quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O último dia de 2020


Último dia de 2020. 

Acordo às seis da manhã ao som de passos e sussurros e portas abrindo e fechando com menos cuidado do que eu gostaria. O quarto continua escuro, guardado ainda do sol que só vai dar as caras às oito horas. Tento desligar os ouvidos e voltar à dormir, mas orelha de mãe têm essa ligação automática com barulho de filho, e me deixo levar pelos ruídos familiares que eles produzem ao prepararem seu café. Geladeira. Armário. Pratos sobre a mesa de madeira. Faca batendo devagar contra a tábua de corte. Vidro raspando e batendo: a redoma de bolo, cheia dos biscoitos de avelã e café que assei na noite anterior. O silêncio me diz que estão comendo. O som dos pratos na pia me diz que os eduquei bem.

Rolo para o lado, e jogo um braço estabanado por cima dos ombros do marido. Bom dia, amore. Bom dia. Dormiu? Não. E as costas? Continuam doendo. Um mal jeito nas costas, depois de brincar de levantar Thomas de cabeça para baixo. "La vecchiaia", brinco. Mas suspeito que o mal jeito tenha menos a ver com nossa velhice e mais a ver com o fato de que Thomas cresceu. Muito.

Demoro mais alguns minutos para levantar. É aquela preguiça, aquele jeito do corpo tentar evitar o dia por vir, aquela vontade de cobrir a cabeça com as cobertas e fingir que sou crisálida. Ou um astronauta de filme, enfiado na sua câmara criogênica, para passar pela parte difícil do filme e voltar no futuro, quando tudo estiver resolvido. Posso? Me congela e eu volto quando tudo estiver bem.

Quando era criança, sonhei que o despertador tocava, cedinho, numa manhã de inverno ainda imersa em noite. Preguiçosa, cobria-me novamente, voltando a dormir. Minha mãe me chamava no sonho, e quando me levantei, era noite ainda. Noite densa, sem estrelas. "Ai, Ana! Olha só o que você fez!", dizia minha mãe do sonho. "Você não levantou da cama quando estava amanhecendo, e agora o sol voltou! Vai ser noite para sempre! PRA SEMPRE!" O sonho era vívido, e eu era pequena o bastante para não saber se aquilo era ou não cientificamente possível: o sol voltar atrás e fazer noite só porque uma criança voltou a dormir depois do despertador tocar. Mas, só pra garantir, eu comecei a levantar mais cedo depois disso.

Nada de crisálida e criogenia, que eu não quero que seja noite pra sempre. Levanta.

Minha cabeça é uma bagunça, e quando coloquei os pés no chão, decepcionei-me com a constatação de que comprara, no dia anterior, um pacote imenso de sementes de funcho no lugar das de erva-doce que eu queria. Droga.

A poltrona amarela que comprei na Ikea é meu lugar de honra. "O trono da Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa", brincam as crianças. Mas o gesto é quase ritualístico, o caminhar para fora do quarto e me sentar na poltrona, perna direita cruzada sobre a esquerda, mãos sobre os braços amarelos do móvel. Observo em silêncio o movimento dos cortesãos enquanto aguardo minha xícara de cappuccino quente. Enquanto bebo meu café, as crianças constroem castelos de peças de Jenga e dominó, e formam exércitos feitos de dezenas de dados coloridos do Tenzi. Vê-los criando estratégias de guerra ali aos meus pés só faz aumentar a presença da Rainha de Copas no caleidoscópio que é minha personalidade. 


Último dia do ano.

Quais são os planos? O plano é não ter plano. Como foi o Natal. Nada me faz mais rabugenta do que a pressão de me divertir com dia e hora marcada. A ausência total e completa de qualquer obrigação social ou psicológica de me divertir no Natal foi o que me fez relaxar e me divertir de fato. Assim, só nós quatro e uma lasanha. 

Reveillon aqui não existe. Não como no Brasil. Nos outros anos, quando a prefeitura tentou organizar algum evento de contagem regressiva naquela praça no centro, que parece a Times Square versão miniatura e deprê, o evento foi cancelado umas horas antes, porque fazia 17oC NEGATIVOS lá fora. Nada de pular ondinha no lago. Mesmo o Polar Bear Swim, o "pular ondinha" canadense, que consiste em dar um TCHIBUM! no lago gelado no primeiro dia do ano, não aconteceu... porque o lago estava congelado. Esse ano, as temperaturas estão amenas, e seria legal saracotear até o centro com a criançada. Mas né? Pandemia. Não tem evento nenhum. Sem praia e avenida Paulista pra se aglomerar, canadense costuma fazer festa de Reveillon amontoadinho dentro de Pubs quentinhos, com direito a tiarinha e óculos com o número do ano novo. Mas né? Pandemia de novo. Então o plano sem plano é passar Reveillon em casa, olhando os fogos. Ops. Pandemia? Não, Canadá mesmo. Nada de fogos no Reveillon. Nenhum. Nenhumzinho. Com ou sem pandemia, Reveillon é o feriado mais chato dos quase inexistentes feriados canadenses. 

Então é isso. Eu tinha comprado um peito de pato, num ímpeto de consumismo gastronômico, e acho que, depois do texto do pato do ártico, parece de uma cafonice poética comer pato do último dia de 2020. O plano sem plano é comer o pato. E uma panna cotta em que eu inventei de colocar a quantidade errada de gelatina, e que ficou tão borrachuda que dá pra apagar meus desenhos com ela. Não dá pra acertar tudo. Mas, como diz Allex, se for doce, ele come. 

O plano sem plano é tirar da parede de bruxa o envelope que eu grudei ali no dia 31 de dezembro de 2019. Lembra 2019? Saudades, né? Ler aquela carta que escrevi para mim mesma, agradecendo por tudo o que aconteceu em 2020, tentando prever os melhores momentos do ano e dar a dica para o Universo. Eu me lembro de quando escrevi aquela carta, e de quase tudo o que coloquei nela. Teve muita coisa que aconteceu, e outras que teriam acontecido não tivesse sido... a Pandemia. Pois é, pela Pandemia eu não agradeci na carta, porque eu acho que nem a Mãe Diná previu essa joça. 


Pensar naquela carta, dobrada dentro de um envelope de envio aéreo da Canada Post, de certa forma me acalma. Acalma como acalma raiva de bicho ou birra de criança. Tenho menos raiva de 2020. Foi um ano difícil. Difícil. Vou deixar assim, resumido numa palavra simples mas também razoavelmente leve, porque cansei de carregar comigo o peso desse ano. Foi um ano difícil como uma Maratona. Cansativo, doloroso, longo; tão longo, que parece que nunca vai acabar. Mas quando acaba, quando você acha que nunca mas vai andar na vida, percebe que as pernas continuam funcionando, e que, ainda que seu corpo tenha gasto toda a energia que tinha para percorrer aquele trajeto, você ainda consegue ir em frente. Passou. Acabou a maratona. E paradoxalmente, ainda que enfraquecido pelo esforço, você se sente forte com um deus antigo. Você correu uma maratona. O que mais você consegue fazer?

Você passou por 2020. Parabéns. Assim como numa maratona, todo mundo que saiu de 2019 e chegou a 2021 inteiro, merecia uma medalha de participação. 

Olho pra 2020 com alguma gentileza, como se fosse um espelho. 2020 tornou evidente todas as rugas e cicatrizes, todas as rusgas e falhas, antes encobertas por roupas bonitas de um sistema de mentirinha. Se 2020 fosse um conto infantil, seria a Roupa Nova do Imperador. De repente, isolados e forçados à introspecção, a maioria de nós se viu nu em nossos relacionamentos. Quem soube olhar com coragem no espelho saiu mais forte.

Acordei, na madrugada do Natal, com o som seco e agudo de vidro trincando. Sentada, no escuro, olhando a porta aberta do quarto, como quem espera uma aparição, demorei um tempo para me dar conta de que o barulho não viera do armário de copos ou do vizinho, mas de dentro de mim. Era claro agora, para mim, aquele efeito tão inesperado, pois quando eu fechava os olhos, enxergava no meu peito aquela redoma de vidro, trincada e aberta, libertando prisioneiros inefáveis, mas pesados, que eu não queria mais carregar no peito.

Esse ano que acaba se quebra em cacos no chão, cada pedaço refletindo uma parte nossa deixada para trás, uma perda, uma saudade, uma frustração,uma expectativa, um relacionamento, um castelo nas nuvens, que há muito precisava ser desfeito. Remonto os cacos numa forma nova, e aponto para a luz, na esperança de fazer arco-íris. Parece que esse ano veio para nos fazer ver melhor. 

Dá licença, que eu vou lá fazer meu pato, abrir um espumante, e brindar a esse ano estranho que trouxe tantas tristezas, mas também verdades e transformações. Eu agradeço sempre a tudo o que me faz mais forte. E 2020 não é exceção. 

Feliz ano novo, e que 2021 seja um ano gentil. 

Agora deixa eu ir lá fazer meu pato e arrumar alguma coisa pras crianças fazerem, porque eles inventaram que querem ficar acordados até meia noite e eu estou tentando explicar que Reveillon em Toronto tem cara de quinta-feira.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Meu livro, autografado, agora! Quer? Leia o texto com atenção e carinho, que o número é limitado.


Na sexta-feira à tarde, logo antes de buscar as crianças na escola, coloquei à venda meus livros autografados em minha loja Etsy.Não, não saia daí. Senta e escuta. Cinco minutos depois, tão logo o elevador chegou ao térreo, apaguei tudo. Não era certo. Não parecia justo. E como boa libriana, harmonia e justiça são grandes ideais dos quais não abro mão. 

Eu quebrei a cabeça por um bocado de tempo, pedi ajuda aos universitários (vulgo seguidores do Instagram), conversei com amigos e colegas escritores, para encontrar uma solução para o dilema: como autografar e enviar livros que estão do outro lado do mundo. Os livros no Brasil, eu no Canadá, e uma pandemia sentada no meio, fazendo birra de que não vai a lugar nenhum tão cedo. 

A solução foi autografar cartões e enviá-los à minha mãe, que então colocaria cada cartão num livro, cada livro num envelope, escreveria os endereços, e enviaria os pacotes de meio quilo (MEIO QUILO DE LIVRO) a cada um dos leitores queridos. Parecia perfeito, a não ser pelo fato de que o peso das minhas palavras impressas tornava o frete dos livros um bocado caro. Eu me perguntava porque alguém pagaria 95 reais num livro, se ele é vendido a 50 na livraria, só porque tem minha assinatura. Não parecia justo. Além disso, a venda dos livros com autógrafo ficaria restrita a residentes no Brasil, pois ninguém fora do Brasil pagaria mais de 100 reais de frete por um livro que pode ser enviado a 19 reais pelo site da editora. Outra injustiça. Também não parecia justo fazer minha mãe ter toda essa trabalheira e ainda ficar levando pilhas de livros de meio quilo até uma agência de correio cheia de gente, depois de ter passado tantos meses isolada em casa, cumprindo as recomendações de segurança contra o vírus. 

