terça-feira, 7 de abril de 2020

Escola em casa e repeteco de thumbprint cookies



Quando a gente está à deriva, qualquer pedra é terra firme, qualquer galho é barco para te levar à segurança, ou à ilusória sensação de estar seguro.

Ilusão, aqui, é palavra-chave.

Sensação de segurança vem de quando a gente se convence de estar no controle.

Quando jovenzinha, primeiros anos da faculdade, brincava com meus amigos que tinham dois anjos (e eu nem acredito em anjo) que gostavam de espiar minha vida lá das nuvens, e rolavam de rir, apontando para baixo, toda vez que eu dissesse a frase "eu tenho certeza". Bastava as palavras tomarem vida para o rumo da mesma mudar e aquela certeza esfarelar feito biscoito velho.

E na certeza da minha rotina e dos meus rituais, acreditando tirar de letra essa tal de quarentena, vem isso de escola em casa, vem essa atividade que não se encaixa, esse trabalho que eu não queria, essa função extra além de todas as outras que eu já tenho.

Vejo muita gente internet afora reclamando do tédio da quarentena, e eu olho pro marido e o marido olha pra mim e a gente se pergunta se ainda vai chegar o dia em que dá tempo de sentir tédio.
Tem tanta coisa para fazer, primeiro todas as responsabilidades (trabalho, casa, cozinha, filho, cachorro), depois os hobbies (correr,ler, escrever, pintar, desenhar, tocar música, ouvir música, podcast, ver filme, série, ler livro e notícia, e cozinha, claro) e o estar junto com filho e cachorro e marido, brincando, dançando, batendo papo, contando história, falando no Skype com a família e os amigos longe. E tomar banho. Sabe, tomar banho? Se a gente for sincero, sincerão, vou dizer que tem dia que não dá tempo. Tem dia que tem mais obrigação que hobby, e a gente usa o que sobrou pra ficar junto. (Se eu não tomar banho imediatamente depois de correr, pode ter CERTEZA de que vou deitar na cama e me dar conta de que esqueci completamente de entrar no chuveiro.)

Toda a noite, quando a gente vai dormir, se vê fazendo lista de tudo o que quer fazer no dia seguinte e que não deu tempo de fazer no dia anterior.

Tem dia que eu só sento para almoçar.
Tem dia que o marido come de pé porque não aguenta mais trabalhar sentado.

Mas vai tudo bem, porque se a gente for, de novo, ser sincero, sincerão, a vida sempre foi assim.

Daí que aqueles dois anjos que ficavam me ouvindo falar e esperando dar risada da minha cara lá das nuvens são certamente leitores do blog. Basta escrever "esse é meu jeito defintivo de fazer (insira aqui o que quiser)" que lá vem bordoada do universo.

E a bordoada da vez foi a coisa do home schooling.

Para não dizer que o universo me odeia (porque já estabelecemos no post anterior que eu tenho plena consciência de que o universo é danado de bom comigo), até rolou uma sincronicidade mágica que me permitiu ter um laptop para poder colocar a criançada nas aulas online. Sincronicidade que veio aliada à promessa de escrever mais no blog. Então eis aqui: escrevendo mais no blog.

O problema todo do home schooling não é de fato ter de cuidar dos estudos das crianças. Isso, sejamos francos, já faço faz tempo. Sou eu quem senta lá pra ler e tomar lição de casa, eu que fui voluntária na escola durante um ano inteiro, aprendendo como funciona a alfabetização no Canadá e os estilo de ensino dos professores. Eu que li livros de pedagogia infantil. Eu que saio explicando as perguntas cabeludas, eu que induzo os dois por dialética socrática a concluir as próprias respostas e saio criando experimentos científicos para sanar as dúvidas deles.Fora a parte de tomar lição de casa, eu de fato GOSTO de fazer todo o resto. Vê-los aprendendo, APREENDENDO, juntando lé com cré e aplicando o que aprenderam é fenomenal.

O problema problemático que problematizei na minha cabeça está dividido em duas partes: a primeira delas é como enfiar na nossa vida mais essa tarefa. Porque aqui no Canadá quase não se tem lição de casa até os dez anos. No máximo ler um livro. Exceção foi a professora louca alucinada que Thomas teve ano passado e que dava lição de casa todos os dias. Mas mesmo minha sogra, que trabalha em escola, ficou negativamente impressionada com a quantidade de lição que ele tinha na segunda-série: era coisa de quinze minutos por dia, em comparação com a uma hora e meia de atividade que é normal em escolas particulares no Brasil. Logo não temos na rotina da casa uma hora inteira já designada ao estudo em formato tradicional. Eles lêem porque gostam, e aplicam e praticam o que aprenderam na escola porque acham útil ou interessante.

Enfiar outra tarefa num dia em que já não temos tempo de fazer tudo o que precisamos ou queremos é complicado. Esse dia que eu dirijo não é ônibus da CMTP, lata de sardinha, apertou cabe mais um: é fretado de empresa, lugar limitado, pra entrar um, outro tem que sair.

Imagina essa criança no apartamento o dia todo. Vai escalar a geladeira, se deixar.

 Se entra a lição da escola, sai o quê? Brincadeira? De jeito nenhum. Bicicleta no parque, que é o exercício diário dos dois? Nem a pau, que eu sei como meus filhos ficam quando acumulam energia. O mais óbvio seria tirar o horário de video-game. Mas isso seria um imenso tiro no pé, pois significa eliminar meu horário de trabalho. E aí, meus queridos, digam adeus a cartoons no Instagram e textos no blog até a pandemia acabar.

Além disso, se a gente for ser sincero, sincerão, a hora do video-game é essa palavra mágica tipo Abracadabra que faz todo o resto acontecer:
"Só tem TV quem guardar a roupa limpa!"
"Só vai ver desenho quem tiver arrumado a cama!"
"Só joga video-game quem recolher os brinquedos da sala!"

Não sou nem doida de abrir mão disso.

Minha cabeça dói resolvendo esse quebra-cabeça. Como alterar a rotina sem perdermos as coisas boas que criamos juntos e estão mantendo essa quarentena tranquila?

A segunda parte do problema é como cumprir com a expectativa dos professores.A escola espera que as crianças façam uma hora por dia de atividade, mais as aulas online e os tais aplicativos. Por enquanto não há muita cobrança, pois está tudo em fase de adaptação. Mas e depois?

Primeira expectativa frustrada foi o login do Google Classroom do Thomas não funcionar. De jeito nenhum. E ninguém consegue arrumar. E se tem uma coisa que me tira do sério é coisa que não funciona como deveria.

Segunda frustração foi o tal aplicativo de matemática que a professora da Laura pediu para usarmos. Não passa de um jogo de video-game em que a criança passa mais tempo escolhendo roupa de personagem e ouvindo contexto de batalhas sem pé nem cabeça do que de fato respondendo quantos vértices tem um triângulo. Ela passou uma hora na frente da tela, resolveu meia dúzia de questões e, quando fui ver, descobri que, com preguiça de ler o texto que era além de suas capacidades de primeira série, ela estava apenas clicando randomicamente o botão do mouse. Se é para fazer lição por uma hora, então façamos lição por uma hora. Se é para tornar o processo lúdico, coisa que apoio integralmente, então prefiro que ela use tintas e papéis e mateirais diversos do que uma tela e um mouse.

Talvez (com certeza) fosse a entrada na minha fase minguante, mas surtei na batatinha e precisei de um abraço, um vinho e uns berros histéricos para não sair escrevendo para a escola mandando todo mundo lamber sabão, que eu acho que nessas circunstâncias, botar criança para aprender tabuada é a última das prioridades.

Mas... também sei que a rotina da escola, para muitas famílias, é a pedra que parece terra firme. Cada um se agarra onde pode para se sentir seguro.

E essa foi a primeira vez em que realmente me desestabilizei nessa quarentena. Fui chutada para fora do barco e saí nadando sem pedra e galho e ilha e canoa e coisa nenhuma. Bagunçaram meu coreto. Estragaram minha quarentena, que estava indo tão dentro dos conformes, porque eu já tinha achado meus galhos lá boiando e construído uma jangada.

Um vinho, um abraço, uma noite bem dormida e uma sessão de meditação depois, e resolvi tomar as rédeas dessa pataquada.

Se ninguém na escola conseguiu resolver o login do Thomas (nem eu), então fica assim até alguém resolver. Está fora do meu controle. A classe deles tem um website bonitão feito pela professora, com todo o curriculum do mês. Consigo adaptar o conteúdo (que é bem simples, bem diferente do que ensinam em escola no Brasil) para um jeito que eu sei (acho) que ele vai fazer sem muita reclamação. Como sei que ele adora ler mas detesta escrever, comecei justo por isso. Pois sei que a prioridade do terceiro ano é interpretação de texto e redação. Mas ao invés daquelas redações sem graça de "o que eu gosto na primavera", pedi para ele escrever um número X de frases que me explicassem a história do livro que ele estava lendo (Dragon Masters - uma série de livros infantis que já tem pelo menos treze volumes). Então resumir o mesmo em um número X de palavras-chave e por fim fazer um desenho que comportasse essas palavras-chave e fosse uma boa capa que explicasse o livro para quem não leu. Rolou uma preguiça, depois de três semanas sem aulas, mas ele fez direitinho, enquanto Laura usava o aplicativo de leitura no meu laptop (Raz-Kids, esse é um bom app, em que a criança lê livros do seu nível e responde perguntas de interpretação de texto, sem firulas, sem perda de tempo - os dois adoram e já estão adaptados porque usam na escola, e a professora tem acesso ao login deles e sugere livros da lista como atividade da semana).

Amanhã eu preciso inventar alguma atividade de matemática, como quando pedi a Laura para montar uma vendinha para brincarmos com as moedas do cofrinho dela, pois ela estava com dificuldade de entender os valores delas. Usamos a brincadeira para treinar não só as moedas, mas também operações básicas e skip counting (contar de 5 em 5, 10 em 10, 25 em 25...) Porque eu jurei de pé junto a mim mesma que Laura não encosta mais naquele app de matemática.

Uma imagem estranha que explica melhor as coisas aqui em Toronto: tudo o que tem grades está com cadeados. Todos os playgrounds da cidade estão assim, fechados como cena de crime.

Hoje funcionou porque fomos ao parque de bicileta mais cedo, e enquanto eles faziam as tais lições, eu preparei o almoço. Amanhã, não sei. Talvez tenha de levá-los comigo para correr (e eles de bicicleta) para termos mais tempo de manhã para essas lições. Talvez eu tenha de sair para correr mais cedo de novo e transformar meu dia em ônibus na hora do rush. Chega mais cedo pra se apertar aí, sobe logo, segura firme, bota a mochila pra frente e vambora, que o ônibus tá mexendo. Me avisa quando tudo isso parar pra eu poder descer, moço. Obrigada.

Não sei.

Vejo um galho ao longe. Uma pedra aqui e outra ali. Lá vou eu fazer minha jangada outra vez.

