do jeito que achei mais justo. Mande um e-mail para anaelisagg@gmail.com com o assunto "AUTÓGRAFO" e com:

- comprovante de compra do livro IMPRESSO

- nome completo para a dedicatória

- nome e endereço completo para envio via correio.

AS PRIMEIRAS 100 PESSOAS que me enviarem os emails COM OS TRÊS ITENS ACIMA CORRETOS, receberão os cartões dedicados e autografados pelo correio, para serem inseridos ou colados no livro. ATENÇÃO: vou contar os 100 pela ordem de chegada dos emails. Se faltarem informações ou elas estiverem incorretas, eu vou desconsiderar o email, simplesmente porque se eu começar uma conversa pedindo correções, os emails vão sair de ordem. Ok? 

Quem não entrar na lista dos 100, mas tiver enviado o material até o dia do lançamento do livro, em 8 de janeiro, vai receber por email a versão digitlizada do cartão ilustrado, como sincero agradecimento.

A lista das livrarias que vendem o livro impresso estão aqui ao lado. Os livros já estão disponíveis no site da editora, www.chiadobooks.com.br, para o envio internacional.  IMPORTANTE: o livro impresso NÃO ESTÁ DISPONÍVEL NA AMAZON BRASIL. Trata-se de um erro de cadastro, e as compras do impresso feitas lá serão canceladas. Por favor, compre o livro impresso no site das livrarias. Na Amazon Brasil, apenas e-book.

Estou colocando esse texto ao mesmo tempo no blog e no Instagram, para ser justa com todos. 

Obrigada, de todo o coração,por todo o carinho e apoio não apenas durante o processo de criação e publicação do livro, mas por todos esses anos. Amor e luz para vocês. 

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O pato e a truta

 

Às vezes me pego fantasiando com um cappuccino numa xícara que meus lábios não reconheçam, numa mesa frequentemente lustrada por repetidas passadas de pano com desinfetante, e sons de louças empilhadas, vapores de máquinas de espresso e vozes diferentes das de meus filhos. Suspiro pelo balcão estreito de um bar pequeno a setecentos metros de casa, que me traz lembranças queridas de um outro em Amsterdam, e cuja fachada visito toda semana, com o olhar de saudades imaginárias, através de uma porta de vidro temporariamente fechada. Imagino o cheiro da cerveja absorvida pelos veios da madeira, e a conversa com o canadense barbudo e amigável que eu escalaria para me servir uma caneca caso minha vida fosse um filme. Surpreendo-me sentindo falta de comprar meias numa loja, tocando o tecido sintético com as pontas dos dedos que cheiram a cebola picada e café. Sinto falta do cheiro dos meus dedos, que hoje fedem a diferentes qualidades de álcool.

Dezembro chega com uma estranheza familiar. Um desconforto que já faz parte, como um joanete encaixado num sapato velho. Tempo normaliza as mais incríveis aberrações, desde que repetidas com constância. Não é mais preciso lembrar as crianças de colocar máscaras ou lavar as mãos. Já não me surpreendo com filas à porta do mercado. Quando me disseram que é preciso reservar horário no rinque de patinação do parque, para evitar aglomerações, deixei escapar uma interjeição entediada de quem ouve obviedades. 

Noutro dia avistei no lago alguns patos do ártico. Patos do ártico, esse pássaro pequeno e bonito, manchado de preto e branco em linhas exatas, como se pintado por um artista gráfico obsessivo e minimalista. Gosto de acreditar que ele seja o resultado do caso de amor entre um pato de fazenda e um pinguim. Mas a lembrança de que não há pinguins no ártico frustra minhas fantasias. E então me dou conta de que o pato do ártico ali carrega com ele outras frustrações. Ele não acabou de partir? Não foi ontem, nas primeiras semanas de março, quando avistei os últimos patos do ártico flutuando no lago gelado, antes de sua partida para o verão no norte? Como pode ter passado o tempo? Como podem os patos do ártico terem retornado e nada ter mudado desde aqueles dias?

Suspiro. Digo oi aos patos do ártico. Aceito sua presença aqui, e a espiral cíclica e paradoxal de previsibilidade sem controle que ela significa. 

Abraço mentalmente os patos, o caos, o descontrole, o tempo.