Então comecei a receber mensagens de pessoas queridas, que compraram o livro impresso nos primeiros minutos em que ele apareceu na pré-venda das livrarias: "Ana, já que o autógrafo é um cartão separado do livro, a gente que comprou o impresso na pré-venda também pode ganhar?" Claro, pensei. Nada mais justo. Se eu tivesse um evento de lançamento em uma livraria, a maior parte dessas pessoas levaria o livro debaixo do braço para pegar seu autógrafo. Seu apoio comprando o livro tem o mesmo valor (literal e figurativamente) que daquelas pessoas que esperaram para comprar diretamente comigo.

Mas isso é outra logística. É enviar um envelope separado, apenas com o cartão. Nesse caso, eu teria de cobrar o frete e o envelope, o que tornaria a coisa toda do autógrafo algo quase mercenário. Comercialização de autógrafo. Eca. Que.Nojo. 

Não, né? 

No fim, foi uma conversa com uma amiga e com meu marido que colocou minha cabeça no lugar. Pandemia requer medidas pandêmicas. Não posso querer fazer coisas de um jeito normal se tudo em volta está fora da norma. 

"O que é importante para você?", perguntou Allex. 

"Eu quero ser lida. Quero estar no mundo. Quero espalhar meu livro. Quero que as pessoas tenham uma relação positiva com meu texto. E quero que elas saibam como estou feliz com o apoio delas."

"Você sempre fala que a solução mais simples é a mais correta. Qual é a solução mais simples?"

Suspirei. 

A solução mais simples é não vou vender minhas cópias. Elas ficam lá, quietinhas, aguardando um evento futuro que um dia vai acontecer. Um dia eu vou assinar aquelas cópias. Quem estava esperando pelo livro autografado está liberado para comprar o impresso nas livrarias. Mas eu ainda quero fazer algo legal. Eu quero agradecer. Por isso estou mandando fazer 100 cartões para autografar, com dedicatória. E eu vou enviá-los daqui de Toronto, envio simples, sem custo nenhum para meus leitores.
Por que 100? Primeiro, é a soma arredondada das cópias que eu tinha para vender mais o número de pessoas que me escreveu dizendo que já comprou o impresso; segundo, porque é o que está dentro do meu orçamento, contando a impressão dos cartões e o envio internacional. 

Isso vale para os livros impressos apenas, por uma questão muito óbvia: só se autografa livro impresso. Vale também para o mundo todo, MENOS quem mora aqui em Toronto. Quem mora em Toronto e adjacências pode comprar o livro no site da CHIADO BOOKS e me encontrar pessoalmente para eu assinar (quando acabar o lockdown).

Como vai funcionar? Do jeito que achei mais justo. Mande um e-mail para anaelisagg@gmail.com com o assunto "AUTÓGRAFO" e com:

- comprovante de compra do livro IMPRESSO

- nome completo para a dedicatória

- nome e endereço completo para envio via correio.

AS PRIMEIRAS 100 PESSOAS que me enviarem os emails COM OS TRÊS ITENS ACIMA CORRETOS, receberão os cartões dedicados e autografados pelo correio, para serem inseridos ou colados no livro. ATENÇÃO: vou contar os 100 pela ordem de chegada dos emails. Se faltarem informações ou elas estiverem incorretas, eu vou desconsiderar o email, simplesmente porque se eu começar uma conversa pedindo correções, os emails vão sair de ordem. Ok? 

Quem não entrar na lista dos 100, mas tiver enviado o material até o dia do lançamento do livro, em 8 de janeiro, vai receber por email a versão digitlizada do cartão ilustrado, como sincero agradecimento.

A lista das livrarias que vendem o livro impresso estão aqui ao lado. Os livros já estão disponíveis no site da editora, www.chiadobooks.com.br, para o envio internacional.  IMPORTANTE: o livro impresso NÃO ESTÁ DISPONÍVEL NA AMAZON BRASIL. Trata-se de um erro de cadastro, e as compras do impresso feitas lá serão canceladas. Por favor, compre o livro impresso no site das livrarias. Na Amazon Brasil, apenas e-book.

Estou colocando esse texto ao mesmo tempo no blog e no Instagram, para ser justa com todos. 

Obrigada, de todo o coração,por todo o carinho e apoio não apenas durante o processo de criação e publicação do livro, mas por todos esses anos. Amor e luz para vocês. 

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O pato e a truta

 

Às vezes me pego fantasiando com um cappuccino numa xícara que meus lábios não reconheçam, numa mesa frequentemente lustrada por repetidas passadas de pano com desinfetante, e sons de louças empilhadas, vapores de máquinas de espresso e vozes diferentes das de meus filhos. Suspiro pelo balcão estreito de um bar pequeno a setecentos metros de casa, que me traz lembranças queridas de um outro em Amsterdam, e cuja fachada visito toda semana, com o olhar de saudades imaginárias, através de uma porta de vidro temporariamente fechada. Imagino o cheiro da cerveja absorvida pelos veios da madeira, e a conversa com o canadense barbudo e amigável que eu escalaria para me servir uma caneca caso minha vida fosse um filme. Surpreendo-me sentindo falta de comprar meias numa loja, tocando o tecido sintético com as pontas dos dedos que cheiram a cebola picada e café. Sinto falta do cheiro dos meus dedos, que hoje fedem a diferentes qualidades de álcool.

Dezembro chega com uma estranheza familiar. Um desconforto que já faz parte, como um joanete encaixado num sapato velho. Tempo normaliza as mais incríveis aberrações, desde que repetidas com constância. Não é mais preciso lembrar as crianças de colocar máscaras ou lavar as mãos. Já não me surpreendo com filas à porta do mercado. Quando me disseram que é preciso reservar horário no rinque de patinação do parque, para evitar aglomerações, deixei escapar uma interjeição entediada de quem ouve obviedades. 

Noutro dia avistei no lago alguns patos do ártico. Patos do ártico, esse pássaro pequeno e bonito, manchado de preto e branco em linhas exatas, como se pintado por um artista gráfico obsessivo e minimalista. Gosto de acreditar que ele seja o resultado do caso de amor entre um pato de fazenda e um pinguim. Mas a lembrança de que não há pinguins no ártico frustra minhas fantasias. E então me dou conta de que o pato do ártico ali carrega com ele outras frustrações. Ele não acabou de partir? Não foi ontem, nas primeiras semanas de março, quando avistei os últimos patos do ártico flutuando no lago gelado, antes de sua partida para o verão no norte? Como pode ter passado o tempo? Como podem os patos do ártico terem retornado e nada ter mudado desde aqueles dias?

Suspiro. Digo oi aos patos do ártico. Aceito sua presença aqui, e a espiral cíclica e paradoxal de previsibilidade sem controle que ela significa. 

Abraço mentalmente os patos, o caos, o descontrole, o tempo.

O tempo traz também clareza. Acontecimentos erráticos entram em formação e, como o voo dos pombos que habitam os telhados das lojas do lado de casa, repentinamente fazem sentido. Como o rosto observado no espelho por tempo o bastante para perder conexão entre as partes, as partes, olhadas atentamente por tempo bastante, revelam uma conexão que beira a obviedade do rinque de patinação na pandemia.

De todos os padrões e ciclos visualizados nos últimos meses (anos?) o mais óbvio deles, e que por mais tempo passou desapercebido, foi a relação entre meu foco criativo e minha energia. E quando mencionei isso a Allex, ele riu, tamanha obviedade. Só eu não vi? Só eu não vi que quando minha energia criativa está ligada à pintura e à escrita, não resta nada para a cozinha? Que quando minha mente se engaja na exploração de novos caminhos pela pintura, na criação de textos e ilustrações, um arroz com ovo me basta? Que quando estou preocupada com processos e burocracias da minha arte, não quero fazer nada mais complexo que um bolo de liquidificador? 

E o contrário se aplica: quando mergulho com vontade nas práticas mais complexas da cozinha e da confeitaria, e me meto a ler e ver e ouvir e respirar comida, não sobra uma fagulha que atice o fogo criativo dos pincéis.

E enquanto me deixo consumir pelo calor do forno, as criações do fogão satisfazem o apetite da alma, e os outros projetos permanecem largados, incompletos e abandonados, esperando o completar da digestão e o retorno da fome criativa.

Dezembro, com suas costumeiras correrias pré-natalinas, trouxe a estranheza mais estranha de todas: a pausa. Fim do ano nunca é pausa. É festa, é gente, é planos. Mas este ano, estranhamente, a festa não tem gosto de comemoração, não há gente vindo visitar de longe, e mesmo quem está perto é proibido de vir, e planos? Bem, planos não se fazem em 2020. Um fim de ano sem pressão de ser fim de ano. Um fim de ano blasé, discreto, um fim de ano bebendo no canto do salão, observando de fora, sem fazer alarde, sem ser notado. 

Quando o furor do trabalho de escrever, publicar, pintar, vender, desenhar, divulgar, e entregar tudo no prazo, começa a rescindir, aquela vontade de folhear livros de cozinha surge tão de repente quanto o pato do ártico. E na estranha pausa de fim de ano que a pandemia me provê, dou-me conta de estar planejando receitas novas, explorações gastronômicas e aventuras de confeitaria novamente. 

Surpreendo-me com a vontade de preparar aquela truta com cogumelos do livro francês, e me dou conta de que minha vontade de desenhar desaparece no mesmo passo. Aconteceu de novo. E acontece sempre, esse cansaço, esse saco cheio, que torna meu interesse instável e pesa nos ossos,depois de uma fase inteira de atenção num só assunto, focado, obcecado, tenso, como um cabresto criativo.  

O ciclo fica claro, e mais claro fica o fato de que eu talvez mergulhe muito profundamente em cada uma de suas fases, como se minha criatividade fosse um lago profundo ao invés de um mar. O mergulho intenso em águas paradas me deixa sem ar: nado cada vez mais fundo, e volto à tona apenas quando exausta, surpresa por minha enfadada apatia pela atividade recém-explorada, esperando pelo próximo mergulho em águas diferentes, sem saber que nunca saí do lugar.

Como o pato do ártico, também me deixei enganar por um tempo por esse vasto lago que parece mar mas não é.

Se eu não nadar tão fundo e me deixar flutuar e relaxar de vez em quando, conseguirei manter a cabeça fora da água para enxergar as ondas vindo, deixar-me levar de jacaré por uma, atravessar outra por baixo num prender de respiração, e pular meu caminho de volta até o fundo, daquele jeito de criança que tenta furar a onda com o corpo reto e acaba tomando caldo, levantando com areia no cabelo e o maiô enfiado na bunda. Mas rindo.

Criar rindo.

Um pouco de escrita, um pouco de pintura, um pouco de cozinha, sem cansar de nenhuma delas. Como foi um dia, quando comecei a escrever aqui, antes de endurecer e acreditar no mito da produtividade. Nem só um, nem só outro. Equilíbrio. Tensão e relaxamento. Nem cá, nem lá, feito ave migratória. Um pouco de trabalho, um pouco de diversão. Criatividade na vida é feito sal no prato: mais gostosa quando bem distribuída.