(Você não adora quando eu misturo metáforas? Tive uma professora de português que jogaria o apagador na minha testa por isso.)

....

Tem receita? Era para ter de bolo de fubá, tirado lá do meu caderno desmontante e suicida, largando folhas e receitas por aí. Mas o bolo só deu certo porque tive de sair consertando o danado no meio do caminho. Ele ficou gostoso? Ficou. Mas eu precisaria testar ele de novo e ver se rola fazer desde o começo do jeito que eu consertei. Mas eu nçao vou fazer isso, porque, sinceramente, tem receita de bolo de fubá bem mais fácil que essa. Então não, hoje é só textão mesmo.

Mas posso deixar uma recomendação. Fiz recentemente esses Thumbprint Cookies desse meu post antigo, antigo, da época em que, ao invés de listar toda a sorte que eu tenho no meio de uma pandemia mundial, eu listava todas as bizarrices que me aconteciam no pandemônio que é ter dois filhos pequenininhos. Desta vez fiz com recheio de goiabada, exatamente como sugeria no post original. Acabou tudo em dois dias, pois o sucesso foi unânime aqui em casa. Nham! RECEITA AQUI.

Não rolou assim um master capricho na hora de botar a goiabada, confesso. 😜


domingo, 5 de abril de 2020

Segunda semana de quarentena, sorte e bolo de aniversário


Ando pelo parque com o cachorro no domingo de manhã, dando bom dia à distância para as pessoas que, meio tímidas, passam por mim com seus cães, enfiando-se no mato para dar passagem "socialmente distante" na trilha estreita. E penso.

Penso como tenho sorte.  E isso parece um repeteco do texto anterior, mas é essa frase - TENHO SORTE - que tem mais me ajudado. O tempo todo, todos os dias, enquanto ando ouvindo os sons da primavera que enfim chegou, a cada passo, acrescento um item à lista: tenho sorte porque...

Tenho sorte de estar aqui. De o governo ter dado a proporção correta à crise e de termos um certo senso de segurança conforme essa estranha distopia se desenrola.

Tenho sorte por ter imigrado há quase três anos e já ter aprendido a manter próximas de mim as pessoas que estão distantes. Skype e Whatsapp são velhos amigos.



Tenho sorte de morar num apartamento perto de um parque onde ainda posso passear com meu cachorro e onde ainda posso levar as crianças para andarem de bicicleta sem me aproximar de ninguém, dando alô aos policiais que agora povoam as ruas e os gramados, fazendo valer as regras da quarentena.  (Foi a primeira vez que vi um policial canadense gritando - deu medo; ele mandava duas pessoas levantarem da mesa de piquenique e manterem distância.)

Tenho sorte, veja bem, de morar. Mesmo que seja um apartamento, e não uma casa com quintal. Mesmo que seja alugado e não meu. Tenho sorte de poder pagar o aluguel e ter um teto confortável. Um apartamento de 70m2, pequeno o bastante para ser fácil de limpar.

Tenho sorte de nunca ter tido empregada e ficar tranquila em limpar minha própria bagunça. Ou de ter aprendido a fazer a própria unha e cortar o próprio cabelo. Sorte de depender pouco do serviço dos outros.

Tenho sorte por me sentir bonita sem maquiagem e sem esmalte. 

O apartamento, de novo, que tenho sorte. Sorte de ele ser grande o bastante para seus cinco moradores (quatro seres humanos e um ser canino) conviverem sem nenhum arranca-rabo. Tenho sorte por esses cinco moradores, eu inclusa, nos amarmos um bocado. Sorte de gostarmos de passar tempo juntos.

Tenho sorte por estarmos todos saudáveis. 

Tenho sorte por sermos cinco moradores introspectivos, cachorro incluso, que, ainda que precisem mexer os corpos para liberar energia, não surtam na batatinha por terem de passar um tempo do lado de dentro.

Tenho sorte por sermos cinco moradores, cachorro incluso, que não precisam de momentos grandiosos para se divertirem. Temos sorte de gostarmos de catar galhos no caminho e de parar para olhar os patos.  

Tenho sorte por sermos quatro moradores (desta vez o cachorro está de fora) que gostam de criar. Criar desenhos, pinturas, histórias, músicas, danças, jogos, esculturas, poemas, brincadeiras. Porque criar processa as caraminholas internas, criar desestressa, criar transforma o impossível em possível, um sentimento incômodo numa ideia tangível, e ajuda a comunicar tudo isso que borbulha disforme na gente e poderia virar intriga, briga e picuinha.

Tenho sorte de podermos criar também para nos entreter, assim não dependendo tanto da tela para isso. 

Tenho sorte por ter crianças independentes que se viram e sabem inventar os próprios projetos.

Tenho sorte porque meus filhos não faziam nenhum curso nem aula nem nada depois da escola, então não sentem falta de atividade extra nem acham estranho encontrar no próprio quarto algo novo para fazer. Tem sempre algo novo para fazer. 

Tenho sorte por ter crianças GRANDES, porque se eles tivessem um e três anos, ao invés de sete e nove, esse texto se desenrolaria de um jeito bem diferente. 

Tenho sorte de ter um marido com quem posso "delargar" a cria para poder me concentrar num projeto meu por um dia inteiro.

Tenho MUITA sorte por meu marido não ter perdido o emprego. 

Tenho sorte por ter trabalhado de casa a vida toda, e por ter aprendido assim a gerenciar meu tempo e a estar só.

Tenho sorte por ter aprendido a cozinhar qualquer coisa que tenha na geladeira, por ter lido tantos livros sobre economia doméstica em tempos de guerra, por ter aprendido a fazer pão e bolo e biscoito e iogurte e por saber inventar e improvisar na falta de literalmente qualquer coisa.

Tenho sorte por poder comprar comida. Sorte de ter poder aquisitivo suficiente para fazer a compra a cada duas semanas, evitando assim ir ao mercado o tempo todo (e o mercado é o ÚNICO lugar fechado a que vou, assim, de duas em duas semanas), e sorte por ter uma sobra no orçamento que me possibilitou fazer um estoque de comida para um mês no caso de interrupção de fornecimento. Um mês, sem exageros, um mês realista, porque eu tenho sorte, mas tem gente (MUITA GENTE) que não tem, e vai ter de comprar comida aos pouquinhos, indo no mercado o tempo todo, e se eu comprar mais do que preciso, quem não tem sorte tem azar, e ao invés de arroz e feijão, vai encontrar uma prateleira vazia.

Tenho sorte de ter aprendido a meditar, a respirar devagar, a não entrar em pânico.

Tenho sorte de ter um cachorro velho, que não vai aprender aos treze anos a mijar dentro de casa, e que me obriga, no sol, na chuva, no vento, na neve, a sair de casa quatro vezes por dia, nem que seja só para descer até a porta do prédio e voltar. Tenho sorte de saber aproveitar esses cento e cinquenta e dois segundos de ar livre e saber olhar para cima, procurando as gaivotas que cruzam o céu em bando, barulhentas, em direção ao lago.

Tenho sorte de ter passado por toda uma jornada de auto-conhecimento que me deixou suficientemente centrada, ainda que capengando às vezes, para entender e aceitar que sou o pilar emocional da casa, e que se eu ruir, a família toda desmorona em volta.

Tenho sorte de ter entendido que, sem me cuidar, não posso cuidar de ninguém. Que para passarmos por esses dias, semanas, meses estranhos mantendo a sanidade, é preciso ser leve dentro de suas circunstâncias. Pois se formos leves, a casa será leve, as crianças acompanham sua dança, o marido segue tranquilo, e a vida flui ainda que limitada.

Tenho sorte de ter aprendido a dar proporções corretas às coisas. A não gritar quando minha filha quebrou sem querer minha xícara favorita, ou quando ela, distraída, derrubou o pote inteiro de iogurte da mesa, fazendo voar aquela coisa branca por todo o chão da sala, parede, embaixo da mesa, sofá. Que adianta gritar, espernear, ficar brava, lutar contra, achar culpado? Derrubou, quebrou, sujou. Aconteceu. Como é que a gente limpa isso junto agora? 

Tenho sorte. Tenho sorte por tanta coisa. Tenho sorte por ter tido tanto privilégio na vida, e por esses privilégios terem me trazido até aqui. Tenho consciência da minha sorte. Lembro dela todos os dias. E é por isso que a quarentena tem sido... ok. Quando o prefeito disse que as pessoas só poderiam sair de casa para ir ao mercado e à farmácia uma vez por semana e para se exercitarem mantendo-se distantes uns dos outros, brinquei com Allex: o prefeito basicamente descreveu a minha vida antes da quarentena.

Sim, eu tenho rido muito de mim. Temos rido muito de nós mesmos aqui em casa. Tenho fingido que isso é para sempre e buscado o melhor de mim nessa situação. Tenho colocado Blondie para tocar enquanto estou no chuveiro, para dançar embaixo da água, chacoalhando a cabeleira molhada no melhor estilo Flash Dance. Tenho colocado a trilha sonora do Frozen II no repeat para as crianças, pois isso as deixa imensamente felizes, cantando alto e rodopiando em cima do sofá. Tenho baixado a guarda, largado um pouco, dito mais sim do que não, mas com limites.

Tenho recriado meus rituais. As pequenas coisas que, como hora de almoço e jantar, marcam as fases do dia, como sino de igreja, como fita amarrada em árvore na beira da trilha. Pequenas coisas que guiam você e quem mora com você pelo tempo.

Correr de manhã. As crianças brincam livres enquanto Allex se preparar para se enfurnar no computador e suas reuniões. Enquanto isso, corro. Corro enquanto me permitem. Todos os dias. Pelos caminhos mais ermos, bem cedo, que é para não esbarrar com alma viva. A luz lá fora ainda um lusco-fusco azulado e frio.

Volto e tomo meu banho. No banho, Blondie. Banda boa de dançar as cadeiras de quem pariu dois filhos, de olho fechado, cantando e sentindo o peso da água escorrer no cabelo.

Hora do chá. São nove da manhã. Beberico ele com calma, ouvindo a voz abafada do marido em sua primeira reunião do dia vinda do quarto de porta fechada. Checo meu celular, notícias do dia, pessoas que me deixam de bom humor. Tomo meu chá sentada. Preciso sempre lembrar de sentar, ou então passo o dia todo de pé, fazendo três coisas ao mesmo tempo. Senta pro chá, p*rra.

É meu ritual, o chá depois da corrida. Preciso dele para marcar o início do dia de verdade. E parando nesse momento foi que me veio essa ideia de tirar as crianças de casa enquanto a gente ainda pode. 

Chamo as crianças para sua dose diária de exercício. Esse é um ponto crítico, e quando o prefeito disse que os parques seriam fechados, foi por conta desse ponto que chorei. Chorei quietinha, e quando Allex me disse que eu tinha entendido errado, que eu ainda podia ir ao parque, ri de mim mesma, ali chorando pelas árvores e pelos patos que me fariam falta.