O tempo traz também clareza. Acontecimentos erráticos entram em formação e, como o voo dos pombos que habitam os telhados das lojas do lado de casa, repentinamente fazem sentido. Como o rosto observado no espelho por tempo o bastante para perder conexão entre as partes, as partes, olhadas atentamente por tempo bastante, revelam uma conexão que beira a obviedade do rinque de patinação na pandemia.

De todos os padrões e ciclos visualizados nos últimos meses (anos?) o mais óbvio deles, e que por mais tempo passou desapercebido, foi a relação entre meu foco criativo e minha energia. E quando mencionei isso a Allex, ele riu, tamanha obviedade. Só eu não vi? Só eu não vi que quando minha energia criativa está ligada à pintura e à escrita, não resta nada para a cozinha? Que quando minha mente se engaja na exploração de novos caminhos pela pintura, na criação de textos e ilustrações, um arroz com ovo me basta? Que quando estou preocupada com processos e burocracias da minha arte, não quero fazer nada mais complexo que um bolo de liquidificador? 

E o contrário se aplica: quando mergulho com vontade nas práticas mais complexas da cozinha e da confeitaria, e me meto a ler e ver e ouvir e respirar comida, não sobra uma fagulha que atice o fogo criativo dos pincéis.

E enquanto me deixo consumir pelo calor do forno, as criações do fogão satisfazem o apetite da alma, e os outros projetos permanecem largados, incompletos e abandonados, esperando o completar da digestão e o retorno da fome criativa.

Dezembro, com suas costumeiras correrias pré-natalinas, trouxe a estranheza mais estranha de todas: a pausa. Fim do ano nunca é pausa. É festa, é gente, é planos. Mas este ano, estranhamente, a festa não tem gosto de comemoração, não há gente vindo visitar de longe, e mesmo quem está perto é proibido de vir, e planos? Bem, planos não se fazem em 2020. Um fim de ano sem pressão de ser fim de ano. Um fim de ano blasé, discreto, um fim de ano bebendo no canto do salão, observando de fora, sem fazer alarde, sem ser notado. 

Quando o furor do trabalho de escrever, publicar, pintar, vender, desenhar, divulgar, e entregar tudo no prazo, começa a rescindir, aquela vontade de folhear livros de cozinha surge tão de repente quanto o pato do ártico. E na estranha pausa de fim de ano que a pandemia me provê, dou-me conta de estar planejando receitas novas, explorações gastronômicas e aventuras de confeitaria novamente. 

Surpreendo-me com a vontade de preparar aquela truta com cogumelos do livro francês, e me dou conta de que minha vontade de desenhar desaparece no mesmo passo. Aconteceu de novo. E acontece sempre, esse cansaço, esse saco cheio, que torna meu interesse instável e pesa nos ossos,depois de uma fase inteira de atenção num só assunto, focado, obcecado, tenso, como um cabresto criativo.  

O ciclo fica claro, e mais claro fica o fato de que eu talvez mergulhe muito profundamente em cada uma de suas fases, como se minha criatividade fosse um lago profundo ao invés de um mar. O mergulho intenso em águas paradas me deixa sem ar: nado cada vez mais fundo, e volto à tona apenas quando exausta, surpresa por minha enfadada apatia pela atividade recém-explorada, esperando pelo próximo mergulho em águas diferentes, sem saber que nunca saí do lugar.

Como o pato do ártico, também me deixei enganar por um tempo por esse vasto lago que parece mar mas não é.

Se eu não nadar tão fundo e me deixar flutuar e relaxar de vez em quando, conseguirei manter a cabeça fora da água para enxergar as ondas vindo, deixar-me levar de jacaré por uma, atravessar outra por baixo num prender de respiração, e pular meu caminho de volta até o fundo, daquele jeito de criança que tenta furar a onda com o corpo reto e acaba tomando caldo, levantando com areia no cabelo e o maiô enfiado na bunda. Mas rindo.

Criar rindo.

Um pouco de escrita, um pouco de pintura, um pouco de cozinha, sem cansar de nenhuma delas. Como foi um dia, quando comecei a escrever aqui, antes de endurecer e acreditar no mito da produtividade. Nem só um, nem só outro. Equilíbrio. Tensão e relaxamento. Nem cá, nem lá, feito ave migratória. Um pouco de trabalho, um pouco de diversão. Criatividade na vida é feito sal no prato: mais gostosa quando bem distribuída.