Não quero mais esse um fogo criativo explosivo que se exaure, mas brasas duradouras por toda a parte. 

O pato do ártico trouxe à tona uma frustração, mas toda frustração, se observada com cuidado, traz com ela um aprendizado. O pato branco e preto de designer voltou ao lago que parece mar, como se os meses entre março e dezembro nunca tivessem acontecido. Mas fecho os olhos e suspiro um suspiro de esperança, de saudade de um futuro, pensando que um um dia também essas partes de 2020 vão se ligar numa imagem clara, que o que parece hoje confuso vai fazer sentido. Quando estiver outra vez escrevendo no café do bairro, ou bebendo uma cerveja com uma amiga no pequeno bar do balcão de madeira, esses meses estranhos terão sido uma fase num ciclo cuja imprevisibilidade caótica será óbvia e aceitável. O pato do ártico deixa o lago e retorna ao mar, repito a receita da truta com cogumelos numa terça-feira do ano que vem, e lembro desse baile de máscaras como quem vê uma fotografia de carnaval mas só consegue descrever a ressaca do dia seguinte.

...

TRUTA ARCO-ÍRIS (ou salmão) COM MOLHO DE CREME E COGUMELOS.

(do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)

Rendimento: 6 porções

Obs: Truta Arco-Íris (Rainbow trout, ou Steelhead Trout) é uma truta, parente do salmão, de rios gelados da América do Norte. Seu sabor e textura lembra um bocado salmão atlântico, ainda que seja mais suave. Caso não encontre truta, pode usar a mesma quantidade de salmão atlântico. 

Obs2: na primeira vez em que preparei esse prato, usei filés de peixe menores e servi com um gratin simples de batatas. Desta vez, usei arroz. O peixe tem bastante molho, que é delicioso, então sirva com algum acompanhamento que absorva um pouco do molho. 

Obs 3: A pele do peixe ajuda ele a não grudar, mas não se incomode em deixá-la crocante, uma vez que o molho fará com que a pele amoleça novamente. Corte a cebola ou echalota realmente pequenininho, porque ela vai apenas cozinhar um pouco no molho, e não dourar, e você não quer pedaços grandes de cebola crua. Na primeira vez, piquei os cogumelos em pedaços pequenos, desta vez, fatiei. Fica bom dos dois jeitos, e eu gosto de colocar mais cogumelos do que a receita pede. Fica a seu critério. Já fiz com crème fraîche e com  creme de leite fresco, e as duas versões ficam deliciosas.

Ingredientes:

  • 800g de filés de truta com pele (ou salmão),cortados em pedaços de 100-120g.
  • 1/4 xic. farinha de trigo
  • sal e pimenta-do-reino
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga
  • 1/4 xic. vinho branco
  • 1 echalota pequena ou 1/4 de cebola branca picada BEM fininho
  • 100g de cogumelos picados (Paris, Cremini, o que quiser)
  • 2/3 xic. crème fraîche ou creme de leite fresco
  • Salsinha picada para finalizar (que eu sempre esqueço de colocar e é opcional)

Preparo:

  1. Passe os filés de peixe na farinha de trigo, para cobri-los bem, chacoalhe o excesso e tempere com sal e pimenta. (Importante: faça isso apenas na hora de cozinhar, ou o sal fará o peixe soltar umidade, o que, em contato com a farinha, vai produzir uma cola, e ao invés do peixe selar na frigideira, ele vai grudar.)
  2. Derreta a manteiga em uma frigideira grande, coloque lá o peixe, com a pele para baixo, e cozinhe em fogo baixo, virando uma vez, até que esteja ligeiramente dourado.
  3. Derrame o vinho e imediatamente polvilhe a frigideira com a echalota (ou cebola) e os cogumelos picados, espalhando de forma uniforme. Junte o creme e continue cozinhando em fogo baixo por 10 minutos, sem tampa. 
  4. Transfira o peixe para uma travessa, leve o molho à fervura, acerte o tempero e derrame-o às colheradas sobre o peixe. Polvilhe com salsinha, e sirva imediatamente.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Meu livro saiu! Meu livro saiu! Meu livro saiu! Já falei que meu livro saiu?


O livro foi lançado. 

Solto essas palavras assim, feito uma bomba. Mas não uma bomba ruim. Uma bomba de chocolate. Doce, explodindo risada à primeira mordida. Uma bomba. Num dia está ali, quietinho, sendo preparado, aguardando, aguardando. Então, de repente, ao apertar de um botão, ele está ali, solto no mundo, no ar, explodindo todas as minhas palavras para quem quiser lê-las. 

Ok, eu voltei para a metáfora da bomba que explode.

É difícil conter em mim apenas uma das sensações: o prazer do doce e o medo da explosão. Pois é isso, não é? Esse coração que bate forte? O ápice desse meu envolvimento com a história, essa história, minha história, minha relação com quem me leu durante todos esses anos... ela chega aqui: na publicação de um livro cujo lançamento me deixou tão feliz e tão exausta, que dormi por um dia inteiro depois dela. 

Ok, essa metáfora está virando uma outra coisa completamente diferente.

Voltemos. 

Mas de fato, dormi um dia inteiro. 

Estava já acostumada a esperar. Acostumada ao processo, o ir e vir de versões escritas, revisadas, editadas, ir e vir de textos extras e imagens de capa, acompanhados de mil e-mails burocráticos. Quem passou uma vida se especializando em procrastinação toma um susto danado quando um projeto calha de ser, enfim, finalizado. E eu procrastinei esse livro por oito anos. Vira um filho, um projeto, quando a gente nina ele por tanto tempo. E, como um filho, dá medo de soltar no mundo. 

Aí um dia você decide que é o momento de soltar a mão. Você dá um dinheiro na mão do seu filho e ele vai sozinho até a padaria.

Você aprova a versão final do seu livro e manda para a gráfica.

O filho volta uns minutos que pareceram horas depois, com uns centavos de troco e uma baguete. 

Chega um e-mail da editora dizendo que seu livro está em pré-venda nas livrarias. 

Naquela noite, acordei várias vezes de um pesadelo genérico, suada e com taquicardia, com a certeza retumbante de que tinha enviado o arquivo errado à editora e que eles publicavam uma versão antiga, não revisada. 


À tarde, ouço a conversa online do marido com um funcionário novo. "O que faz sua esposa?', pergunta o funcionário, me vendo trabalhar ao fundo da chamada por câmera. "She's an illustrator and a published writer", Allex responde. Passo o dia todo animada e simultaneamente aflita. Como quem ganhou na loteria mas não sabe o que fazer com o dinheiro.

Na manhã seguinte, uma leitora me envia uma mensagem pelo Instagram com um "Parabéns!" e uma foto de tela. Demoro para entender o que estou olhando. Quando entendo, suspeito que seja mentira. É pegadinha, penso, lembrando daquela vez na escola em que recebi um bilhete de Correio Elegante do menino de quem eu gostava; só para descobrir, meses depois, que o bilhete fora fabricado pelo valentão da escola, com o mero intuito de me ver animada com uma mentira e rir de mim. 

"O que foi?", Allex pergunta.

"Meu livro está em nono lugar dos lançamentos mais vendidos na categoria Biografia e Histórias Reais, na Amazon Brasil."

"Uau! Parabéns!", ele diz.

"É de verdade?", pergunto, ainda confusa, meu cérebro enevoado por décadas de Síndrome do Impostor.

"Deixa eu ver", ele diz, apanhando o celular da minha mão. "É sim! Parabéns, Pastel!"

 BUUUUUUM!

Começo a receber mensagens com recibos eletrônicos. "Comprei seu livro!", dizem. "Allex, outra pessoa que não é minha mãe comprou meu livro!!", berro da cozinha. "Parabéns!", ele responde do quarto. 

"Seu livro já tá vendendo, mamãe?", perguntam as crianças.

"Tá sim."

"Então eu quero comprar um", diz Laura, saindo para pegar sua bolsinha de dinheiro. "Quanto custa?"

A mente é tão agitada durante o fim de semana, que aceito o convite de Allex para correr, no sábado e no domingo. As crianças vão junto. Se normalmente conversamos durante a corrida, desta vez fico quieta, sem conseguir organizar os pensamentos. Voltamos para casa, abro um vinho, e não consigo parar de olhar os sites das livrarias para ver se meu livro está mesmo lá. Está. Meu livro, minha capa, meu nome. 

Caspita

Não consigo fazer nada do que havia me proposto a fazer nesses dois dias. Faço cálculos de como mandar trazer setenta livros do Brasil ao Canadá para poder autografá-los em janeiro, uma vez que meus planos de viajar ao Brasil no começo do ano que vem foram arruinados pela pandemia. Tadinha dela, continuou tentando fazer planos em 2020. Não aprendeu nada. 


Nasce a segunda-feira e meu cérebro dá uma pane geral. Levo as crianças para a escola, e, quando chego em casa, volto direto para cama, onde durmo profundamente até a hora de buscá-las outra vez. 

Hoje, descansada, deixo o sol das temperaturas negativas entrar pela janela, e refletir nas tintas coloridas que uso para terminar uma encomenda. Há caricaturas para entregar e textos para escrever. 

Meu livro está publicado. 

A história que precede esse blog, escrita por quem amadureceu um bocado desde aquele primeiro post. A viagem que me fez voltar a escrever, que me fez começar uma família, que me fez começar a questionar, devagar, quem eu era de verdade.

Quando comecei a escrever essa história, queria recheá-la de receitas. Mas logo me dei conta de que elas não cabiam ali. Pois a viagem que eu fazia, ainda que fosse um descobrimento de comidas deliciosas, abria caminho por mares mais profundos e matas mais fechadas. 

É a história das memórias que escapam à desconstrução de alguém. Lembranças que eu precisei escrever para me compreender. Vergonhas das quais aprendi a rir. Muitas, muitas vergonhas.O nome do livro não é à toa: "Brutta Figura". "Fare una brutta figura" quer dizer "fazer feio" ou "passar vergonha" em italiano.

É irônico pensar no quanto lutei contra minha Síndrome do Impostor em todo o processo desse livro. E no fim ele está aqui: escrito, terminado, publicado, pago com meu próprio trabalho de artista, com uma capa pintada por mim. 

Agora que a bomba caiu, olho em volta para ver o estrago. Não é vergonha que vejo, mas orgulho. Quando a poeira abaixa, vejo uma sombra à distância. Meu Senhorzinho de Terno. Minha Sindrome do Impostor. Ele olha para trás, carrancudo, e acena, na esperança de ser convidado de volta. Eu rio. Mando ele à m*rda e volto para casa, que eu tenho um livro novo para escrever.

...

 

Meu livro, Brutta Figura, está em pré-venda até dia 8 de janeiro, quando será lançado. Essa é uma fase importante. As livrarias usam a pré-venda como termômetro para decidir quantos livros impressos encomendar à editora. 