EU PRECISO DE MATO.

E meus filhos também. Não importa o quão estressada eu esteja com a bagunça das crianças - basta levá-las ao mato e tudo se resolve. Eu lido MUITO BEM com eles do lado de fora. Eles podem estar histéricos ou o que for. Do lado de fora tá tudo bem. Do lado de dentro eu surto junto.

Que sorte que eu tenho de poder tira-los de casa. Que sorte por termos mato perto.

Antes estava chamando para andar nas trilhas. Mas quando fecharam o Off-Leash Park (a área em que se solta cachorro da coleira), os donos começaram a levar os cães pelas trilhas, e, de repente, a trilha vazia encheu. Logo, comecei a levá-las para andar de bicicleta. Por terem de segurar as bicicletas, eles não encostam em mais nada, e, em alta velocidade na ciclovia, não passam perto de ninguém. (Para todos os efeitos, digo a eles que as paredes são lava e as pessoas são zumbis, o que funciona muito bem.) Na maioria das vezes pedalam 6km. Eu levo o cão e eles se comprometem a ir parando nas faixas de pedestre, sumindo na distância mas sempre esperando por mim.

Quando voltamos, cansados e contentes, é hora do almoço. Pronto, outro marco do dia, e não tive nem de pensar muito. Mãos muito bem lavadas, e eles ou vão brincar mais ou vêm me ajudar com o preparo.

Depois do almoço, cada um tem sua hora de tela, que pode ser desenho ou video-game. Eles se resolvem. Enquanto isso, me enfio no quarto ao lado do marido para pintar, desenhar, escrever ou o que quer que eu precise fazer. Definir o horário de começo e fim do uso de telas aliviou nosso relacionamento: eles sabem que terão a tela e não ficam perguntando o tempo todo, e eu sei que vou ter tempo pra mim, então consigo de fato ESTAR com eles sem me sentir ansiosa por aquele tempo sozinha que não vem.

Terminado o tempo de tela, antes mesmo que eles peçam por mais, vou até eles e sugiro um jogo de tabuleiro. Isso evita o "efeito rebote". Não sei se é com todo mundo, mas meus filhos ficam histéricos quando a gente desliga a tv. Não porque fiquem bravos ou algo assim. Parece que absorveram tanta informação de uma vez sem mexerem o corpo, que tudo fica acumulado querendo sair numa explosão.

Para evitar que eles comecem a correr pela casa num movimento caótico, comecei isso de sugerir o jogo de tabuleiro. Isso parece ajudá-los a focar de novo e os mantém calmos. Uma ou duas partidas depois de algum jogo (temos muitos), mando os dois para o banho e começo o jantar. Nessa hora entra outro ritual, começado há meses atrás, e que chamo de "A música acalma as feras". É hora de Enya, hora de Debussy, Eric Satie, Chopin, Madeleine Peyroux, hora de bossa nova, tango, chançon frainçaise... músicas que acalmem. Músicas que avisem os cérebros infantis que é hora de desacelerar. Quando não tomam banho juntos, acabam indo desenhar, ler, brincar tranquilos enquanto o outro está no chuveiro, ou mesmo me ajudam a picar legumes ou abrir o pacote de macarrão.


Terminado o jantar, que é sempre cedo, é é o momento de escovar os dentes e ler histórias. Estamos lendo As Crônicas de Nárnia, um capítulo por dia. Se ainda é cedo, Allex terminou de trabalhar e vem tocar guitarra ou violão, fazer alguma bagunça com os dois enquanto eu me recolho por uns minutinhos, vou responder uns emails, fuçar no Instagram, ler um capítulo de livro meu.

Crianças na cama, é hora de adulto.

Rinse and repeat.



Daí que quando a escola mandou emails avisando que segunda-feira agora começariam as aulas online, tive um pequeno siricotico. Minha família está funcionando lindamente, caramba! Por que diabos você me joga essa bola curva assim de repente? E sim, eu fiquei uns dois dias incomodada tentando cavocar meu cérebro em busca da expressão idiomática brasileira equivalente à essa metáfora de baseball que se usa na América do Norte: "throw me a curveball" (quando vem algo inesperado). Eu não lembrei de nenhuma. Se você lembrar, me fala, porque estou aqui arrancando os cabelos de nervoso.

Enfim.

Comida simples. Batata doce e aspargo assado, cevadinha cozida com salsão e cenoura e ervilhas refogadas com cebola.
Que Laura resolveu servir assim no prato dela. Árvores, terra, pedras.
Fiquei uns dias tentando criar o quebra-cabeça da nova rotina com criança tendo aula no computador  e eu tomando lição (eu odeio lição de casa e odeio cobrar lição de casa de criança), ao mesmo tempo mantendo o tempo de brincar, tempo de exercício lá fora e tempo de tela necessário para que EU possa trabalhar duas horas por dia.

Respirei no saquinho e entendi que esse podia ser o momento em que eu entraria em pânico. Então não deixei. Concluí que eu não fazia ideia de como seriam as aulas, e que não adiantava eu tentar fazer quebra-cabeça com peças que eu ainda não tinha.

E, ainda que continue ansiosa sem saber como vai ser a primeira aula amanhã, decidi parar de pensar nisso e me concentrar em coisa melhor: o aniversário do meu Matador de Dragões.

Ele fez nove anos (NOVE ANOS) na sexta-feira. Filho meu que é, claro que quis escolher todas as comidas do seu aniversário. Panquecas com bacon de manhã, hamburguer no almoço e pizza de gorgonzola no jantar. Não me pergunte para onde vai tanta comida naquele corpinho magrelo.

Ele obviamente não teve festa, mas pendurei as bandeirinhas e decorações que guardara do aniversário da Laura e Allex passara a noite anterior enchendo o imenso pacote de balões que eu comprara. Thomas passou o dia todo usando minha coroa de Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o que Importa. (Ele disse que era o Rei do aniversário, aí brinquei que a Rainha era eu e ele era só o Príncipe Regente.)  Ficou feliz por conversar ao telefone com seu melhor amigo, combinando play dates e sleep overs para quando tudo isso acabar.

Comemos bolo e fomos dar, nós cinco (cachorro incluso) um longo passeio no parque vazio. Quando voltamos, ele quis comer pizza assistindo ao seu filme de dinossauros favorito.

Foi um bom aniversário. Temos muita sorte.



Thomas pedira um bolo de três camadas de tamanhos diferentes, de baunilha, com recheio de baunilha e morango, cobertura de chocolate e gelatina de morango por cima. Foi preciso todo um esforço de comunicação para convencer o menino de que não, eu não ia fazer um bolo de CASAMENTO para ele, que três camadas de tamanhos diferentes não iam rolar, e que não dava para botar gelatina de morango em cima do bolo. Ele ficou contente com apenas morangos e duas camadas iguais. E estava uma delícia.

O bolo é mais do mesmo. O bolo de baunilha da Alice Medrich que se faz no processador (mas que quero testar fazer na mão ou na batedeira um dia), o Chocolate Fudge Frosting também dela, e o creme de confeiteiro do mesmo livro. Acho que todos esses componentes eu já postei aqui de uma forma ou de outra, mas para não deixar ninguém louco procurando, vou colocar tudo aqui de uma vez. Fiz a cobertura de chocolate de memória, no entanto, e errei o chocolate: era para usar chocolate 100% e usei 70%. Fiquei feliz em saber que, ainda que fique mais doce, a cobertura funciona da mesma forma. 

BOLO DE ANIVERSÁRIO DO MATADOR DE DRAGÕES
(receitas separadas tiradas do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Ingredientes:
(bolo)
  • 1 xic farinha de trigo (125)
  • 3/4 xic + 2 colh (sopa) açúcar (175g)
  • 1 1/4 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 3 ovos grandes
  • 1/3 xic creme de leite fresco
  • 3 colh (sopa) manteiga (45g), derretida e ainda quente
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha

(creme de confeiteiro)
  • 1 colh. (sopa)farinha de trigo
  • 1 colh (sopa)amido de milho
  • 2 colh. (sopa)açúcar
  • 2 ovos
  • 2/3 xic leite
  • 1/2 colh (chá) baunilha 

(cobertura de chocolate)
  • 55g chocolate de 70 a 100%, picado
  • 2 1/2 colh (sopa) manteiga (40g)
  • 1/2 xic creme de leite
  • 1/2 xic açúcar
  • 1 pitada de sal
  • Morangos para decoração e recheio

Preparo:
(bolo)
  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e aqueça o forno a 180oC. Unte as laterais de uma forma de 20cm com manteiga, polvilhe com farinha, e forre o fundo com papel-manteiga.
  2. No processador, coloque a farinha, açúcar, sal e fermento e pulse algumas vezes para misturar. 
  3. Junte o creme e a manteiga e pulse 8 a 10 vezes até que esteja tudo misturado. 
  4. Junte os ovos e a baunilha e pulse mais 5 a 6 vezes. Raspe as laterais com uma espátula e pulse mais 5 vezes, apenas até que fique homogêneo.
  5. Passe para a forma, alisando a superfície, e asse por 30 a 35 minutos, até que esteja dourado e um palito saia limpo quando espetado no bolo. Deixe esfriar numa grade por 10 minutos antes de desenformar. 
  6. Quando frio, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira até o dia seguinte, quando será mais fácil cortá-lo ao meio com uma faca serrilhada.
(creme de confeiteiro)
  1. Numa tigela, misture com um batedor de arame a farinha, o amido e o açúcar. Junte os ovos e bata bem até que fique claro e homogêneo.
  2. Numa panela pequena, aqueça o leite até que comece a borbulhar nas laterais. 
  3. Misture o leite quente aos ovos aos poucos, para que os ovos não cozinhem. Volte a mistura à panela e cozinhe em fogo médio, mexendo sempre com uma colher de pau até que comece a engrossar. Quando começar a ferver baixinho, cozinhe por 1 minuto mexendo sempre. 
  4. Imediatamente retire da panela, passando por uma peneira em uma tigela. Se houver quaisquer carocinhos, não os aperte pela peneira. Misture a baunilha e deixe que o creme esfrie completamente antes de cobri-lo com filme plástico (encostando no creme) e levá-lo à geladeira até a hora de usar.
(cobertura)
  1. Numa tigela, coloque o chocolate picado e a manteiga em pedacinhos.
  2. Numa panela, aqueça o creme de leite, açúcar e sal, mexendo sempre, em fogo médio, até que levante fervura. Abaixe o fogo e cozinhe, mexendo, por 4 minutos. 
  3. Derrame o creme sobre o chocolate, misturando com um batedor de arame até que a mistura esteja homogênea e brilhante. Deixe descansar, sem mexer, em temperatura ambiente, por 2 a 3 horas, ou até que firme. Leve à geladeira até a hora de usar.
(montagem)
  1. Corte o bolo ao meio com uma faca serrilhada e separe as metades. 
  2. Na metade de baixo, espalhe todo o creme de confeiteiro. Corte tantos morangos ao meio quantos forem necessários para cobrir o creme, a parte cortada virada para baixo. Isso vai depender do tamanho dos morangos. 
  3. Cubra com a segunda metade do bolo e aperte ligeiramente. 
  4. Espalhe a cobertura de chocolate por cima. Se ela estiver fora da geladeira há um tempo, estará mole o bastante para escorrer devagar pelas laterais. Se você quiser que a cobertura fique firme apenas em cima do bolo, leve à geladeira por uma meia hora antes de espalhar a cobertura. 
  5. Decore com morangos inteiros. 