Não quero mais esse um fogo criativo explosivo que se exaure, mas brasas duradouras por toda a parte. 

O pato do ártico trouxe à tona uma frustração, mas toda frustração, se observada com cuidado, traz com ela um aprendizado. O pato branco e preto de designer voltou ao lago que parece mar, como se os meses entre março e dezembro nunca tivessem acontecido. Mas fecho os olhos e suspiro um suspiro de esperança, de saudade de um futuro, pensando que um um dia também essas partes de 2020 vão se ligar numa imagem clara, que o que parece hoje confuso vai fazer sentido. Quando estiver outra vez escrevendo no café do bairro, ou bebendo uma cerveja com uma amiga no pequeno bar do balcão de madeira, esses meses estranhos terão sido uma fase num ciclo cuja imprevisibilidade caótica será óbvia e aceitável. O pato do ártico deixa o lago e retorna ao mar, repito a receita da truta com cogumelos numa terça-feira do ano que vem, e lembro desse baile de máscaras como quem vê uma fotografia de carnaval mas só consegue descrever a ressaca do dia seguinte.

...

TRUTA ARCO-ÍRIS (ou salmão) COM MOLHO DE CREME E COGUMELOS.

(do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)

Rendimento: 6 porções

Obs: Truta Arco-Íris (Rainbow trout, ou Steelhead Trout) é uma truta, parente do salmão, de rios gelados da América do Norte. Seu sabor e textura lembra um bocado salmão atlântico, ainda que seja mais suave. Caso não encontre truta, pode usar a mesma quantidade de salmão atlântico. 

Obs2: na primeira vez em que preparei esse prato, usei filés de peixe menores e servi com um gratin simples de batatas. Desta vez, usei arroz. O peixe tem bastante molho, que é delicioso, então sirva com algum acompanhamento que absorva um pouco do molho. 

Obs 3: A pele do peixe ajuda ele a não grudar, mas não se incomode em deixá-la crocante, uma vez que o molho fará com que a pele amoleça novamente. Corte a cebola ou echalota realmente pequenininho, porque ela vai apenas cozinhar um pouco no molho, e não dourar, e você não quer pedaços grandes de cebola crua. Na primeira vez, piquei os cogumelos em pedaços pequenos, desta vez, fatiei. Fica bom dos dois jeitos, e eu gosto de colocar mais cogumelos do que a receita pede. Fica a seu critério. Já fiz com crème fraîche e com  creme de leite fresco, e as duas versões ficam deliciosas.

Ingredientes:

  • 800g de filés de truta com pele (ou salmão),cortados em pedaços de 100-120g.
  • 1/4 xic. farinha de trigo
  • sal e pimenta-do-reino
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga
  • 1/4 xic. vinho branco
  • 1 echalota pequena ou 1/4 de cebola branca picada BEM fininho
  • 100g de cogumelos picados (Paris, Cremini, o que quiser)
  • 2/3 xic. crème fraîche ou creme de leite fresco
  • Salsinha picada para finalizar (que eu sempre esqueço de colocar e é opcional)

Preparo:

  1. Passe os filés de peixe na farinha de trigo, para cobri-los bem, chacoalhe o excesso e tempere com sal e pimenta. (Importante: faça isso apenas na hora de cozinhar, ou o sal fará o peixe soltar umidade, o que, em contato com a farinha, vai produzir uma cola, e ao invés do peixe selar na frigideira, ele vai grudar.)
  2. Derreta a manteiga em uma frigideira grande, coloque lá o peixe, com a pele para baixo, e cozinhe em fogo baixo, virando uma vez, até que esteja ligeiramente dourado.
  3. Derrame o vinho e imediatamente polvilhe a frigideira com a echalota (ou cebola) e os cogumelos picados, espalhando de forma uniforme. Junte o creme e continue cozinhando em fogo baixo por 10 minutos, sem tampa. 
  4. Transfira o peixe para uma travessa, leve o molho à fervura, acerte o tempero e derrame-o às colheradas sobre o peixe. Polvilhe com salsinha, e sirva imediatamente.

Cozinhe isso também!

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