A pré-venda da versão e-book pode ser encontrada nos seguintes sites:

Amazon Brasil:  https://www.amazon.com.br/Brutta-Figura-Ana-Elisa-Granziera-ebook/dp/B08PG1FKZY/ref=tmm_kin_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr=

Martins Fontes Paulista: https://www.martinsfontespaulista.com.br/brutta%20figura#1

Livraria da Travessa: https://www.travessa.com.br/brutta-f-9-igura-1-ed-2021/artigo/27a61158-7a3b-48ad-bcab-c5936e4a1468

Fnac Portugal: https://www.fnac.pt/livre-numerique/a8270352/Brutta-Figura#FORMAT=ePub%23omnsearchpos=1

Kobo Books: https://www.kobo.com/br/pt/ebook/brutta-figura

Google Books: https://play.google.com/store/books/details/Ana_Elisa_Granziera_Brutta_Figura?id=GlMMEAAAQBAJ

Bertrand Livreiros: https://www.bertrand.pt/pesquisa/brutta+figura

A pré-venda da versão impressa pode ser encontrada nos seguintes sites, por enquanto apenas no Brasil (Em Portugal, o livro pode ser encomendado pela Bertrand Livreiros e pela Fnac Portugal):

Martins Fontes Paulista: https://www.martinsfontespaulista.com.br/brutta%20figura#1

Livraria da Travessa: https://www.travessa.com.br/brutta-f-9-igura-1-ed-2021/artigo/27a61158-7a3b-48ad-bcab-c5936e4a1468

A partir de 8 de janeiro, o livro impresso poderá ser adquirido em todos esses endereços, e mais no site da editora, que ENVIA PARA O MUNDO TODO, caso você não esteja nem no Brasil nem em Portugal:

https://www.chiadobooks.com/

Enquanto isso, você também pode entrar em contato com as livrarias e ENCOMENDAR o livro impresso. 

Eu terei acesso aos impressos em janeiro, e precisarei transportá-los do Brasil para o Canadá. Assim que tiver os livros em mãos, farei a venda dos autografados. ;) 

Quem estiver me acompanhando no Instagram, fique de olho, pois tenho algumas lives e stories programados para falar mais a respeito do livro. 

No mais, preciso agradecer a cada um de vocês que me leram durante todos esses anos e principalmente àqueles que me mandavam mensagens me incentivando a escrever esse livro. Não fosse pelo apoio de vocês, eu talvez nunca tivesse dado esse passo. Escrevi esse livro pensando em vocês. Espero que gostem. ^_^

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Múltiplas escolhas e um molho de salmão

   

Eu já não me surpreendo mais quando neva pela primeira vez no dia em que resolvo voltar a correr. É claro que neva. É claro que aquele dia lindo tem temperaturas negativas, na manhã em que me animo, enfim, a calçar meus tênis de corrida, ainda novos, desde o fatídico dia em que quebrei meu pé. Mas neve e frio nunca me impediram antes, e assim fui, depois de deixar as crianças na escola, correr no parque, sobre lama fria, folhas secas, e flocos de gelo que fazem a cidade que ainda veste tons de outono parecer um enorme cappuccino, castanho-avermelhado, entremeado de espuma branca.


Canto paródias de Frozen na minha cabeça. "Você quer correr na ne-veeeee? Escorregando de montão! Você pode até se segurar, mas se bobear, vai cair no chãaaaaao!" Sigo a passos curtos, que naturalmente evitam impacto em meus calcanhares, e sigo sentido ora o vento doído que resseca o rosto, ora o movimento dos tornozelos ao se adaptarem ao relevo irregular, na tentativa de me divertir e ao mesmo tempo estar alerta aos sinais do retorno iminente da maldita fascite plantar. 


Paro para ouvir passarinhos. Procurá-los por entre os galhos. Encontro alguns Robins, das cores das folhas de maple e carvalho que caem ao chão, que ainda não voaram para terras mais quentes. Robin, meu Sabiá canadense. Corro sorrindo, como sempre fiz, alegre por não sentir dor nos pés, alegre pelo frio que chega, me mandando preparar um chá e abrir um livro, enquanto um cozido lento espalha seu perfume pela casa. Um frio que pede música calma e jogos de tabuleiro antes de dormir. Mas um frio que faz meus filhos rirem e fazerem planos de patinar no gelo e levar o trenó para descer a longa e íngreme colina de Albion Hills. "Você faz chocolate quente, mamãe?", pede Thomas. "Faço sim, filho, a gente leva chocolate para descer de trenó no parque. Mas tem que nevar muuuuuito mais do que isso ainda", explico.

Salto displicentemente um tronco, enquanto penso num vinho tinto no fim do dia. Presto atenção para atravessar as tábuas geladas sobre o córrego. Aventuras miniatura que me fazem sentir criança novamente. Dou bom dia a quem vem correndo na direção contrária, dou bom dia a quem passeia seus imensos cães pelas trilhas, dou bom dia aos esquilos e a um casal de Mourning Doves que raramente vejo por aqui. Sou uma criança que corre no mato, vestida de Branca de Neve. 


Volto para casa agitada, com vontades maiores que meu dia. Quero escrever um texto no blog sobre o fettuccine com salmão. Quero pintar pinturas novas para colocar à venda na loja online. Quero desenhar aquele cartum inspirado na tarde anterior. Quero continuar a escrever aquelas crônicas do meu próximo livro. Quero terminar de editar meu e-book de poesia. Quero procurar a receita de sopa de cogumelos que Thomas me pediu para preparar. Quero ir ao mercado comprar geleia de damasco.Quero sair para comprar uns presentes de Natal das crianças e taças de espumante. Quero chamar uma amiga para um café. Quero ir à biblioteca apanhar os outros dois livros que reservei, e que vão somar à pilha dos outros oito livros que pedi e chegaram ao mesmo tempo.

A vida às vezes parece muito com aquela pilha de livros da biblioteca. Quero ler todos, mas por qual começar? E se eu começar esse e não der tempo de ler aquele outro antes de devolver? Posso lê-los em ordem cronológica segundo sua chegada em casa. Mas e se este que chegou primeiro não for o que eu realmente quero ler nesse momento? Arrisco pegar por último aquele que tenho que devolver primeiro?

Pinto ou desenho? Desenho ou escrevo? Escrevo ou vou ao mercado? Vou ao mercado ou marco aquele café? Marco aquele café ou resolvo as burocracias da loja? Resolvo as burocracias da loja ou saio para comprar os presentes de Natal?

Essa vida de freelancer que levo há tantos anos têm desses minidilemas. Miniproblemas que me deixam agitada e confusa feito criança em loja de brinquedos. Ou feito eu mesma em frente a uma prateleira de geleias. Meu FOMO (Fear Of Missing Out) dispara alarmes em frente a prateleiras de geleia. Framboesa? Morango? Mirtilo? É por isso que já saio de casa pensando em Damasco. Eu quero geleia de damasco. Eu procuro geleia de damasco. Se tiver, ótimo. Se não tiver... Amor, me dá meia hora que eu preciso decidir que geleia levar para casa. 

Durante muitos anos eu fui do time do "tanto faz, você escolhe". O horror de escolher errado me fazia não escolher coisa nenhuma. Eu voltava para casa sem geleia. Eu sentava no sofá e ligava a tv, apanhava o celular, fuçava no youtube, ou, pior, ia lavar uma louça, dobrar meias, passar vassoura, procrastinando magistralmente o momento de decidir o que fazer primeiro da lista cada vez maior de atividades, tarefas e projetos que eu tinha. Prazos são coisas lindas. Prazos me obrigam a tomar decisões. Se você é também um procrastinador nato, talvez sofra também desse medo irracional de escolher.

"Vou fazer macarrão, hoje", anunciou Allex, no sábado, empolgado com a arte de preparar sua própria massa nas últimas semanas.

"Ah, ok, eu pretendia fazer também", comentei.

"Eu queria fazer alguma massa recheada", explicou. "O que VOCÊ queria fazer?"

"O fettuccine com salmão defumado que comi em Murano e sobre o qual eu falo no livro."

Ele notou a tensão em meu rosto e perguntou: "o que foi?"

"Ah, não sei. Sei lá. Acho que tanto faz. Você escolhe."

"Olha você de novo." 

"Afe. Verdade. A gente faz os dois. Hoje eu tô afim de fazer o de salmão. Amanhã a gente faz a recheada."

"Assim que eu gosto. A festa do macarrão no fim de semana!"

Naquele dia, ele preparou a massa e eu preparei o molho.Um molho delicioso de salmão defumado e creme de leite, que comi mais de uma vez no Veneto, durante a viagem à Itália que descrevo em meu livro, que está sendo publicado. A massa é um sucesso, e sobra na panela apenas porque há sorvete de pistache de sobremesa. (As crianças aprenderam bem ao longo dos anos a guardar espaço para a sobremesa, mesmo que Thomas tenha passado boa parte de sua primeira infância dizendo que ele tinha um estômago separado para os doces.) 

"Laura, sobrou pizza e sobrou macarrão para o jantar. Qual dos dois você quer, amor?", perguntei, naquela noite. 

"Quero os dois, mamãe!"

"Como assim os dois?"

"Ué, eu gostei dos dois e eu quero os dois. Posso?"

Sustentei seu olhar por um segundo e desatei a rir.

"Pode sim, filha, eu coloco um pouco de macarrão e uma fatia de pizza, fazer o quê?! Fico feliz que você não tenha herdado minhas caraminholas."

"Como assim?"

"Eu teria dito um 'não sei, sei lá, tanto faz, você escolhe'. Teria escolhido nada. Você escolheu tudo. Você quer abundância na sua vida. Isso é lindo! Adorei!"

Preparo um chá. Percebo que já decidi o que fazer hoje. Escrever no blog, criar as promoções de natal da loja online, começar a organizar as histórias do livro novo, organizar as referências das novas pinturas, ir buscar os livros na biblioteca e passar no mercado para comprar a geleia de damasco. 

Se não tiver de damasco, eu compro a que tiver a cor mais bonita. 

A pilha de livros ao lado da cama não parece tão ameaçadora. Apanho aquele que me faz sorrir e separo para ler à noite. O que não fiz hoje fica pra amanhã. E o que fiz hoje virou passado.

...


AVISO: MINHA LOJA ETSY ESTÁ COM DESCONTOS E FRETE GRÁTIS PARA O NATAL DURANTE TODO O MÊS DE NOVEMBRO! VAI LÁ!

 

MOLHO SIMPLES DE SALMÃO COM CREME DE LEITE
(Adaptado de vários sites italianos diferentes, até chegar no que eu lembrava ter comido.)
Rendimento: 4 porções (400g de macarrão, que não precisa ser fettuccine, pode ser penne também)

Ingredientes:

  • 2 colh. (sopa) manteiga + 1 colh (sopa) para finalizar a massa
  • 6-8 cebolinhas, parte branca separada da parte verde, ambas picadas. 
  • 200g salmão defumado (ou fresco, sem pele, ou uma mistura dos dois), picado em pedaços de 2cm
  • 1/3xic. de vinho branco (ou cachaça - eu não tinha nenhum e confesso que usei tequila)
  • 1/2 xic. creme de leite fresco
  • sal e pimenta-do-reino

Preparo:

  1. Numa frigideira em fogo médio, derreta a manteiga e refogue as partes brancas das cebolinhas com uma pitada de sal, apenas até que amoleçam.
  2. Junte o salmão, mais uma pitada de sal, se estiver usando o salmão fresco, e refogue em fogo médio apenas até que o salmão mude de cor. Não deixe a manteiga escurecer. 
  3. Junte o vinho ou o álcool que estiver usando e deixe evaporar. Junte o creme de leite e cozinhe em fogo baixo até que engrosse um pouco. Acerte o sal e a pimenta e tire do fogo, reservando até que a massa esteja cozida. 
  4. Junte a massa escorrida, misture, acrescentando a última colher de manteiga, e polvilhe com as partes verdes das cebolinhas. Acerte o tempero e sirva imediatamente.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Como acalmar fantasmas com um prato de gnocchi

"E o que vai ter de jantar?, perguntou Thomas.