No meio disso, tenho revisitado meu caderno de receitas antigas, antigas, que anda desmontando, perdendo páginas, e resolvi começar a finalmente cozinhar alguma coisa dele para só deixar as receitas que valem a pena. Porque tenho receita ali de desde antes de juntar os trapos, coisa de vinte anos atrás, que recortei e colei no caderno para fazer depois e ficou lá, só ocupando espaço no meio do bolo de cenoura da minha mãe e da receita de panetone da minha tia-avó que nunca funcionou. Tem receita da época em que eu achava que minha vida comportava sobremesa com oito técnicas de confeitaria diferentes, ou sorbet de tomate. Tem a desgraça do linguado com molho de maracujá e risotto de alho poró da revista Gula que eu guardei porque queria fazer um Dinner Party e cozinhar isso para os convidados, mas nunca fiz porque morria de medo de fazer risotto. E a receita ficou lá, e a ironia da coisa é que hoje não preciso mais de receita para fazer nem o risotto nem o linguado.

Quero preparar tudo o que couber na minha realidade. Estou estabelecendo uma guilhotina culinária: se não for DELICIOSO, tá cortado. Fora do meu caderno.

Essa semana resolvi fazer esses "pães de leite condensado". Que, no fim, são apenas pincelados com o leite condensado e não levam nenhum na massa. Ficaram bonitos e ficaram gostosos.



Mas também ficaram absurdamente maçudos e essa pincelada de leite condensado no pão pronto NUNCA seca, escorre no prato ainda por dias e mela a mão de um jeito irritante quando você vai comer. GUILHOTINA. Foi para a guilhotina um bolo de maçã que também não rolou, cujo processo coloquei lá no Instagram. (@anaelisagg)

No meio disso, estou com planos de transformar as receitas vencedoras do caderno, as que passaram pela guilhotina, em algo especial lá na minha loja da Etsy. (Aliás, tem muita arte à venda ali disponível para download e impressão, que não precisa de frete nem nada, inclusive um poster da Nonna que eu sei que muita gente já me pediu. https://www.etsy.com/shop/AnaElisaGG)
Enfim.

Se as coisas por aí andam mais difíceis, primeiro de tudo, lembre-se de respirar. Devagar. Prestando atenção no ar que entra e no ar que sai.

Segundo, ao invés de tentar estabelecer uma rotina, tenta estabelecer pequenos rituais. Rituais seus. Só para marcarem melhor o modo como você passa no tempo. Um guia. Aí vai encaixando as necessidades da família em volta dos seus rituais. Assim você tem certeza de que, nessa maré incerta, não vai nem ficar à deriva, nem desaparecer.

Lembra das sortes que você tem. Eu sei que a gente anda falando muito em privilégios, e é lógico que muito da sua situação se baseia em quanto privilégio você tem. E eu sei que esse papo faz a gente se sentir culpado porque tem gente sofrendo mais que a gente. Se você pode ajudar, ajude. SE a única coisa que pode fazer, dentro da realidade e das diretrizes do país e da cidade em que mora, é ficar em casa, então FICA EM CASA. Mas se cuide. Cuide dos seus. Encontre pequenas alegrias. Encontre um propósito que faça você passar por isso com mais leveza. Porque ficar sofrendo pelo que está acontecendo lá fora não vai fazer isso passar. No fim, a gente só consegue controlar o modo como passamos por isso, como nos sentimos e como reagimos a toda essa bizarrice.

Escolhe leveza. Como puder. Não é poliana, não é ignorar tudo de ruim que está acontecendo. É ter consciência da sua sorte. Das pequenas coisas. Se agarra nelas. As pequenas coisas não te deixam afundar.

Muito amor e luz a todos vocês.  

sábado, 21 de março de 2020

Quarentena, PFs veganos, divisão de tarefas e chocolate chip cookies

Uma foto bonita para tempos estranhos

Esta noite sonhei que me empurravam para dentro de um compactador de lixo e fechavam as portas. Era noite, e me haviam pego de surpresa. Imediatamente após a aniquilação de meu corpo em meio a outros resíduos, eu me refazia, magicamente, e ainda formada apenas de ossos e uma intensa luz azul, abria as portas num movimento explosivo, como quem busca ar depois de muito tempo submerso, e tinha então meus ímpetos de vida e liberdade empurrados de volta  ao compactador de lixo pelas mesmas mãos masculinas que me haviam colocado ali em primeiro lugar. Portas fechadas. Corpo destruído. Renascimento. Libertação. Mãos me empurrando de volta. Durante toda a noite, a mesma cena repetida, até finalmente conseguir despertar no meio da noite para a realização de que o sonho descrevera em imagens exatamente como me sinto nesse momento.

Não posso reclamar. Penso nisso o tempo todo, como não posso reclamar. O governo canadense tomou medidas duras mas preventivas, garantindo que a situação no país nunca chegue aos extremos da Itália, por exemplo. Estamos em segurança e o Canadá tem sido considerado modelo de gestão da crise. O pânico inicial que fez com que a população corresse aos mercados e esvaziasse as gôndolas foi subitamente substituído por alguma solidariedade. Meu prédio tem uma lista na porta de moradores que se disponibilizaram para fazer as compras de mercado para os residentes mais vulneráveis. Há muito pouca gente desacreditando o vírus ou se comportando de forma irresponsável.

As escolas foram as primeiras a fecharem. Então os museus e casas de show. Depois bares e restaurantes. Agora, andar na rua parece um eterno domingo de manhã: todas as lojas estão fechadas. Há pouca gente na rua. Mas ao contrário dos domingos de manhã de café devagar e alívio promovido pela promessa de morosidade, há um silêncio pouco reconfortante vindo do lado de fora.

Não posso reclamar. Ainda posso sair para correr. Correndo, vejo os primeiros sinais da primavera. Vejo um coelho. Os Robins, meus sabiás-laranjeira canadenses, retornando às árvores à nossa volta. As primeiras florzinhas minúsculas, cor de leite fresco pingando de estames verdes e frágeis que destoam dos castanhos e cinzas secos restantes do longo inverno.

Ainda posso levar as crianças pelas trilhas do parque. Santo parque. Abençoado parque. Laura me pergunta se pode encostar nas árvores. Pode, pode sim. Vejo-nos abraçando árvores e tocando a terra gelada com os dedos, como que pedindo ajuda, uma luz, uma solução. Que a natureza se arranje, se reequilibre, traga a harmonia que talvez não temos tido há tempos.

Não posso reclamar. Podemos trabalhar de casa. Ele se enfia no quarto, no computador, e tem reuniões e manda emails e faz seu trabalho muito bem. Numa quarta-feira, ouço o marido explicando a Thomas de que é um dia normal, e que papai está trabalhando. Um dia normal. Não é um dia normal. Meu dia correria de uma forma completamente diferente se fosse um dia normal. Acostumadas ao ocasional home office do pai antes da quarentena, as crianças não ousam interrompê-lo, e mesmo quando lhes explico que mamãe precisa de uns minutinhos para descansar a cabeça ou para trabalhar, seus gritos sempre soletram MÃE em letras garrafais, o som esticado como uma corneta alta diretamente em meu ouvido. Uma, duas, quatro, oito, setenta e duas vezes em uma hora, interrompendo minhas ideias, meus pensamentos, meus impulsos, minha criação, minhas pinceladas.

O que foi? O que você precisa?
O Thomas não quer me emprestar o lápis.

Suspiro.

Sinto falta dos meus pequenos rituais solitários que mantinham minha cabeça no lugar, que me ajudavam a repor minha energia. Pequenas coisas da minha rotina que eram só minhas, que não tinham nada a ver com o restante da família, que não tinham absolutamente nenhum impacto neles, e que, portanto, mantinham em minha mente essa imagem clara de quem eu sou, independente de ser mãe, de ser esposa, de ser filha, de ser irmã.

Pensar "isso vai passar" e esperar pelo retorno da "vida normal" me causa mais ansiedades. Tenho tentado enxergar a situação atual como definitiva. E se fosse assim para sempre? E se essa for sua vida até o fim dela? Como eu posso tornar isso melhor e conviver de forma mais saudável com uma quarentena que não tem data para terminar?

Como recriar meus rituais?
Como me reinventar?
Como me resguardar e me preservar num momento que pede tanta doação principalmente das mulheres?

PF delícia: arroz, feijão preto, saladinha de tomate cereja e abóbora e couve-flor que foram assados na mesma assadeira.


Assim que anunciaram o fechamento das escolas e todas as famílias correram aos mercados em pânico, um pânico quase justificado, considerando que a maior parte da comida consumida no Canadá vem de outros países, caí na mesma armadilha de sempre. Acuada feito um bicho, ameaçada por sombras desconhecidas e dominada por um medo estranho, juntei minha família sob minhas asas e me recolhi em minha domesticidade.

Em poucos dias meus rituais desapareceram. Vi-me sublimada pelo cozinhar, limpar, cuidar. Em menos de uma semana minha insônia voltou e eu sumi. E se meu corpo inteiro tremia de raiva do vírus que provocara aquilo, minha mente foi categórica: olha para as suas escolhas.

Conversando com minha amiga no Brasil, ouvindo meu próprio falar, dei-me conta das desculpas que me inventava, de novo e de novo, para me manter no papel de vítima, culpando o patriarcado mas sem olhar para aquilo que era minha inteira responsabilidade.

Refiz minhas escolhas. Pequenas, pequenas escolhas. Assim, sem DR, sem grandes alardes, sem braveza, sem raiva, sem ser passivo-agressiva nem manipuladora.

Continuei acordando cedo para meditar e correr. Porque Toronto tem a densidade populacional de um sítio com galinhas caipiras, e a gente consegue sair na rua sem ficar se esbarrando nem respirando no cangote um do outro. Então saio para correr. Correr até suar para fora toda a raiva e tensão. E se isso me deixar exausta no meio do dia (e eu com sono viro um monstro), tudo bem: marido está em casa e eu POSSO parar e descansar. 