"Gnocchi", respondi, ao que Laura torceu o nariz. "O que foi, criança?"

"Não gosto de gnocchi. A textura, sei lá, eu não gosto."

"Faz um esforço, então, amor? Porque não vai ter outra coisa. O jantar é só gnocchi."

"Eu vou experimentar. Mas eu não sei se vou comer."

"É gnocchi com o quê?", Thomas perguntou.

"O que o quê? Você quer dizer o molho? Gorgonzola."

"GORGONZOLA!!!", os dois exclamaram, animados, em uníssono.

"E pedacinhos de bacon."

"BAAAACOOOOON!!!", de novo.

"Tá vendo? Vocês vão gostar. Era para ser Pancetta no lugar do bacon, mas vai bacon mesmo, que eu não achei pancetta. Só preciso ver se vai dar certo. Faz tempo que a mamãe não faz gnocchi, e existe sempre a possibilidade de zoar tudo. Aí nesse caso a gente inventa outra coisa."

"Ah não", disse Thomas. "VAI DAR CERTO! Eu quero MUITO comer gnocchi com gorgonzola e bacon!"

"Eu também", afirmou Laura. 

Nada melhor que pressão extra na cozinha.

"Tá bom, tá bom.Vão brincar." 

Enquanto eles corriam ao quarto para prosseguir com seus impulsos infantis, apanhei as batatas firmes, pesadas, ásperas, de um cor-de-rosa de telhas empoeiradas de chalés franceses, e comecei a colocá-las na panela de inox repleta de água fria. Gosto de mergulhar os dedos no sal granuloso para lhe roubar um punhado gordo, quando preciso de água do mar envolvendo minha comida. A brincadeira das crianças desapareceu no silêncio daquela tarde cinza, e o toque da panela pesada sobre o vidro do fogão ecoou como numa casa antiga, sozinha na floresta. Minha respiração era o vento soprando nas folhas lá fora, e as interações modernas com embalagens plásticas e geladeira eram todos movimentos invisíveis e automáticos de quem se deixa transportar ao passado, sem nunca sair do lugar.

Vejo minhas batatas cozinhando numa cozinha comprida, de janelas grandes, que deixam entrar a luz clara do céu encoberto de branco, que às vezes incomoda meus olhos infantis. Minhas mãos pequenas estão sobre a mesinha de fórmica, desenhando com as pontas dos dedos na farinha que se derrama do saco. A beirada da cadeira de madeira corta a circulação de minhas pernas, que balançam em direção ao chão. Gosto daquele chão. Ele me provoca uma agradável confusão sensorial. Gosto dos azulejos azul-cobalto, na forma de barras de ouro, do tamanho de barras de chocolate, imaculadamente limpos, foscos, que sempre me parecem feitos de veludo quente. Eles são gelados, duros e lisos, quando estico uma das pernas para acariciá-los com as pontas dos dedos do pé. Eu sempre sei que serei enganada. Mas gosto de acreditar que serão de veludo. Gosto da alegria do microssegundo entre a fantasia e a realidade que precede o choque.

Pisco uma, duas vezes.

Vejo minha avó sentada à minha frente. Ela parece mais frágil e doce do que a mulher dura e ríspida que conheci na infância. Suas roupas antigas, que antes cobriram um corpo roliço e orgulhoso, agora pendem como num cabide do armário de alguém que se foi. Abro meu caderno de receitas naquela mesa de fórmica e presto atenção à sua voz trêmula e arranhada. Seus olhos são redondos e brilhantes como os meus. Três batatas grandes.Um ovo. Farinha quanto baste, eu rabisco no meu caderno. A imprecisão de quem cozinha com as mãos. Beijo as rugas de seu rosto gelado quando me levanto para ir embora. Meus pés adultos firmes no chão de veludo. Há uma poeira fina sobre os azulejos azuis que nunca mais vou ver.

"Mamãe! Como está indo o jantar?"

Desperto. Thomas está ao meu lado, observando enquanto meço a farinha.

"Oi, amor. Está indo bem!"

"Ótimo! Porque você sabe que eu gosto da minha comida bem feita!", ele explica, dedo em riste, olhos fechados, como quem faz um discurso. Rio alto. Imagino aquela cena em forma de cartum. 

"Podexá, Thomas, vai ficar uma delícia!"

Um sorriso macio persevera em minha boca enquanto sigo seus passos até a estante de livros. Ele escolhe um volume do Asterix que acredita ter lido menos vezes que todos os outros, e se abandona no sofá, escondendo o rosto atrás do livro.

Apanho a panela pelas duas alças laterais. Há um estranho conforto em segurar uma panela pesada com as duas mãos. Algo de preparar comida que alimenta para pessoas com apetite. As batatas, já escorridas, deixam escapar um vapor espesso que queima minhas narinas quando me aproximo para sentir seu aroma. Uso as pontas dos dedos para movê-las da panela quente para o passa-verdura. A pele de minhas mãos já não sente a temperatura como antes. Ela é resistente, mas fina como papel, como a de minha avó. Não me lembro de minha avó materna preparando gnocchi. Só os adultos podiam entrar na cozinha. Mas lembro do pratinho fundo de plástico cor de laranja dos anos 70, fumegando aquele mesmo vapor intenso, enquanto era carregado pela mão de minha mãe até a mesa das crianças. Lembro do molho de tomate grosso sobre as bolotinhas brancas. Lembro do cheiro. Houve o dia em que preparei favas brancas no forno com molho de tomate, e o perfume daquele molho,aquele molho aquecido no forno, tinha exatamente o cheiro do gnocchi no pratinho de plástico, e eu chorava sozinha na cozinha sem saber por quê.

Retirar o passa-verdura de cima da tigela é como abrir a tampa de um minhocário, revelando as minhocas de batata amontoadas, entrelaçadas, ainda despencando uma sobre a outra devagar, num movimento lento mas repentino. Minhas avós usavam ovos no gnocchi. Talvez porque não tivessem acesso à batatas secas de que precisavam, talvez porque a farinha não fosse de boa qualidade, talvez porque tenham aprendido assim, e aquelas do passado raramente questionavam. Num ímpeto de rebeldia que posso ter, e consciente da aridez do ar do outono canadense, decido não usar nenhum, correndo o risco de minha ousadia ser punida pelos fantasmas que me cercam.

A alegria infantil de jogar comida da tigela sobre uma bancada. De espalhar farinha como areia na praia. De mexer em batatas como se fosse massinha. Cozinha italiana traz felicidade porque o cozinheiro brinca com a comida. 

"A gente vai comer gnocchi", eu costumava dizer às crianças quando eles eram pequenos, na expectativa de que eles achassem que eu falava do cachorro. Mas eles sempre foram mais espertos que minha brincadeira sem graça. Dou-me conta de que a brincadeira não faz mais sentido.

Chacoalho a cabeça com força, tentando apagar aquele pensamento como quem deleta um desenho de um Traço Mágico. 

"Posso fazer também, mamãe?", Laura pergunta, ao me ver rolando a última parte de massa sob as palmas. Eu não me dera conta de sua aproximação, e me atrapalho para responder, como se convidada de repente a um compromisso que não quero ir. Meu primeiro impulso é dizer não. Não pode. Quero terminar isso logo.Quero que saia perfeito. Então respiro. "Então, posso? Por favor!", ela repete, num sorriso largo de dentes de leite que faltam e permanentes surgindo, olhos brilhantes por trás das lentes dos óculos. 

"Você quer aprender a rolar os gnocchi no garfo?", pergunto. 

"Como assim?"

"Eu te mostro. Vamos só testar o gnocchi para ver se ele está bom, antes de cortar tudo."

Corto a ponta de uma das serpentes de batata e a solto na água que borbulha gorda e lenta feito lava num vulcão, com um sonoro e gratificante PLOC!. Um sacrifício aos antepassados. A certeza de que não serei punida por ter deixado os ovos de fora. O gnocco solitário descansa no fundo do vulcão. Quando desiste de lutar batalhas terrenas, sua alma leve sobe à superfície e é resgatado por minha paciente escumadeira. Corto o gnocco ao meio. Ele resiste por um microssegundo à faca, como um marshmallow. Experimento. Perfeito.

"Por que você fez isso, mamãe?"

'Porque se esse pedacinho não ficasse bom, ainda dava tempo de juntar tudo aquilo de novo e corrigir a textura. Botar mais farinha, ou ovo. Mas se você cozinhar tudo de uma vez sem testar, e estiver ruim, você vai ter um enorme prato de gnocchi ruim de jantar."

"Ah tá."

Pensei na minha travessa de cerâmica francesa, branca, na minha cozinhazinha, minha "cucinetta", repleta de gnocchi desmilinguidos,desmanchando dentro de um molho ralo, como quando o purê de batatas aguado da cantina escolar da minha infância se misturava ao molho de tomate ácido que escorria da carne moída em meu prato.

Laura adora o movimento rápido e ritmado do cortador de massa contra a bancada. Plac, plac, plac. E os travesseirinhos de massa saltam para o lado. "Agora você faz assim", explico, apanhando a parte de trás do garfo e pressionando o travesseiro com o dedão contra os dentes. "Agora você rola assim, rápido e apertando só o suficiente para ele ficar marcado."

"Pra ficar mais bonito?"

"Também. Mas é para o molho grudar melhor. Minha avó, a mãe do vovô, tinha um ralador de queijo que era aberto, não era que nem o nosso, e ela usava a parte detrás do ralador ao invés do garfo. Aí os gnocchi ficavam cheios de bolinhas."

"É assim?", ela repete o movimento. 

"Perfeito. Thomas! Quer fazer também?"

Ele pula do sofá e vem ajudar. Corto o restante da massa enquanto eles passam os pedacinhos nos garfos, às vezes perfeitamente, outras nem tanto, muitas vezes transformando os gnocchi em formas compridas que os faz parecer parafusos. Talvez um dia eles lembrem de como a farinha branca na bancada de pedra cinza parece neve polvilhada sobre um lago congelado.

As crianças vão para o banho enquanto arrumo tudo, recolhendo a neve do lago, enquanto os gnocchi descansam um pouco numa assadeira grande, secando. Douro pedaços de bacon na panela vermelha. Eles não fazem parte da receita do molho, mas fazem parte da memória. Do prato de gnocchi al gorgonzola que comi em minha primeira noite em Florença. O prato que me trouxe conforto depois de um dia de intempéries e impropérios. 

Retiro o bacon para um pratinho e preparo o molho de gorgonzola como de costume, na mesma panela, não sem antes recolher o excesso de gordura do bacon para uma tigelinha, a ser usada para saltear legumes depois. Aprendi a gostar de gorgonzola com uma amiga que tive na infância, que também me mostrou discos de corais búlgaros e as histórias da Vertigo. Mas foi na Itália que provei o queijo em forma de molho. O perfume pungente do queijo aquecido, esmagado pela colher de pau, leva-me àquela noite em Florença, o último dia dos meus vinte e quatro anos, e há uma alegria quente em meu peito quando começo a finalizar o prato. Quando os gnocchi sobem à superfície da água quente e eu os transporto carinhosamente ao molho. 

"Tá vendo, Laura? Quando o gnocchi sobe assim, é porque está pronto. Que nem Spätzle."

"Eu também não gosto de Spätzle, mamãe."

"Eu sei Laura, você faz os dois lados da família rolarem no túmulo: o alemão e o italiano. A parte boa é que todo mundo fica ofendido igual."

Mas a alegria é momentaneamente interrompida quando me dou conta de que a porção de gnocchi não é tão farta quanto eu esperava. Há algo de errado na receita. Era para ter gnocchi para seis pessoas, e essa panela alimenta apenas quatro, male male

Preparo uma salada rápida de rúcula e tomates. Pronto. Problema solucionado. Alegria de volta.

Não tenho tempo de fotografar a panela na mesa antes que as crianças comecem a se servir. 

"O jantar saiu direitinho, Thomas?", brinco, enquanto faço a foto às pressas do meu prato sob a luz do abajur.

"É o melhor gnocchi da minha vida!", ele diz. Tudo para Thomas é sempre o melhor ou o pior da vida dele.

"Gostou, Laura?"

"Eu adorei! Esse gnocchi tá muito bom! Esse você pode fazer. Mas só esse. Os outros não."

"Só tem um defeito", Allex diz. 

"Tem pouco, né?", admito.

"Exatamente."

Jantamos enquanto lhes conto sobre a noite em que comi aquele prato, sozinha, do outro lado do mundo. Imagino nós quatro andando pelas ruas de Florença, à noite, num futuro qualquer. Imagino Thomas pedindo gnocchi al gorgonzola numa osteria escolhida ao acaso. Pergunto-me se ele vai fechar os olhos e, perdido no perfume do queijo fumegante do prato que o garçom lhe coloca à frente, vai lembrar de seus dedos finos rolando a massa de batatas sobre o garfo na cozinha de sua infância em Toronto. 

...

GNOCCHI AL GORGONZOLA (com ou sem bacon)

(do livro Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, de Marcella Hazan)

Rendimento: a receita original diz 6 porçôes, mas são 4, se você tiver um acompanhamento, ou 3 como principal).

Ingredientes:

  • 675g batatas, de preferência as de casca cor-de-rosa, que têm menos umidade
  • 1 1/2 xic. farinha de trigo

 (molho)

  • 115g queijo gorngonzola, em temperatura ambiente
  • 1/3 xic. leite
  • 3 colh. (sopa) manteiga
  • 1/2 xic. creme de leite fresco
  • 1/3 xic. parmesão ralado na hora e mais para ser levado à mesa
  • 3 fatias de bacon, cortado em tirinhas no sentido da largura (opcional)

NOTA: o molho é bastante para seis porções de gnocchi (ou de macarrão, 100g de massa crua por pessoa). Caso queira aumentar a receita, use 1/2 xic. de farinha para cada 225g de batata. Para quatro porções fartas eu pretendo aumentar para 800g de batata e 2xic. de farinha da próxima vez.

 

Preparo:

  1. Coloque as batatas inteiras na panela (procure usar batatas que sejam mais ou menos do mesmo tamanho, para que fiquem prontas ao mesmo tempo). Cubra de água fria com sal e leve à fervura. Cozinhe até que um garfo entre facilmente nas batatas, mas sem que se desmanchem. 
  2. Escorra bem as batatas e volte-as à panela quente, com o fogo desligado, para que o restane de umidade evapore completamente. 
  3. Passe as batatas num passa-verdura com os discos menores, ou num amassador de batatas. Não se incomode em descascar. A maior parte das cascas vai ser separada pelo próprio aparelho, ou dará sabor ao gnocchi. As cascas que forem moídas junto das batatas não ficam visíveis.
  4. Misture metade da farinha ao purê de batatas quente com uma colher. Despeje na bancada a mistura e comece a acrescentar o restante da farinha aos poucos. Aí é que entra a mnha avó e o "farinha quanto baste". O ar com 30% de umidade de Toronto no Outono, mais as batatas bem secas, fez com que bastasse 1 xic. de farinha para o gnocchi pegar ponto. No verão úmido talvez precisasse de mais. Dependendo das suas batatas e do quanto elas cozinharam, isso também pode mudar. Acrescente farinha sempre aos poucos, e vá sovando. Você quer uma massa que sove facilmente, mas que ainda grude ligeiramente nos seus dedos se você afundá-los na massa com vontade. Minha massa estava naquela linha tênue de ainda estar úmida mas começar a desgrudar sozinha da bancada. Você pode acabar usando menos farinha do que o necessário, ou um pouco mais. O importante é o ponto. Só cuidado, pois excesso de farinha torna os gnocchi pesados.
  5. Divida a massa em três ou quatro partes e role sob as palmas das mãos, como quem faz cobrinhas de massinha, polvilhando farinha na bancada se necessário. (Caso a sua massa já não esteja grudando muito, não polvilhe farinha, ou a massa vai escorregar ao invés de rolar, e você vai ter mais trabalho pra formar as cobrinhas). Os cilindros de massa devem ter mais ou menos 2,5cm de largura. Com uma faca ou raspador de massa, corte um pedaço de mais ou menos 2cm. Cozinhe-o em água fervente com sal até que ele suba à superfície. O gnocco deve ser retirado imediatamente. Experimente. Ele deve resistir à mordida apenas o suficiente para então se desmanchar enquanto você mastiga. Deve ser leve e macio. Se o gnocco estiver se desmanchando na água ou se desmilinguir na escumadeira, pare tudo, junte a massa toda de novo e acrescente um ovo à massa e um pouquinho de farinha se necessário. Sove novamente, divida e role as cobrinhas de novo.
  6. Corte todos os gnocchi com 1,8-2cm de tamanho. Um por um, role-os nas costas de um garfo, pressionando a massa com o dedo, rolando-o para fora do garfo, como quem tenta separar duas folhas de papel esfregando uma na outra. O gnocco deve ter uma cavidade de um lado e as marcas do dente do outro. Alguns vão ficar lindos e outros uma droga,mas todos vão ficar gostosos. ;) Polvilhe os gnocchi com farinha para que não grudem e deixe que descansem e sequem enquanto você deixa o molho pronto.
  7. Quando o molho estiver pronto, leve uma panela funda e larga com abudante água salgada à fervura e separe uma travessa aquecida que comporte todos os gnocchi. Quanto mais larga a panela melhor, pois você pode cozinhar mais gnocchi de uma vez. Quando a água ferver, coloque nela uma parte dos gnocchi. Imediatamente após subirem, retire-os com uma escumadeira. (Vá testando: se tiverem gosto de farinha, precisam ficar mais alguns segundos, se estiverem desmanchando, retire-os um pouco antes.) Vá colocando os gnocchi cozidos na travessa, cobrindo com uma parte do molho e polvilhando parmesão. Prossiga até que todos os gnocchi estejam cozidos e recobertos de molho. 
  8. Polvilhe com o bacon dourado, se estiver usando e sirva. Como é um prato pesado, uma salada de folhas amargas para acompanhar é mais do que benvinda.

(molho)

  1. Caso esteja usando o bacon, coloque as tirinhas numa frigideira fria e ligue o fogo médio-forte, sem nenhuma gordura extra. Mexa às vezes para que dourem por igual. Retire com uma escumadeira para um pratinho, quando estiverem dourados e crocantes. Escorra a gordura num potinho e leve à geladeira para usar em outro preparo no lugar da manteiga ou azeite.
  2. Para o molho, coloque o queijo esmigalhado, o leite e a manteiga  em uma frigideira. A minha é grande o bastante para comportar os gnocchi. Caso não seja o seu caso, na hora de preparar os gnocchi, tenha à mão uma travessa aquecida grande o bastante para os gnocchi e o molho que você retirar da frigideira. Leve ao fogo baixo. Misture e amasse o o queijo até que se dissolva completamente. Cozinhe por um minuto ou dois até que fique denso e cremoso. Junte o creme de leite e cozinhe, em fogo baixo, até que o creme reduza um pouco. Desligue o fogo e experimente. Acerte o sal, se necessário.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Soufflé de terça-feira

Faltava me deixar ir. Faltava soltar das beiradas, para aprender a nadar. Antes de nadar, às braçadas, com intenção, é preciso aprender a boiar.A flutuar por cima da água, à deriva. É preciso aprender a soltar bolhinhas embaixo d'água, saber relaxar quando submersa, saber como manter os pulmões plenos de calma antes do momento de vir à tona.Você pode atravessar toda uma piscina se agarrando firme à boias coloridas que separam as raias. Mas não está nadando. 

Tenho me deixado boiar. Solto as beiradas, relaxo, fecho os olhos, sinto a água passar por mim. A água da chuva fina que pinga das beiradas do capuz, pingando na ponta do meu nariz, enquanto caminho sem pressa por uma trilha do parque escolhida ao acaso. 

É segunda-feira. As crianças foram entregues à escola, e, nos segundos que meus passos levam para me afastar do movimento de pais e filhos, escolho um caminho para me levar à biblioteca, onde pretendo apanhar o livro que encomendei, e devolver uns outros já lidos. O céu encoberto pesa sobre a cidade, mantendo por sobre todos os sujeitos e objetos um predicado melancólico. Ninguém que não precise está do lado de fora. Quando meus pés me levam a uma das entradas do parque, dou-me conta de que sou a única ali que não tem um cão para passear.

Eu me passeio. Passeio lobos e coiotes dentro de mim. Passeio Cérbero e rio de suas três cabeças farejando esquilos. Passeio o espírito amoroso de Gnocchi.


Flutuo na floresta. Deixo ela passar por mim. Os sentidos transbordam, e minha mente começa a buscar palavras para organizá-los. Paro sob um galho grosso de carvalho, de folhas da cor de um vinho antigo, e, protegida das gotas mais gordas da chuva intermitente, escrevo aquelas impressões num aplicativo de notas do celular. 

A sensação de criar é de alívio impaciente, como o prazer paradoxal de se enfim arrancar uma farpa do dedo. Alívio de ter arrancado aquilo de dentro de mim. 

Demoro uma hora para chegar à biblioteca. Sei disso, porque a agitação da rua obriga uma parte minha a afastar a manga do casaco e olhar o relógio, num movimento automático e sem intenção. Pavlov na vida civilizada. 