Marido em casa. Não, não é um dia normal. Num dia normal de home office, eu estaria trabalhando e fazendo minhas coisas e as crianças estariam na escola. Não é um dia normal. As crianças estão aqui o dia todo, e cuidar de criança em tempo integral CANSA, mesmo quando você está se divertindo com eles. Cada pequena briga, cada birra, cada interação exige atenção total de sua parte para não simplesmente cair no lugar de reação não-pensada. Ele sabe disso. Ele reconhece isso. Ele fala para os colegas homens como nós mulheres nos lascamos de verde e amarelo com essa quarentena, e como isso não é justo. Ele me conta de reuniões por skype sendo interrompidas por crianças pulando em cima dos pais ou pedindo para a mãe limpar seus bumbuns no banheiro, e como ele consegue ver através das telas quem está dividindo essa carga com o parceiro e quem não. Estamos todos no mesmo barco. Ao menos todos nós, classe média, brancos, de trabalhos estáveis que permitem home office. Tenhamos noção que nosso barco é pequeno e comporta bem pouca gente do mundo. Que sorte temos. Não é? Não posso reclamar.

Mas ouvi-lo a respeito dos outros pais e mães me fez relaxar os ombros. A gente que foi criada em país latino e machista tem disso de síndrome de super-mulher-Martha-Stewart-toda-poderosa, que, dentro de sua posição submissa, encontra uma sensação de falsa superioridade ao taxar os homens de incompetentes no trato dos filhos e da casa. "Ah, sem mim ele não acha uma meia!" Veneno, veneno puro. Ele acha sim. Se você deixar, ele acha a meia. E se não achar, ele é um homem adulto com cartão de crédito e pode mandar entregar um pacote de meia comprado na internet. Essa ideia de nos sentirmos indispensáveis mantendo homens adultos dependentes e infantilizados é a chave que tranca nossas próprias correntes.

Quando estou cansada, cansada mesmo, precisando de uns minutos de silêncio que meus filhos, por mais amor que tenhamos uns pelos outros, não podem me dar, sem a menor culpa eu cato o cachorro para um passeio longo no parque e deixo as crianças ao cargo do pai, independente da reunião por skype em que ele esteja metido. E sabe o que descobri? Que ele é plenamente capaz de lidar com essa situação.

Pense nas suas pausas como a "pausa do café" ou a antiga "pausa do cigarro" nos escritórios. Uma vez trabalhei numa agência em que quase todos eram fumantes menos eu. Todos faziam pausas de cigarro e continuava eu lá, tonta, trabalhando. Revoltada que sou,  resolvi que sempre que meus colegas levantassem da cadeira para sua pausa de cigarro, eu faria minha pausa do café. Justo.

Mãe também precisa de pausa do café. Ok? Dê-se uma pausa do café. 

Como sou eu quem cozinha, eu decidi, assim, de supetão, que não sou mais responsável pela louça. Eu nunca achei que a louça era MINHA responsabilidade, mas era algo que eu fazia no automático: terminar de comer, tirar os pratos, guardar os restos. Dei-me conta de que todo mundo levantava da mesa e ficava eu lá, tonta, fazendo tudo sozinha, depois de já ter passado a última hora e meia do meu dia fazendo jantar.

Agora levanto da mesa sem culpa. Peço com educação para que deem um jeito nos pratos e guardem a comida. E tento não ficar irritada se isso não acontece imediatamente. E se ninguém tirar a louça limpa da lava-louça imediatamente, não vou sair guardando daquele jeito passivo-agressivo bufante que a gente bem conhece. Vai ficar lá e ponto. Até alguém (que não sou eu) fazer.

E sabe o que descobri? Que as coisas tem sido feitas. Talvez não perfeitamente e COM CERTEZA não do MEU jeito. Mas são feitas. E que se eu peço com leveza e educação, todo mundo é super capaz de tirar o lixo ou dar comida para o cachorro.

No tempo de desenho ou video-game das crianças, tenho sentado à minha mesa para pintar e desenhar. Tento, sento, pinto, desenho, escrevo no meu caderno a letras tortas, sentindo falta do meu tempo no computador, pois só temos um, irritada com a lentidão com que meus dedos arrastam o lápis sobre o papel. Tento, apesar da sensação acachapante de que isso não faz o menor sentido, de que todos os meus projetos perderam importância diante das circunstâncias.

Ainda assim faço. Sempre gostei de trabalhar em silêncio, mas agora, acompanhada do batuque incessante dos dedos do marido no teclado do computador ao meu lado, tenho colocado uma música no celular, ou um podcast, e, isolada em meus fones de ouvido, consigo produzir. As crianças começaram, devagar, a entender que porta fechada quer dizer que papai e mamãe estão trabalhando e só devem ser interrompidos por coisas importantes. Quando desperto do meu transe criativo, desligo a tv das crianças e podemos fazer alguma coisa juntos com mais tranquilidade, pois mamãe botou para fora tudo aquilo que borbulhava dentro dela.

Cevadinha com grão-de-bico, tomate cereja e salsinha, espinafre refogadinho, abacate.

Estou tentando não me refugiar à cozinha como fiz durante tantos anos. Não usar bolos e tortas e pães como desculpa para não lidar com meus problemas. Decidi cozinhar apenas uma refeição por dia. Seja almoço ou jantar, o que for necessário, mas apenas uma. E manter simples. Um cereal, uma leguminosa, e tantos vegetais quanto puder cozinhar ao mesmo tempo e rapidamente. E na refeição seguinte, a não ser que eu realmente tenha vontade de comer uma reinvenção específica, cada um monta seu prato com o que quiser do que sobrou e esquenta no microondas.
Isso pode parecer besta, mas essa configuração é completamente nova em minha casa. Eu SEMPRE reinventei as sobras, pois não gosto de simplesmente requentar comida. Mas em nome de minha sanidade mental e meu tempo, abri mão da minha frescura. Requentamos comida. Completamos com saladas.

E me sobra vontade de entrar na cozinha com amor, não rancor, para fazer uma torta de maçã ou biscoitos de chocolate. Se eu quiser.
Arroz cateto integral com legumes refogados em óleo de gergelim, alho e gengibre, e temperados com shoyu, cebolinha e gergelim. Ao lado, falafel de feijão moyashi. Ficaram uma delícia, mas só no dia em que foram feitos: depois, não importava o jeito de requentar, ficaram borrachudos.

Manter a maioria das refeições veganas tem ajudado um bocado no meu planejamento. Tem sido muito mais fácil cozinhar assim. E o mais engraçado é que ninguém percebeu que eu não ando botando mais queijo e ovos nas coisas. De quebra, o mercado está um pouco mais em conta, já que queijos aqui custam caro.

O fim de semana agora é o mais diferente. Já tinha um tempo que eu praticamente parara de cozinhar aos fins de semana. É a vez dele. Se ele quiser preparar waffles de manhã, se quiser fazer macarrão de almoço, ótimo. Se quiser pedir comida ou comprar algo pronto, a escolha é dele. Eu não digo nada nem torço o nariz. Afinal, ele não reclama quando faço sopa de abóbora de jantar, que as crianças adoram mas que ele come apenas por respeito e educação, profundo inimigo da abóbora como sempre foi. Hoje ele pediu Lámen de almoço. Eu não estava super afim de comer porco, tenho preferido a leveza do vegetariano, mas alguém botou um prato de comida quente na minha frente que eu não tive de preparar, então obrigada pela refeição, come e volta ao computador.

Arroz cateto integral que refoguei com folhas de beterraba, batata-doce assada com alecrim e ervilhas refogadas em cebola e tomilho e salsinha.

A diferença é que agora reclamo o tempo do fim de semana completamente para mim. É minha vez no computador. Minha vez de sentar e escrever por horas a fio, digitalizar ilustrações ou resolver pendências de trabalho. Trabalhar no fim de semana? Sim, pois não pude fazer isso durante a semana. Reclamo para mim meu silêncio e minha paz, pois no fim de semana papai está totalmente disponível para criar as brincadeiras, apartar as brigas, passear cachorro e resolver o almoço. Nesse momento estou ao computador enfim escrevendo, jazz nos ouvidos, vinho num copo, cachorro dormindo aos meus pés. A porta do quarto está fechada e eu não faço A MENOR IDEIA do que está acontecendo na sala ou do que meus filhos e meu marido estão fazendo. Pedi que ele lavasse roupa e pendurasse o que não pode ir na secadora, e acredito que ele tenha feito. Hoje é responsabilidade dele, não minha, então não vou perder meu tempo gerenciando os outros. Estou tendo um "dia de homem", contei a uma amiga, rindo. Não é um dia de homem. É um dia de pessoa adulta que compartilha responsabilidades domésticas com outra pessoa adulta.
Arroz integral misturadinho com feijão Apache e coentro, farofa de banana da terra, couve-flor e abóbora assada e couve refogada em alho e cebola.

Não posso reclamar. Meu marido sempre fez sua parte. Aí é que entra a minha responsabilidade. Esse controle louco que faz a gente criar na nossa cabeça o "jeito certo de fazer as coisas" e não botar homem para fazer nada porque "eles não sabem fazer direito". Bom, eles sabem. E se não sabem, veja só, aprendem. Que nem criança: se você não deixar fazer com desapego ao resultado, a criança não aprende. Bom, homem também. Por muito tempo me sabotei puxando todas as atividades domésticas para mim com essa desculpa de querer "fazer do meu jeito", e fazendo direito, só fiquei sobrecarregada e ressentida. Totalmente à toa, porque tenho do meu lado um cara que sempre esteve disposto a dividir essa carga.

De novo, não posso reclamar. Outro dia estava mostrando às crianças um video do papai ninando Thomas e passando aspirador de pó na sala ao mesmo tempo. Bebê num braço, aspirador no outro. E a gente diz que só mulher sabe fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Eu decidi não ser vítima da quarentena nem mais vítima de coisa nenhuma. Decidi parar de ter raiva, tanta raiva do que foi, do que é, do que pode ser que eu não gosto e não quero. Minha rotina virou de pernas para o ar, então tenho de encontrar uma nova. Sem raiva, sem rancor. Com leveza, amor, educação. Uma rotina que seja boa para meus filhos, para minha família, mas também boa para mim, que mãe triste cria filhos tristes.

São tempos estranhos, estranhíssimos, e um bocado pesados. Temos família no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália, e nos preocupamos o dia todo com eles. Mas isso está completamente fora do meu controle. Só posso controlar minhas escolhas aqui e como elas afetam minha vida e a de meus filhos. As crianças ainda não têm uma rotina certa, e isso eu vejo que as tem atrapalhado um pouco, e a mim também. Ainda preciso entender melhor essa parte, o que tem melhor efeito no humor deles e no meu e rearranjar tudo. 

Aqui a primavera começou enfim. Tempos de renovação. Que renove. Que a quarentena seja essa lua nova, esse momento de introspecção e meditação para cozinhar revoluções internas e externas. Renovações. Não tem para onde fugir. Nossos problemas estão espalhados no nosso chão, grudados em nossas paredes, pendurados pelo teto, em toda a parte, escancarados na nossa cara e não há outra coisa a fazer senão olhá-los, aceitá-los e fazer algo com eles. Nem vinte e quatro horas por dia de Netflix vai impedir você de encarar seus problemas.