Máscara, hand-sanitizer, good morning, cheiro de livros, o apito agudo de um código de barras escaneado, hand-satinizer, have a good day, vento gelado, chuva no rosto, alívio de estar sem mordaça.

Olho em volta. Procuro um café, mas estão todos fechados nesta manhã de segunda-feira de chuva. Suspiro. Começo a voltar para casa, devagar. Vou preparar mais um cappuccino quando chegar em casa. E uma torrada com manteiga. A caminhada me abriu o apetite outra vez. Minha boca enche de água antecipando o pão quente e o cheiro do café. Minha mente está confinada em suas paredes agora, e eu paro de olhar em volta. Penso num texto escrito para uma aula, em que descrevo a rotina de uma escritora ideal. Lembro dessa ideia absurda que eu tive um dia ter uma rotina tão fechada, tão rígida, tão controlada e inflexível, que viria a me tornar absolutamente miserável, estagnada e calcificada por dentro, aprisionando toda a minha criatividade em calabouços quase inalcançáveis. 

Flâneur. Descubro essa palavra e anoto num papel colado à parede. Gosto de como ela soa quando dita em voz alta, arrastando o r no final até que ele se dissolva, como os vapores de um chá. Soa como "planar". 


Eu fui especialista em planar um dia, atravessando as horas feito um fantasma habitando o sistema. Largara os empregos das nove às seis para ser dona de meu tempo. Trabalhava rápido. Criava meus prazos de forma que comportassem minha vida. Levava o laptop para o clube. Desenhava numa mesa de um café. Preparava meus almoços com calma, e tirava a tarde para longas caminhadas por outros bairros, durante as quais eu deixava a mente relaxar e buscar as soluções gráficas para os logotipos e embalagens que precisava entregar aos clientes. Preparava um bolo quando acabava a luz. Visitava o MASP numa terça à tarde. Desenhava gansos no Ibirapuera na quinta de manhã. Tirava uma tarde inteira para parar tudo e maratonar No Reservations, do Anthony Bourdain. 

Você não está trabalhando?, alguém me perguntava. Estou sempre trabalhando, eu respondia. Estou formando ideias. Quando sentar em frente à prancheta, vou precisar de só quinze minutos para colocá-las no papel. 

Papo de louco.

Trabalho era entregue. Contas, pagas. A vida era minha. Mas apenas minha. Planava solitária. Todos à minha volta trabalhavam dez horas por dia em escritórios de multinacionais ou doze horas por dia na criação de agências de publicidade. Eu dançava em descompasso com a música. A louca que valsa na pista cheia da balada eletrônica. Tenho memórias vívidas de quando assisti ao filme O Diabo Veste Prada. Aquela rotina insana de trabalho mentia um glamour aliciante. Acreditei que aquela era a vida dos meus amigos. 

A tragédia de ser jovem e não ter a firmeza de sua convicção. Boiar por muito tempo, e, ao levantar a cabeça da água, perceber que está sozinha na piscina. A balada acontece em terra firme. E na superfície, ela parece mais divertida. "Estou trabalhando tanto, que não tenho mais tempo para nada". As palavras deixam seus lábios antes que você perceba. A onda de aprovação que se segue te arrasta para o fundo. E você percebe que não sabe mais soltar bolhinhas embaixo d'água, quando começa a dizer por aí que anda muito "produtiva".

A mais fácil síndrome de Estocolmo da modernidade é aquela causada por nossa própria insegurança em seguir nosso caminho quando ele parece solitário. Como um passarinho que entra voluntariamente na gaiola porque tem medo da amplitude do céu. Um peixe que prefere o aquário lotado ao mar.

Ironia das ironias que as paredes do meu aquário tenham se rompido num ano de quarentena. Mas aceito de bom grado o complexo senso de humor do universo.

"Rotinas rígidas matam você por dentro", disse uma pessoa linda que fez meu mapa astral de presente, sem saber que o presente que ela me dava era o da validação de uma sensação que me queimava por dentro: as rotinas que eu me criara me traziam mais medo, mais insegurança, mais controle, e me mantinham afastada da minha natureza. Sentar em frente ao computador em horário comercial não me tornava mais produtiva, mas produzia mais medo da página em branco. Entregar um trabalho não era mais o sinal de que eu podia relaxar e ler um livro, mas era o estopim da angústia por não ter outro trabalho a entregar logo em seguida. 

"Flâneur", declamo, no meio da rua, para mim mesma, despertando de meu torpor autoanalítico, enquanto me aproximo da portaria do prédio. Máscara, elevador, chaves tilintando e estalando a fechadura. Aaaah, fora mordaça. Lavar as mãos. Muito bem. Largo meu novo livro sobre a mesa e abro o laptop. Corto o pão enquanto a máquina de café faz seus barulhos. Hmmmm... café. Meu computador pisca 10:15AM na tela, como se fosse uma informação relevante. 

Num movimento rápido e desajeitado, viro o corpo na água, e começo a nadar. Braçadas firmes, decididas. Aprecio a poesia da manteiga quente escorrendo pelos furinhos do pão em direção ao prato. Um gole farto de cappuccino. Lambo automaticamente a espuma que se prende aos lábios. E começo a escrever uma história que deveria ser a respeito de preparar um soufflé doce numa noite de terça. Que não parece ser, mas é. E eu sei que esse texto parece uma louca valsando numa pista de balada eletrônica. Mas soufflé de terça tem esse gosto. Soufflé de terça tem perfume de gente que caminha sem pressa pela rua agitada. Soufflé de terça é leve como uma nuvem, quando a gente pára no meio da floresta para olhar para cima. É doce como se permitir ser quem você é sem nunca mais pedir desculpas. 

...

Lembre-se: quem produz é fábrica. Eu sou um ser vivo. Ser e viver bastam para validar uma existência. 

SOUFFLÉ DE QUEIJO CREMOSO e calda de amoras

(Do livro Pure Dessert, de Alice Medrich)

 

Ingredientes:

  • 1 xic. de queijo Quark (queijo Quark tem gosto e textura de Labneh, aquele queijinho que a gente obtém quando deixa o iogurte sorando até ficar bem espesso. Acredito que o Quark possa ser substituído bem dessa forma)
  • 3 ovos grandes, separados
  • 3 colh.(sopa) farinha de trigo
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/8colh (chá) cremor tártaro (o cremor tártaro é um pó branco ácido, usado para estabilizar as claras. Pode ser susbtituído por uma colher (chá) suco de limão ou vinagre)
  • 1/4 (xic) + 1 colh. (sopa) açúcar, e mais para polvilhar

(Calda de amoras - opcional, prepare antes do soufflé)

  • 1 xic. amoras frescas ou congeladas (ou outra fruta vermelha de sua escolha)
  • 1 colh. (sopa) açúcar
  • 1 colh. (sopa) água
  • algumas gotas de suco de limão,ou a gosto

 

Preparo:

  1. Posicione a grade do forno no centro do forno e pré-aqueça o forno a 190oC. Unte deliberadamente com manteiga 6 ramequins com capacidade para 1xic. Polvilhe o interior deles com açúcar, girando-os, para que o açúcar recubra todo o fundo e paredes internas dos ramequins. Coloque os ramequins numa assadeira.
  2. Numa tigela média, misture bem o queijo, gemas, farinha, sal e baunilha, até que fique homogêneo.
  3. Numa tigela grande da batedeira, coloque as claras e o cremor tártaro (ou limão, ou vinagre) e comece a bater devagar até que forme picos macios e leves quando levantar os batedores. 
  4. Gradualmente acrescente o açúcar, batendo sempre, até que as claras fiquem com picos firmes mas ainda brilhantes. 
  5. Misture delicada mas rapidamente as claras batidas ao creme de queijo, usando uma espátula, com movimentos que puxem o fundo, raspando as paredes da tigela e "dobrando"a massa por cima de si mesma, preservando o ar das claras. Pare quando não houver mais sinais de clara na massa. 
  6. Divida a massa entre os ramequins igualmente. Polvilhe cada um deles com mais açúcar e leve ao forno por 15-18 minutos, até que tenham crescido e estejam dourados por cima. Sirva imediatamente com a calda de amoras. 
  7. Para a calda de amoras, basta colocar tudo numa panela e cozinhar até que as amoras soltem seus sucos e comecem a se desmanchar. O líquido precisa ter a consistência de um xarope ralo. A calda pode ser guardada em pote fechado na geladeira por alguns dias. Ela deve ser feita ANTES de se preparar o soufflé.

NOTA: Os sufflés podem ser preparados com antecedência. Não polvilhe com açúcar. Cubra a assadeira com papel alumínio, filme plástico ou o que tiver, para que não ressequem, e leve à geladeira. Eles podem ficar lá por 24h. Tire da geladeira durante o tempo que leva para pré-aquecer o forno, retire o papel de cima, polvilhe com açúcar e asse normalmente. Talvez demorem um minuto ou dois a mais para assar. Eles crescem pouca coisa menos se preparados com antecedência, mas continuam fofos, leves e deliciosos.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Um muffin de peras numa manhã de escola

 

Parque Arrowhead, ao norte de Toronto. Um passeio de domingo.

Períodos de adaptação.

Ainda que esse ano inteiro pareça uma adaptação atrás da outra, o início do ano escolar é sempre uma fase instável, com ou sem pandemia. A gente espera que seja igual à última vez e tenta se preparar sempre do mesmo jeito. Material escolar em dia, roupas que cabem nos novos corpinhos espichados durante o verão, despertadores acertados, e um ar confiante de que a rotina que você lembra de meses atrás vai continuar funcionando. 

Mas as crianças não são as mesmas do ano passado. Elas cresceram. Elas são mais independentes. Elas mudaram seus padrões de sono e seus hábitos matutinos. E nós também não somos os mesmos adultos do ano passado. Também crescemos, ainda que não visivelmente, ainda que nossas calças não fiquem curtas, deixando entrever canelas. E a independência dos pequenos traz luz à nossa,ainda que a surpresa às vezes nos torne reticentes e inclinados a prosseguir com velhos hábitos sem de fato entender se somos ou não necessários.

Ano passado, fazíamos muito por eles. Agora nossas ações são restritas. Fomos promovidos na Parenting Corporation, e agora o trabalho é menos braçal: mãe e pai agora em cargo gerencial.

As crianças acordam primeiro, antes do despertador. São seis da manhã, mas ainda é noite lá fora. A natureza canadense faz questão de deixar claro, antes mesmo do fim do verão, de que o inverno está logo ali, e que é preciso começar a se preparar. Se não preparar a toca com estoque de castanhas e folhas quentinhas, ao menos preparar a mente para os longos meses de frio intenso e céu cinzento que nos esperam. E o sol já logo nos primeiros dias de outono começa a levantar mais tarde, espreguiçando embaixo das cobertas e pedindo mais um tempinho com a cara enfiada no travesseiro.

Thomas e Laura aprenderam a preparar o próprio mingau. Enquanto tomo meu cappuccino no quarto, sentada na cama, massageando o pé machucado e conversando com o marido, ouço os sons da chaleira elétrica em ebulição e do abrir e fechar de potes de aveia, maple syrup, manteiga, canela e peanut butter. 

Quando entro na sala, já vestida, as crianças estão à mesa comendo seu mingau quente, não sem distrações e discussões, e logo levantam a cabeça para me dizer bom dia e pedir para que eu coloque uma música para tocar. "Bastard Son of Odin!",pede Thomas, lembrando da música épica de metal-farofa do Battle Beast, uma banda nórdica cuja vocalista se veste de deusa viking. Metal-farofa é sempre ótimo para levantar os ânimos e fazer todo mundo se mexer. 

Allex já tirou a louça limpa da máquina e encheu os potes térmicos das crianças com água quente. Agora é minha parte:preparar os almoços dos pequenos. Esquentar pequenas porções do que sobrou do jantar do dia anterior ou preparar algo novo do zero: um sanduíche, uma omelete para completar um restinho de arroz. Pensar nos dois lanchinhos extras. Quem come o quê? Quem gosta do quê? Lembre-se que não pode colocar nada com castanhas. Nori (algas) num pote, e iogurte com compota de fruta no outro. Ou bolachas integrais salgadas e cubinhos de queijo, e uvas passas. Ou uma fruta que ambos comam e um pedaço de bolo.

Mas não tem bolo. Deixara para preparar um no fim de semana. Deixara para ir ao mercado no domingo. Mas domingo dera um siricotico na gente, e decidimos pegar o carro e dirigir duas horas até Arrowhead Park, um parque provincial perto de Muskoka, para fazer uma trilha e ver as cores de outono na floresta. É preciso aproveitar os dias de outono sem chuva. Fomos, andamos 9km, vimos a floresta colorida de cima e uma cachoeira linda, onde as crianças usavam uma formação rochosa lisa com escorregador. Passamos o dia todo do lado de fora, jantamos num pub de cidade do interior no caminho de volta e fomos todos dormir exaustos às onze da noite. 

Olhei para as peras na fruteira. Já molinhas e manchadas. Não sobreviveriam na lancheira sem virar purê. E Thomas não gosta de comer pera assim, só a pera. Na despensa havia um restinho de granola. Iogurte na geladeira. E me dei conta de que os planetas culinários se alinhavam e eu tinha exatamente os ingredientes necessários para muffins de pera de uma revistinha da Martha Stewart que guardo há muito tempo e que Laura vive dizendo que quer para ela quando sair de casa. É tua, filha. Pode levar.

Ligo o forno às seis e meia. Laura para o que está fazendo para vir distribuir as forminhas de papel nas cavidades da forma de muffin. "Uau, mamãe! Eu achei que não ia dar, mas deu certinho! Tinha exatamente as forminhas que precisava!"

Alinhamento cósmico.

A massa é simples, como de todo muffin. A farofinha crocante é gostosa de fazer, dedos esfregando granola, farinha e manteiga, feito brincadeira na areia quente da praia. Ignoro o que está acontecendo à minha volta, para não esquecer nenhum ingrediente. Ouço vozes lançadas feito dardos rentes aos meus ouvidos. Cadê minha blusa azul? Thomas, sai do banheiro! Mãe, posso comer pão com geleia depois do mingau? Mãe, manda a sopa de ontem de almoço? Laura, larga o meu robô de Lego! Manhê! A Laura pegou uma peça do meu Lego!

"Pede ajuda pro teu pai", é a resposta de praxe. Sem a correria de se arrumar para o tempo no trânsito em direção ao escritório, papai, relaxado, cuida do que está fora do meu alcance momentâneo. Pandemia teve seus benefícios. Marido trabalhando em casa é bênção. Ouço sua voz catando os dardos por aí. "Escovou os dentes? Você ainda tá de pijama? Vai pentear o cabelo. Dá o papel da escola pra assinar. A cama tá arrumada? Guarda o Lego agora, que a gente já falou que não é pra espalhar Lego de manhã senão não dá pra limpar o quarto! Você deixou o prato na mesa. Tira da mesa e bota na lava-louça. Quem vai guardar as coisas do mingau que vocês fizeram? Ótimo. E quem vai passar um pano na mesa? Obrigado."

Alguns dardos me atingem quando papai se enfia no banho. "Mamãe, olha como eu tô pulando corda!" 

"Laura, muito legal, mas são sete da manhã, os vizinhos vão reclamar dessa pulação toda, e você ainda tá de pijama."
"Tá mamãe. Mas olha só o handstand que minha amiga me ensinou a fazer!
"Laura, de novo, tô orgulhosa de você por saber fazer handstand. Mas eu te pedi pra trocar de roupa duas vezes, seu pai pediu, e você não fez ainda."
"Argh. Tá bom."

Ela pula feito sapo até a porta do quarto.

"Laura! Sem pular! Os vizinhos!"
"Tá booooooooom...! Mas mamãe...", ela volta à cozinha. "Você vai mandar os muffins de lanche?"
"Vou, Laura, agora vai tirar esse pijama e ficar pronta pra sair, por favor."
"Ai, tá bom. Mas do que é o muffin?"
"De pera, Laura. Tô perdendo a paciência. Eu sei o que você tá fazendo. Você fica arrumando uma desculpa atrás da outra pra não cumprir com suas responsabilidades."
"É nada."
"Afe.É só trocar de roupa, Laura. Ó: teu irmão acorda e troca de roupa na hora. Ele tá pronto, e é por isso que ele tá lá sossegado!", aponto para Thomas, afundado contra a almofada fofa do sofá, joelhos flexionados, lendo mais um livro do Asterix pela enésima vez.
"O Thomas não tá pronto. Ele nem escovou o dente, que eu sei."
"Afe. Thomas! Você escovou os dentes?"
"Ahn... não", ele responde, casualmente, e quase surpreso com a demanda.
"Ai, Thomas! Quiéque você tá fazendo aí, lendo? Vai escovar os dentes, menino!"
"Tá vendo?", Laura diz, orgulhosa de si mesma, enquanto observa o irmão fechando o livro bruscamente e arrastando pés aborrecidos em direção ao banheiro.
"Você também, vai lá. Termina de fazer o que você tem que fazer."
"Mas eu quero te ajudar a colocar a farofa no muffin."
"Laura, você tá fazendo de novo."

Allex sai do banho. 

"Laura, ouve tua mãe. Vai terminar de se arrumar", ele diz, num vozeirão grosso, mas paciente.
"Aaaaaaaaah... mas é que...", ela reclama.
"Laaaaaauraaaa...", ele continua, enquanto eu coloco a farofa nos muffins. "Vai escovar seus dentes."
"Mas o Thomas tá no banheiro."
"E?"
"E a gente SEMPRE briga quando nós dois estamos escovando os dentes juntos, então eu vou ser gentil e esperar ele sair."
"Você tá sendo é espertalhona, né?"
"Tô nada."
"Thomas, a Laura precisa entrar pra escovar os dentes. Você escovou os dentes?", ele bate na porta, abrindo em seguida.
"Ahn... não!", ele responde, no mesmo tom surpreso, como se o pai tivesse perguntado sobre a existência de zebras cor-de-rosa.
"Thomas! O que diabos você tá fazendo no banheiro até agora, então?"
"Ahn..."
"Thomas, você tava cantando Bastard Son of Odin no espelho de novo?"
"Ahn... tava."
"Eita, nóis."

Termino de me arrumar enquanto os muffins estão no forno, e apronto o resto do almoço enquanto eles esfriam. Ficam lindos e perfumados, dourados e macios, e deliciosamente crocantes por cima. 


"Venham guardar o almoço de vocês!", chamo.

Eles guardam os potes na lancheira, enchem as garrafas de água e guardam tudo na mala. 

"Vamolá. Quem tá pronto?"
"Eu!", diz Thomas.
"Eu não", responde Laura.
"Ai, Laura, o que é que falta fazer?"
"Pentear o cabelo."
"Mas você tava no banheiro até agora!"
"Mas eu tava escovando os dentes, ué."
"E por que não aproveitou pra pentear o cabelo?"
"Esqueci."
"Eita. Vai lá, então."

Ela vai, ela volta, penteada.

"Todo mundo arrumou a cama?"
"Sim."
"Escovou os dentes?"
"Sim."
"Penteou o cabelo?"
"Sim."
"Guardou o almoço?"
"Sim."
"Pegou água?"
"Sim."
"Tá levando agasalho?"
"Precisa?"
"Laura, tá doze graus lá fora."
"Eu tô levando um short, pra se tiver calor."
"Ótimo, Laura. Mas leva um agasalho pra se tiver frio."
"Tá bom."
"Pegaram a máscara?"
"Sim."
"Pegou o papel assinado da escola?"
"Sim."
"Falaram tchau pro papai?"
"Tchaaaaaaau, papaaaaaaai!"
"Podemos ir, então?"
"Mamãe!"
"Quê?"
"Posso ir de bicicleta?"



MUFFINS DE PERA COM FAROFA DE GRANOLA
(da revista Martha Stewart Food Everyday, edição de natal)

Ingredientes:

  • 1 xic. farinha de trigo branca
  • 3/4 xic. farinha integral
  • 2 colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1/2 colh. (chá) canela
  • 1/2 colh.(chá) sal
  • 2 ovos grandes
  • 3/4xic. açúcar mascavo
  • 1/2 xic. iogurte natural
  • 2 colh.(sopa) manteiga, derretida
  • 3/4 xic. granola (opcional - eu não tinha o bastante para a massa e não usei)
  • 2-3 peras maduras, descascadas e cortada em cubos (2 xic.)
  • (farofa de granola)
  • 1/2 xic. granola
  • 1/4 xic. farinha de trigo
  • 1/4 xic. açúcar mascavo
  • 1/4 colh.(chá) sal
  • 3 colh.(sopa) manteiga gelada

Preparo:

  1. Aqueça o forno a 205oC. Forre uma forma de 12 muffins médios com forminhas de papel.
  2. Comece pela farofa: junte todos os ingredientes e misture, esfregando com os dedos, até obter uma farofa grosseira e a manteiga estar bem distribuída.Reserve
  3. Numa tigela grande, misture as farinhas, fermento, sal e canela. Em outra tigela, misture os ovos com o açucar, manteiga derretida e iogurte, até que fique homogêneo. 
  4. Junte a mistura líquida à seca e misture com uma espátula até não enxergar mais farinha. Não misture demais, ou o muffin fica maçudo. 
  5. Incorpore as peras de forma homogênea (e a granola extra, se estiver usando), e distribua a massa em porções iguais nas formas.
  6. Polvilhe a farofa por cima. Pode usar tudo. Vai ficar bem amontoado acima da beirada da forma, e está tudo bem. Junte de volta aos montinhos a farofa que cair para fora. 
  7. Leve ao forno por vinte minutos,até que um palito saia limpo quando espetado num muffin. Deixe esfriar por cinco minutos na forma, e então retire com cuidado para esfriar numa grade. Eles são deliciosos ainda quentes do forno. Se mantém bem por mais de um dia, mas a farofa perde a crocância.

Cozinhe isso também!

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