Vamos pensar em começar na quarentena pequenas mudanças internas para espalhar lá fora depois, mais rápido que qualquer vírus, para que a vida não volte ao normal, pois aquele normal ninguém mais quer de volta. Inventemos uma norma nova. Um normal que seja melhor para todos.

Vai ter muito perrengue me puxando de volta para baixo para tentar me destruir durante esses tempos. Eu não vou deixar. Vou continuar me reinventando quantas vezes forem necessárias. 


CHOCOLATE CHIP COOKIES DO DAVID LEBOVITZ
Rendimento: UM MONTÃO, mas acaba rápido, que são muito bons

Ingredientes:
  • 2 1/2 cups (350 g) farinha
  • 3/4 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 xic (225 g) manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic(215 g) açúcar mascavo
  • 3/4 xic(150 g) açúcar cristal orgânico
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 2ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 2 xic(cerca de 225 g) nozes ou castanhas de sua escolha, tostadas e picadas
  • 400 g chocolate amargo ou meio-amargo, picado em pedaços de 1.5 a 3cm ou 3 xic(340 g) gotas de chocolate
Preparo:

  1. NUma tigela, misture a farinha, bicarbonato e sal. 
  2. Na batedeira, bata a manteiga, os açúcares e a baunilha em velocidade média apenas até que fique homogêneo.
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição, e então misture a farinha, seguida das nozes e do chocolate. 
  4. Numa superfície ligeiramente enfarinhada, divida a massa em quartos. Forme com cada uma um cilindro de 23cm de comprimento. Embrulhe os cilindros com filme plástico e leve à geladeira até que fiquem firmes, de preferência de um dia para o outro. 
  5. Posicione as grades do forno nos terços inferior e superior e aqueça o forno a 180oC. Forre duas assadeiras com papel manteiga ou silpat.
  6. Fatie os cilindros de massa em fatias de 2cm de espessura e coloque os discos na assadeira com 8cm de distância entre eles. Se algum chocolate ou noz se desprender, grude de volta no biscoito. 
  7. Asse, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento, por 10 minutos, ou até que estejam ligeiramente dourados por cima. 
  8. Deixe que esfriem ligeiramente na assadeira antes de retirá-los para esfriarem sobre uma grade. Repita a operação com o restante da massa.
  9. Os biscoitos de mantém frescos por vários dias num pote fechado. 

 Em tempo: pois é, eu tenho feito a maior parte das refeições da casa veganas, e sempre que posso, evito produtos animais. Tem sido engraçado que as crianças curtiram isso de colocar levedura de cerveja no macarrão no lugar do parmesão e Thomas virou o maior fã de manteigas de castanhas na torrada de manhã. Mas a pizza do fim de semana continua tendo queijo e faço ovos quentes para eles sempre que pedem no café. E sim, meus chocolate chip cookies são tradicionais e comi um montão deles, que estão deliciosos. Ninguém virou vegano nem vegetariano. Mas essa diminuída nos produtos animais tem sido boa para todo mundo aqui em casa.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Acordando cedo, meditação, ayurveda e bolo mágico de chocolate


Gansos no lago congelado.
Acordo às cinco e meia da manhã com a vibração suave de meu relógio de corrida em meu pulso. Desligo o alarme antes que desperte meu marido ao meu lado, e por alguns segundos fecho os olhos, inspirando fundo e tentando me lembrar dos sonhos loucos que tive àquela noite. Preguiça de levantar. Mas levanto. Sei que é bom para mim e que a preguiça só dura até eu de fato sair do quarto, ao que ela desaparece como que apanhada num portal mágico assim que piso na sala. Em silêncio, passo por meu altarzinho onde repouso minha caixinha de yoga que tenho desde minha iniciação, meu tarô, a vela que Allex me deu no nosso primeiro encontro e que tem gravado o ideograma japonês para Amor, a joaninha de brinquedo com a palavra LOVE inscrita que meu pai me deu um dia, uma pequena estátua de Ganesha, outra de Buda, e mais tantos outros símbolos de amor e inspiração que coletei ao longo de minha vida. Demorei muito tempo para montar esse pequeno altar, que nunca tivera um espaço apropriado em outras casas nossas. Até esse dia, há umas semanas atrás, em que resolvi trocar um móvel e uns livros de lugar, e montei aquela estante-altar bem no centro geométrico do apartamento. Um pouco sem querer, a intenção era apenas reorganizar nossas coisas, mas quando olhei para a alta e estreita estante, ali estava ela, com os instrumentos musicais, os livros de Yoga, o primeiro brinquedinho que compramos para Thomas quando ele ainda estava em minha barriga, o talismã de proteção que uma amiga trouxe para Laura do Japão, os dadinhos de pelúcia vermelhos que Allex me deu e que até hoje são o símbolo, para mim, de que tenho ao meu lado alguém que de fato me ouve quando falo. Montei meu altar sem querer, e agora ali está ele, à vista de todos, e a ele dou Bom Dia sempre. (Thomas às vezes para ali em frente para esfregar a barriga do Buda.)

Assim vou à cozinha, nas pontas dos pés, imersa em escuridão, torcendo para não tropeçar em nenhum brinquedo que possa ter sido deixado no meio do caminho na noite anterior, e apanho um limão para espremer num copo d´água e matar minha sede antes de qualquer outra coisa. A acidez do limão percorre meu corpo como eletricidade, e estou enfim acordada.

Olho em volta. É noite escura, a não ser pelas luzes amarelas dos postes das ruas, que invadem atrevidas a sala pelas janelas, permitindo que eu enxergue o que estou fazendo sem precisar acender outras lâmpadas. Continuará noite ainda por muito tempo. No inverno, o sol surge tarde, preguiçoso, sem energia, bocejando e sem vontade de trabalhar.

Caminho até o tapete felpudo e branco, que continua branco apesar do cachorro e das crianças, o que em si só é prova de que milagre (mágica?) existe. Faço minha Saudação ao Sol sem sol, como quem paga a promessa antes de receber a bênção. As costas estalam ao serem alongadas, sinto os tornozelos rígidos se soltando, a respiração coordenada com os movimentos termina de me despertar. Espreguiço com prazer antes de me sentar para meditar.

Faço a prática completa de Kriya Yoga, que aprendi há tantos anos. Respirações, alongamentos, relaxamentos, meditação. Aprecio o silêncio e a escuridão da minha sala. Isso de estar desperta há mais de meia hora sem ter precisado despender uma palavra. O silêncio me acolhe e me acalma, e enquanto medito, enxergo as respostas que eu buscava.

Agradeço.

Levanto.

É noite ainda.

Se tenho sorte, vou até a mesa, ligo o abajur pequeno e apanho meu caderno e um lápis para escrever um pouco. Um sonho, um insight, uma ideia, um desabafo. Olho para a cidade lá fora, pontinhos luminosos num mar negro, meu rosto refletido em dourado na janela, o abajur ali duplicado. Tenho tempo de pensar a vida com calma, olhando os faróis de um carro ou outro lá embaixo, o som dos primeiros ônibus estacionando na estação.

Quando tenho menos sorte (ou o universo apenas tem planos diferentes dos meus), abro os olhos da meditação para imediatamente ouvir o som da maçaneta da porta, e um filho ou uma filha vindo de passinhos leves, tateando seu caminho no escuro, cabelos emaranhados em frente aos olhinhos esfregados com o dorso das mãos, dizendo Bom Dia Mamãe.

Pergunto quem quer fazer café e quem quer dar comida ao cachorro. Cada um se oferece para uma coisa, ou às vezes um só quer fazer os dois. Desde que comecei a levantar tão cedo, têm sido a vez do papai receber cappuccino na cama. Com direito à Bom Dia Começa Com Alegria, Bom Dia Começa Com Amor.

Esfrego o cachorro que vem dizer Oi. Vejo as crianças irem aos seus interesses. Às vezes estão inspirados e já saem do quarto trocados, de cama arrumada, e correm a preparar seus cafés-da-manhã, cheios de certezas. Hoje eu quero iogurte com fruta!, diz um, abrindo a geladeira. Hoje eu quero bolo e um ovo frito!, diz o outro, e cata a frigideira. Ofereço ajuda, faço o que posso, mas tento deixar que façam sozinhos, que escolham sozinhos, que se arranjem como melhor puderem e limpem a própria bagunça.

Outras vezes, os dois ficam de pijamas por muito tempo, e vão brincar ou desenhar ou conversar por bem uma hora, e se pergunto o que vão comer, a resposta é Não Sei, e deixo quieto, no ritmo deles, porque há muito tempo ainda até a escola, e não preciso apressar ninguém. Se eu tiver paciência e esperar  e confiar (e essa é a parte mais difícil, aprendizado nível profissional para mamãe-rainha-do-controle), eles virão comer e resolverão botar uma roupa quando acharem que já é hora, e o resultado será o mesmo de sempre, ainda que o processo seja diverso.

Allex acorda e coloca uma música e vem me dar um abraço. A "regra" é essa. Quem ganha café tem que dar abraço em quem fez café. ;) Tomo meu café preto, assim, sem nada. Os cappuccinos andam sumidos do meu dia, agora que estou experimentando evitar laticínios. Preparo meu pão dourado no óleo de coco, com manteiga de castanha do Pará e rodelas de banana. Sento à mesa para comer com calma, enquanto converso com quem quiser conversar. Thomas sempre quer. Ele acorda cheio de assunto, meu menino.

Preparo o almoço das crianças. Sempre o que restou de jantar, pois agora eles voltaram a querer comida quente na escola, cansados da fase do sanduíche. Um bolo ou um biscoito feito em casa. Uma fruta. Talvez um iogurte com maple syrup. Nori cortadinho. Crianças aqui no Canadá adoram comer algas. Arranjo o que tiver sem ficar pensando demais a respeito. O importante é que estejam alimentados.

Chamo os dois para empacotar as lancheiras e arrumar nas mochilas tudo o que precisarem para a escola àquele dia. É responsabilidade deles olhar seus calendários e agendas e saber quando devem levar livros ou material de natação.

São sete da manhã. Os primeiros raios de sol entram pela janela e pela primeira vez desde que levantei, consigo olhar o parque, as ruas, e averiguar as possibilidades do meu dia em relação ao estado das calçadas. Chuva, neve, sol, não importa. Não havendo gelo nas ruas, posso correr.

Meto-me na roupa velha de ginástica, protejo as mãos com luvas, a cabeça com um gorro, e saio. Não sei se as crianças vão estar prontas para a escola na hora em que eu voltar. Mas aprendi a desapegar dessa ideia. Além disso, marido está em casa pra isso, e ele continua gerenciando a bagunça enquanto eu corro. É um constante aprendizado, novamente, doutorado em desapego, isso de largar mão do controle e deixar o marido e cria se virarem.

O parque é vazio e silencioso, ainda imerso numa luz suave e difusa do nascer do sol. Os troncos das árvores são vermelhos e iridescentes nos primeiros instantes da aurora. Quando há neve, ela ganha tons suaves de lilás e cor-de-rosa que se esmaecem até a conformidade dos azuis e dos cinzas. Quase sempre há outras pessoas correndo, e nos dizemos bom-dia, membros oficiais dos corredores do começo da manhã. Se chove ou neva, minha companhia são os pássaros lá no alto e os tratores que removem a neve do meio da rua antes do trânsito aumentar.

No fim de semana, consigo correr mais longe. No inverno, às vezes as trilhas (e as ruas) estão assim: cheias de gelo puro, neve que descongelou, virou um rio, e congelou de novo, esperando pelo primeiro passante desavisado pisar, escorregar e cair de bunda no chão.
Corro tranquila. Em meia hora, dependendo da quantidade de neve na rua, posso fazer meus cinco quilômetros com calma. E quando retorno, de coração batendo forte e mente alerta, consigo lidar de bom humor com a possibilidade de ninguém ter escovado os dentes ainda nem ter guardado a lancheira.

Ou sorrir contente, com a constatação de que tudo correu bem enquanto eu estava fora. Quando isso acontece, as crianças gostam de gritar do quarto quando abro a porta: Mamãe! A gente fez tudo o que você pediu!

Coloco numa panela minha bebida ayurvédica pós-treino. Pois a corrida foi ótima para livrar meu corpo do Kapha quando eu estava letárgica, acima do peso e deprimida. Mas agora tudo o que ela faz é aumentar meu Vatta e me deixar mais aérea, esquecida, de pele mais seca, e desidratada, principalmente quando corro em temperaturas frias e com vento. Estudar mais afundo a respeito de Ayurveda tem me ajudado a cuidar melhor do meu corpo, que andava dando sérios sinais de desequilíbrio.

Vai na panela o leite de amêndoas, tâmaras, cardamomo e açafrão, que quando não tenho, substituo por uma pitada de cúrcuma. Levo à fervura, desligo, tampo e deixo lá enquanto tomo meu banho. Já são oito horas, e agora quem precisa se apressar sou eu. Pronta para sair, bato minha bebida quente no liquidificador, e bebo tranquilamente enquanto converso com o marido que se arruma para ir ao trabalho. Escovo meus dentes e saio com cão e crianças em direção à escola, depois de um beijo estalado no meu amor. E eu sei que quando voltar do passeio do cachorro, minha manhã será mais longa e produtiva, com o devido tempo para descansar a cabeça antes de buscar as crianças na escola novamente.
....


Parece estranho mais uma história sobre as rotinas da manhã, mas as coisas têm mesmo mudado ao longo dos meses. Havia um tempo que eu andava incomodada com minha letargia matinal e o fato de ser a última a levantar da cama (ainda que adorasse ser acordada por meus filhos e cappuccinos). Eu andava indo dormir tarde, e dormir tarde me fazia ter fome novamente (afinal, jantamos às seis da tarde), acabava abrindo uma cerveja enquanto batia papo com o marido, e essa combinação de late night snack e álcool me fazia ter noites mal dormidas e insônias. Um ciclo realmente vicioso, que piora no inverno. Some-se a isso a festa do frango que foram os últimos meses. O claro aumento no meu consumo de carnes em relação ao que era no Brasil (por vários fatores, mas principalmente o frio, cultura canadense, oferta de carnes orgânicas...). E o resultado, apesar da corrida e de todas as frutas e verduras, foi um quadro inflamatório no meu corpo. Manchas na pele, digestão desandada, crises de sinusite, insônia, falta de energia, irritabilidade, azia e mais tantos sintomas, entre eles essa melancolia, que eu gostava de atribuir ao inverno, Winter Blues, mas eu sabia que tinha muito mais a ver com esse processo arqueológico de escavação do meu excremento emocional. Sim, excremento emocional, é esse o nome que dou àquela lama podre e fedida que jaz no fundo, bem no fundo do seu ser. Aquela que quando você encontra, não quer nem encostar, quanto mais remexer. Mas é necessário, não é? Uma pessoa me disse outro dia que tinha cansado de ficar chafurdando nessa lama emocional, e tinha decidido deixar quieto, que do jeito que estava já era bom o suficiente. Ali eu lembrei daquela frase famosa, sobre a flor de lótus nascendo da lama, e respondi: eu quero mais é mergulhar no meu excremento emocional até encontrar o fundo. Daí eu posso apoiar meus pés no chão firme lá em baixo e dar impulso pra nadar pra fora dessa lama de uma vez por todas.

Ao fundo cheguei. Olhei em volta, remexi, cheirei, provei, compreendi. Há algo de podre no reino da Dinamarca.

E está na hora de mudar isso tudo. Apoiei os pés. Dei impulso pra (tentar) deixar isso pra trás. E cá estamos.

Com a cabeça um pouco mais no lugar, resolvi ouvir meu corpo e o que eu andava fazendo com ele. O primeiro padrão que notei foi a azia forte que sentia depois de comer carne e beber. Todas as vezes. O efeito na minha digestão era sempre o mesmo, independente de quão delicioso estivesse ou quão emocionalmente reconfortante aquele franguinho /cachorro-quente / churrasco fosse. E as manchas em meu rosto aumentavam, parecendo o processo alérgico que tenho quando tomo Schwepps. (Algo na composição do Schwepps de limão faz aparecerem placas vermelhas, quentes e piniquentas no meu corpo todo, e desde a faculdade que não chego perto disso.)

Estou querendo dar um tempo em carne, chuchu, disse a Allex. Não está me fazendo bem.
Ok, ele disse. Ele andava tendo os mesmos pensamentos.
Não para sempre, continuei. Mas deixar carne pra ocasiões realmente especiais, tipo quando vamos viajar para algum lugar e o prato típico é de carne e a gente quer muito provar, sabe?
Ele assentiu.

Isso me deixou tranquila. Sou eu quem cozinha em casa, mas não quero impor minhas escolhas ao restante da família. Expliquei às crianças que a mamãe pretendia passar um tempo sem cozinhar carne nenhuma, e eles acharam ok. Laura só não se empolgou com os hambúrgueres vegetarianos, dos quais ela nunca foi muito fã.

Naquela mesma noite, tive mais uma de minhas insônias. E, cansada de me revirar na cama, levantei às cinco da manhã e resolvi ir fuçar no celular... que estava sem bateria. Sem saber o que fazer, sem vontade de ler naquele momento, resolvi meditar. E meu dia foi tão melhor depois disso, que assim que tomei meu café da manhã, acertei meu relógio para me despertar às cinco e meia na manhã seguinte.

A primeira semana foi difícil. Acordar às cinco e meia e meditar é a parte fácil. Sinto-me tão bem depois de fazê-lo que essa mera lembrança é incentivo o bastante para sair da cama, mesmo de sábado e domingo. O problema foi a adaptação da hora de dormir. Eu tinha um sono acachapante no fim da tarde, e sabia que seria capaz de ir dormir às sete e meia da noite junto com as crianças, se não fosse o desejo de passar tempo com Allex à noite. Ele ainda tinha expectativa de que fôssemos conversar, ver uma série e ir dormir às onze, e depois de entrar na rotina dele por alguns dias, precisei bater meu pé e dizer boa noite às oito e meia, o que foi um bocado decepcionante para todos. Há alguns dias atrás, no entanto, ele resolveu começar a acordar junto comigo para meditar também (depois de lembrar que ele costumava fazer a mesma coisa há uns anos atrás no Brasil), o que faz com que nosso padrão de sono seja o mesmo, ainda que ele notoriamente precise dormir menos horas que eu. Temos ido dormir pouco depois das nove e meia e por enquanto isso tem funcionado muito bem. :) A vantagem que eu não previa era de que acabamos vendo menos TV à noite, uma vez que não dá tempo de ver nada. Filme e série fica para o fim de semana, quando dá pra ir dormir depois das dez e compensar com um delicioso cochilo à tarde. Meditar todos os dias também abaixa minha ansiedade e me faz ter menos vontade de beber qualquer coisa, não só à noite, mas nos fins de semana também. Uma coisa vai puxando a outra. Hábitos ruins puxam hábitos ruins, hábitos bons puxam outros hábitos bons.

Então num desses dias em que Allex estava em Ottawa a trabalho e as crianças haviam ido para a cama particularmente cedo, com preguiça de ler, sentei para assistir a um documentário que andava pipocando por aí: Game Changers.

Quando comecei a me preparar para a maratona do ano passado, fui atrás de informação sobre nutrição de maratonistas e ultramaratonistas, pois percebi que os treinos longos diários andavam me deixando com muito mais fome do que o normal, e eu precisava me adaptar um pouco, mas não sabia como. O fato de boa parte deles terem uma alimentação vegana me chamou a atenção, e fiquei desde aquela época com essa pulga atrás da orelha.

O documentário é bem divertido. O outro que a Netflix exibe, Forks Over Knives, também é, e dá um pouco mais de infromação científica a respeito de alimentação a base de plantas.

Eu tenho minha primeira ultra-maratona marcada para agosto. Cinquenta quilômetros. Tenho seis meses para me preparar. Aí está uma boa oportunidade de ver se meu corpo se comporta diferente (tanto em saúde quanto no desempenho nos treinos) evitando produtos animais. E depois de ir atrás de mais informação, resolvi fazer essa experiência. Assim, sem cobranças nem me enfiando em caixinhas e rótulos, porque quem fica dentro de caixa com rótulo é produto de supermercado e eu não tenho vocação pra isso. Resolvi simplesmente tentar fazer a maior quantidade de refeições veganas (plant-based) possíveis. POSSÍVEIS. Porque afinal, quem está correndo 50km sou eu, não meus filhos, nem meu marido. E não quero impor a eles mais de mim mesma do que já imponho. Eu estou tomando café preto, mas marido continua no tradicional cappuccino. Claro que se eu puder fazer um strogonofe com creme de castanha de caju ao invés de creme de leite, eles vão acabar comendo um prato vegano também e não vão nem notar (eu não faço alarde e ninguém nota). Mas se eles quiserem um ovo frito junto com o arroz, feijão preto, couve e abóbora assada (que é meu PF favorito e não intencionalmente vegano), não vou ficar surtando na batatinha.  Eles adoram ovos e iogurte. Laura não é fã de queijos, o que até facilita a vida.

O painço de ontem virou esse hamburguinho, cheio de ervas e temperos. Usei linhaça para dar liga. Laura não é fã de bolinhos nem de hambúrgueres vegetarianos, mas se ela puder colocar maionese em cima, ela come. Fazer o quê.

Por exemplo, quando fiz burritos no fim de semana, o dos meninos tinha queijo e o das meninas, não. Mas enfim, é minha experiência e não deles e a saúde deles está ótima e sem necessidade de qualquer restrição alimentar. E se eu estiver afim de comer pizza com queijo, está tudo bem. É para DIMINUIR os produtos animais tanto quanto possível, não eliminá-los completamente e me deixar miserável. Afe, a vida é muito curta pra se sentir miserável.  (E eu adoro OVO. Costumava dizer que jamais seria vegana por conta do queijo, mas hoje sei que se tem um produto animal sem o qual minha vida seria triste é ovo. Sonho da vida era ter galinhas de novo, como tinha na chácara, ciscando felizes por aí, comendo couve na minha mão. A gente nunca matou galinha para comer lá na chácara dos meus pais, eram só os ovos que a gente queria. Elas tinham uma vida bem longa e feliz no meio do mato, num galinheiro imenso (que eu abria para elas passearem na horta e comerem os bichinhos que mastigavam nossas verduras) que só servia pra elas não serem comidas por outros bichos durante a noite.) Enfim.

No fim de semana, fiz burritos de arroz, feijão preto, pico de gallo (aquele vinagrete mexicano) e abacate. Os meninos colocaram queijo nos deles, mas Laura e eu comemos sem. Mas durante a semana, fiz um para meu almoço de feijão preto, banana-da-terra grelhada, abacate e couve refogada. DELÍCIA.
Também teve o dia em que Thomas disse que queria preparar o almoço. O que você quer fazer, perguntei? E ele disse: aqueles crepes marrons que você faz, com ovos mexidos e salada.

Almoço idealizado e quase todo feito pelo Matador de Dragões.
Fiz os crepes para ele, pois eles são mesmo um pouco difíceis de preparar, e o restante ele mesmo preparou do começo ao fim, incluindo a montagem dos pratos. A couve roxa refogada foi sugestão minha, que ele acatou imediatamente. Quando meu filho faz crepes de sarraceno com ovos mexidos, couve e salada, eu vou recusar porque não estou comendo ovo e leite? DE JEITO NENHUM. Comi, e estava uma delícia, e agradeci todo o trabalho dele e disse que quero vê-lo cozinhando mais. 💓

Ainda que eu tenha preparado arroz doce com leite de amêndoas e eles tenham adorado e sequer notado a diferença. ;) Mas isso era só porque EU queria comer arroz doce.

As crianças pediram sorvete, mas eu também queria tomar. Então sorbet de manga foi uma excelente solução. Só bater manga congelada com umas colheres de água, açúcar e uma espremidinha de limão no processador até virar sorvete.

Além da experiência toda relacionada à corrida, cortar os produtos animais pode também diminuir esse meu quadro inflamatório. EM TEORIA. Veremos. Só preciso tomar cuidado com minha constituição ayurvédica. Da última vez que me enveredei em cozinha vegana, ainda no Brasil, o resultado foi meu Vatta nas alturas: pele mais seca ainda, falta de memória e atenção, sensação de estar aérea o tempo todo, mais insônia... E acabei voltando pras carnes e queijos porque na época conclui que era a ausência deles que me deixava assim. Mas hoje sei que fiz tudo errado: fiquei nas saladas leves e nos sucos verdes, que não são boa coisa pra mim. No MEU CASO (lembrando que o lindo do Ayurveda é que ele é específico para você e não genérico, então o que funciona pra mim não necessariamente funciona pra você), preciso de todos as minhas folhas verdes e amargas muito bem coizidinhas e balanceadas com coisas como batata-doce ou abóbora, por exemplo. A gente vai aprendendo, e dessa vez estou passando longe do suco verde e indo mais para os sucos de fruta mesmo. E tomando meu leite de amêndoa com tâmara depois de correr na neve. (Também porque NO MEU CASO não estou precisando perder peso, como era quando comecei a correr há anos atrás ou quando voltei à corrida aqui no Canadá, então comer mais dessas coisas cremosas, docinhas, quentinhas, vai só me fazer bem. Se você tem todos esses sintomas de vatta alto e também está acima do peso e letárgica, seu estado é completamente outro, e nada disso que eu disse serve pra você. É bom ir atrás de um profissional para fazer a anamnese correta e te ajudar com as mudanças de hábito e dieta necessárias para o SEU caso.)

Contei que minha insônia foi embora? Yaaaaaaay! Leite de amêndoas quentinho com uma pitada de noz-moscada meia hora antes de dormir foi também um remedinho ayurvédico fantástico. :D


Essa é uma sopa de brócolis e ervilha (2 xíc cada), refogados com cebola, alho e gengibre, cozidos em caldo de legumes e batido com leite de coco e algumas folhas de hortelã. A receita estava no Instagram do Green Kitchen Stories, e é uma delícia. Comi no almoço com a torrada com abacate que, antes, teria sido meu almoço apenas. Pequenos ajustes.

E para firmar esse acordo comigo mesma de não me levar excessivamente à sério, preparei esse bolo de chocolate da Alice Medrich, que leva as amêndoas que sobraram do leite, TEM ovos, açúcar e um nadinha de farinha de trigo, mas usa azeite no lugar de manteiga. Além de ficar uma delícia e acalmar meu Velho Eu radical, ainda nutriu meu Eu Verdadeiro que acredita na mágica das coisas. Porque eu não prestei atenção ao fogão e deixei a mistura de azeite e chocolate mais tempo no fogo do que a receita mandava, e assim que eu adicionei os ovos, ela talhou MISERAVELMENTE.

Cogitei jogar tudo fora e amaldiçoar os demônios da massa talhada, como eu fazia antigamente. Mas respirei fundo. Meditação é essa coisa linda que te ajuda a lidar com as intempéries da vida de uma forma mais tranquila. Dei risada daquela porcaria nadando na minha tigela de vidro, que parecia ter sido retirada do esgoto. Respirei fundo de novo. Sem me sentir nenhum pouco ridícula e munida de uma confiança saída sabe-se lá de onde, olhei para aqueles caroços de massa marrom nadando em azeite e disse: "Nossa! Nem acredito que esse bolo deu certo!" E continuei com a receita, colocando um pouco das amêndoas antes das claras em neve, e batendo bem, e o tempo todo pensando que fantástica era aquela receita, que apesar de dar tão errado no meio do caminho, ficaria perfeita no final. Despejei a massa empelotada e pouco promissora na forma e coloquei o bolo no forno feliz e confiante, mas também com um enorme nível de desapego com relação ao resultado. (Desapego, essa outra coisa linda que vem com a meditação.) Meus filhos não fazem a menor cara feia com bolo solado, porque doce é doce e para eles tudo está sempre ótimo, então o pior que poderia acontecer, era virar uma maçaroca doce de chocolate razoavelmente comestível e mais um "Desastre Culinário", parte da coleção de histórias que meu filho pede pra eu contar quase todo o jantar. "Mãe, conta de novo aquela da torta de dedão de pé?"

O timer tocou, e lá fui eu tirar meu bolo. Frio, desenformei, cortei a primeira fatia. E comecei a rir.

"NOSSA! NEM ACREDITO QUE ESSE BOLO DEU CERTO!"

O bolo mágico de chocolate, que assim como qualquer jornada psicológica e emocional que valha à pena, foi da lama do esgoto ao estado de bem-aventurança, com um pouco de adaptação e trabalho duro.

E continuemos nos cuidando com amor, observando os efeitos de nossos hábitos em nossos corpos e mentes e mudando o que for necessário mudar. Quero ser eu, só eu, sem rótulo nem caixinha, que eu não tenho vocação para produto de supermercado.

Depois de preparar o bolo de chocolate para meus filhos, tratei de fazer minha pizza. Cheia de legumes, mas com queijo. 



BOLO MÁGICO DE CHOCOLATE, AZEITE E AMENDOAS
(do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, de Alice Medrich)

Ingredientes:
  • 1/2 xic de amêndoas com ou sem casca ou a mesma quantidade de amêndoas moídas (o resíduo do leite vegetal)
  • 2 colh. (sopa) farinha de trigo
  • 170g chocolate amargo (70 a 72%), picado
  • 1/2 xic. azeite extravirgem
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 4 ovos grandes, separados, em temperatura ambiente
  • 3/4 xic. açúcar
  • 1/8 colh (chá) cremor tártaro (ou algumas gotas de suco de limão - o que serve de estabilizante para as claras é a acidez)

Preparo:
  1. Unte uma forma de 22cm de fundo removível com azeite. Pré-aqueça o forno a 190oC e posicione a grade na parte inferior do forno. 
  2. Se estiver usando amêndoas inteiras, bata no processador com a farinha, pulsando, até que estejam finamente moídas, tomando cuidado para não formar uma pasta. Se estiver usando as amêndoas já moídas, apenas misture-as à farinha.
  3. Coloque o chocolate, o azeite e o sal numa tigela em banho-maria (sem que a tigela toque na água quente) e mexa de vez em quando, apenas até que o chocolate esteja quase derretido. (Eu deixei derreter totalmente e provavelmente por isso talhou), 
  4. Remova a tigela e mexa o chocolate com uma espátula até que esteja derretido e incorporado no azeite. Junte 1/2 xic. do açúcar e as gemas e misture com um fouet. (Foi nesse momento que minha mistura separou.)
  5. Com uma batedeira, bata as claras e o cremor tártaro (ou suco de limão) até que forme picos suaves. Junte gradualmente o restante do açúcar, enquanto continua a bater as claras, até obter picos firmes, mas não secos (ainda devem estar brilhantes). 
  6. Use a espátula para incorporar um quarto das claras à mistura de chocolate. (Foi nessa hora que mudei o processo, pra tentar reverter a mistura talhada, incorporando as claras e as amêndoas de forma intercalada. Mas se sua mistura não talhou, siga a receita normalmente.) Coloque o resto das claras batidas sobre a mistura, e também as amêndoas, e então termine de incorporar tudo, rápida mas delicadamente, até que esteja razoavelmente homogêneo. 
  7. Transfira a massa para a forma, alisando a superfície para que fique uniforme, e leve ao forno, na grade mais baixa, por 25 minutos, ou até que um palito inserido no centro saia com migalhas ainda úmidas. 
  8. Retire do forno e coloque numa grade para esfriar. Passe uma faca nas laterias, para permitir que o bolo afunde um pouco e craquele por cima enquanto esfria. Deixe esfriar completamente antes de remover da forma.
....


PS1: claro que eu fiz de novo, e apertei o botão PUBLICAR ao invés de SALVAR. Eu escrevo umas três versões de cada texto antes de publicar, porque sou bem cricri com o que escrevo hoje em dia. Daí que alguém deve ter recebido por email a versão 2.4 (hahaha) sem nem receita nem foto ainda. Releva. Afe.


PS2: Em tempo, um aviso: ando recebendo muitos comentários em posts MUITO antigos, fazendo perguntas sobre receitas que preparei há dez anos atrás. Ainda que eu queira muito responder a todos e ajudar todo mundo, eu me perco e não dou conta, e às vezes eu nem me lembro direito da receita o bastante para responder de forma satisfatória. Então, para evitar futuros desconfortos, estou aos poucos retirando os comentários de textos antigos. Assim consigo DE FATO responder aos comentários do post atual e me organizar melhor. Ok? Grata pela compreensão. ;) 


Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails