segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Acordando cedo, meditação, ayurveda e bolo mágico de chocolate


Gansos no lago congelado.
Acordo às cinco e meia da manhã com a vibração suave de meu relógio de corrida em meu pulso. Desligo o alarme antes que desperte meu marido ao meu lado, e por alguns segundos fecho os olhos, inspirando fundo e tentando me lembrar dos sonhos loucos que tive àquela noite. Preguiça de levantar. Mas levanto. Sei que é bom para mim e que a preguiça só dura até eu de fato sair do quarto, ao que ela desaparece como que apanhada num portal mágico assim que piso na sala. Em silêncio, passo por meu altarzinho onde repouso minha caixinha de yoga que tenho desde minha iniciação, meu tarô, a vela que Allex me deu no nosso primeiro encontro e que tem gravado o ideograma japonês para Amor, a joaninha de brinquedo com a palavra LOVE inscrita que meu pai me deu um dia, uma pequena estátua de Ganesha, outra de Buda, e mais tantos outros símbolos de amor e inspiração que coletei ao longo de minha vida. Demorei muito tempo para montar esse pequeno altar, que nunca tivera um espaço apropriado em outras casas nossas. Até esse dia, há umas semanas atrás, em que resolvi trocar um móvel e uns livros de lugar, e montei aquela estante-altar bem no centro geométrico do apartamento. Um pouco sem querer, a intenção era apenas reorganizar nossas coisas, mas quando olhei para a alta e estreita estante, ali estava ela, com os instrumentos musicais, os livros de Yoga, o primeiro brinquedinho que compramos para Thomas quando ele ainda estava em minha barriga, o talismã de proteção que uma amiga trouxe para Laura do Japão, os dadinhos de pelúcia vermelhos que Allex me deu e que até hoje são o símbolo, para mim, de que tenho ao meu lado alguém que de fato me ouve quando falo. Montei meu altar sem querer, e agora ali está ele, à vista de todos, e a ele dou Bom Dia sempre. (Thomas às vezes para ali em frente para esfregar a barriga do Buda.)

Assim vou à cozinha, nas pontas dos pés, imersa em escuridão, torcendo para não tropeçar em nenhum brinquedo que possa ter sido deixado no meio do caminho na noite anterior, e apanho um limão para espremer num copo d´água e matar minha sede antes de qualquer outra coisa. A acidez do limão percorre meu corpo como eletricidade, e estou enfim acordada.

Olho em volta. É noite escura, a não ser pelas luzes amarelas dos postes das ruas, que invadem atrevidas a sala pelas janelas, permitindo que eu enxergue o que estou fazendo sem precisar acender outras lâmpadas. Continuará noite ainda por muito tempo. No inverno, o sol surge tarde, preguiçoso, sem energia, bocejando e sem vontade de trabalhar.

Caminho até o tapete felpudo e branco, que continua branco apesar do cachorro e das crianças, o que em si só é prova de que milagre (mágica?) existe. Faço minha Saudação ao Sol sem sol, como quem paga a promessa antes de receber a bênção. As costas estalam ao serem alongadas, sinto os tornozelos rígidos se soltando, a respiração coordenada com os movimentos termina de me despertar. Espreguiço com prazer antes de me sentar para meditar.

Faço a prática completa de Kriya Yoga, que aprendi há tantos anos. Respirações, alongamentos, relaxamentos, meditação. Aprecio o silêncio e a escuridão da minha sala. Isso de estar desperta há mais de meia hora sem ter precisado despender uma palavra. O silêncio me acolhe e me acalma, e enquanto medito, enxergo as respostas que eu buscava.

Agradeço.

Levanto.

É noite ainda.

Se tenho sorte, vou até a mesa, ligo o abajur pequeno e apanho meu caderno e um lápis para escrever um pouco. Um sonho, um insight, uma ideia, um desabafo. Olho para a cidade lá fora, pontinhos luminosos num mar negro, meu rosto refletido em dourado na janela, o abajur ali duplicado. Tenho tempo de pensar a vida com calma, olhando os faróis de um carro ou outro lá embaixo, o som dos primeiros ônibus estacionando na estação.

Quando tenho menos sorte (ou o universo apenas tem planos diferentes dos meus), abro os olhos da meditação para imediatamente ouvir o som da maçaneta da porta, e um filho ou uma filha vindo de passinhos leves, tateando seu caminho no escuro, cabelos emaranhados em frente aos olhinhos esfregados com o dorso das mãos, dizendo Bom Dia Mamãe.

Pergunto quem quer fazer café e quem quer dar comida ao cachorro. Cada um se oferece para uma coisa, ou às vezes um só quer fazer os dois. Desde que comecei a levantar tão cedo, têm sido a vez do papai receber cappuccino na cama. Com direito à Bom Dia Começa Com Alegria, Bom Dia Começa Com Amor.

Esfrego o cachorro que vem dizer Oi. Vejo as crianças irem aos seus interesses. Às vezes estão inspirados e já saem do quarto trocados, de cama arrumada, e correm a preparar seus cafés-da-manhã, cheios de certezas. Hoje eu quero iogurte com fruta!, diz um, abrindo a geladeira. Hoje eu quero bolo e um ovo frito!, diz o outro, e cata a frigideira. Ofereço ajuda, faço o que posso, mas tento deixar que façam sozinhos, que escolham sozinhos, que se arranjem como melhor puderem e limpem a própria bagunça.

Outras vezes, os dois ficam de pijamas por muito tempo, e vão brincar ou desenhar ou conversar por bem uma hora, e se pergunto o que vão comer, a resposta é Não Sei, e deixo quieto, no ritmo deles, porque há muito tempo ainda até a escola, e não preciso apressar ninguém. Se eu tiver paciência e esperar  e confiar (e essa é a parte mais difícil, aprendizado nível profissional para mamãe-rainha-do-controle), eles virão comer e resolverão botar uma roupa quando acharem que já é hora, e o resultado será o mesmo de sempre, ainda que o processo seja diverso.

Allex acorda e coloca uma música e vem me dar um abraço. A "regra" é essa. Quem ganha café tem que dar abraço em quem fez café. ;) Tomo meu café preto, assim, sem nada. Os cappuccinos andam sumidos do meu dia, agora que estou experimentando evitar laticínios. Preparo meu pão dourado no óleo de coco, com manteiga de castanha do Pará e rodelas de banana. Sento à mesa para comer com calma, enquanto converso com quem quiser conversar. Thomas sempre quer. Ele acorda cheio de assunto, meu menino.

Preparo o almoço das crianças. Sempre o que restou de jantar, pois agora eles voltaram a querer comida quente na escola, cansados da fase do sanduíche. Um bolo ou um biscoito feito em casa. Uma fruta. Talvez um iogurte com maple syrup. Nori cortadinho. Crianças aqui no Canadá adoram comer algas. Arranjo o que tiver sem ficar pensando demais a respeito. O importante é que estejam alimentados.

Chamo os dois para empacotar as lancheiras e arrumar nas mochilas tudo o que precisarem para a escola àquele dia. É responsabilidade deles olhar seus calendários e agendas e saber quando devem levar livros ou material de natação.

São sete da manhã. Os primeiros raios de sol entram pela janela e pela primeira vez desde que levantei, consigo olhar o parque, as ruas, e averiguar as possibilidades do meu dia em relação ao estado das calçadas. Chuva, neve, sol, não importa. Não havendo gelo nas ruas, posso correr.

Meto-me na roupa velha de ginástica, protejo as mãos com luvas, a cabeça com um gorro, e saio. Não sei se as crianças vão estar prontas para a escola na hora em que eu voltar. Mas aprendi a desapegar dessa ideia. Além disso, marido está em casa pra isso, e ele continua gerenciando a bagunça enquanto eu corro. É um constante aprendizado, novamente, doutorado em desapego, isso de largar mão do controle e deixar o marido e cria se virarem.

O parque é vazio e silencioso, ainda imerso numa luz suave e difusa do nascer do sol. Os troncos das árvores são vermelhos e iridescentes nos primeiros instantes da aurora. Quando há neve, ela ganha tons suaves de lilás e cor-de-rosa que se esmaecem até a conformidade dos azuis e dos cinzas. Quase sempre há outras pessoas correndo, e nos dizemos bom-dia, membros oficiais dos corredores do começo da manhã. Se chove ou neva, minha companhia são os pássaros lá no alto e os tratores que removem a neve do meio da rua antes do trânsito aumentar.

No fim de semana, consigo correr mais longe. No inverno, às vezes as trilhas (e as ruas) estão assim: cheias de gelo puro, neve que descongelou, virou um rio, e congelou de novo, esperando pelo primeiro passante desavisado pisar, escorregar e cair de bunda no chão.
Corro tranquila. Em meia hora, dependendo da quantidade de neve na rua, posso fazer meus cinco quilômetros com calma. E quando retorno, de coração batendo forte e mente alerta, consigo lidar de bom humor com a possibilidade de ninguém ter escovado os dentes ainda nem ter guardado a lancheira.

Ou sorrir contente, com a constatação de que tudo correu bem enquanto eu estava fora. Quando isso acontece, as crianças gostam de gritar do quarto quando abro a porta: Mamãe! A gente fez tudo o que você pediu!

Coloco numa panela minha bebida ayurvédica pós-treino. Pois a corrida foi ótima para livrar meu corpo do Kapha quando eu estava letárgica, acima do peso e deprimida. Mas agora tudo o que ela faz é aumentar meu Vatta e me deixar mais aérea, esquecida, de pele mais seca, e desidratada, principalmente quando corro em temperaturas frias e com vento. Estudar mais afundo a respeito de Ayurveda tem me ajudado a cuidar melhor do meu corpo, que andava dando sérios sinais de desequilíbrio.

Vai na panela o leite de amêndoas, tâmaras, cardamomo e açafrão, que quando não tenho, substituo por uma pitada de cúrcuma. Levo à fervura, desligo, tampo e deixo lá enquanto tomo meu banho. Já são oito horas, e agora quem precisa se apressar sou eu. Pronta para sair, bato minha bebida quente no liquidificador, e bebo tranquilamente enquanto converso com o marido que se arruma para ir ao trabalho. Escovo meus dentes e saio com cão e crianças em direção à escola, depois de um beijo estalado no meu amor. E eu sei que quando voltar do passeio do cachorro, minha manhã será mais longa e produtiva, com o devido tempo para descansar a cabeça antes de buscar as crianças na escola novamente.
....


Parece estranho mais uma história sobre as rotinas da manhã, mas as coisas têm mesmo mudado ao longo dos meses. Havia um tempo que eu andava incomodada com minha letargia matinal e o fato de ser a última a levantar da cama (ainda que adorasse ser acordada por meus filhos e cappuccinos). Eu andava indo dormir tarde, e dormir tarde me fazia ter fome novamente (afinal, jantamos às seis da tarde), acabava abrindo uma cerveja enquanto batia papo com o marido, e essa combinação de late night snack e álcool me fazia ter noites mal dormidas e insônias. Um ciclo realmente vicioso, que piora no inverno. Some-se a isso a festa do frango que foram os últimos meses. O claro aumento no meu consumo de carnes em relação ao que era no Brasil (por vários fatores, mas principalmente o frio, cultura canadense, oferta de carnes orgânicas...). E o resultado, apesar da corrida e de todas as frutas e verduras, foi um quadro inflamatório no meu corpo. Manchas na pele, digestão desandada, crises de sinusite, insônia, falta de energia, irritabilidade, azia e mais tantos sintomas, entre eles essa melancolia, que eu gostava de atribuir ao inverno, Winter Blues, mas eu sabia que tinha muito mais a ver com esse processo arqueológico de escavação do meu excremento emocional. Sim, excremento emocional, é esse o nome que dou àquela lama podre e fedida que jaz no fundo, bem no fundo do seu ser. Aquela que quando você encontra, não quer nem encostar, quanto mais remexer. Mas é necessário, não é? Uma pessoa me disse outro dia que tinha cansado de ficar chafurdando nessa lama emocional, e tinha decidido deixar quieto, que do jeito que estava já era bom o suficiente. Ali eu lembrei daquela frase famosa, sobre a flor de lótus nascendo da lama, e respondi: eu quero mais é mergulhar no meu excremento emocional até encontrar o fundo. Daí eu posso apoiar meus pés no chão firme lá em baixo e dar impulso pra nadar pra fora dessa lama de uma vez por todas.

Ao fundo cheguei. Olhei em volta, remexi, cheirei, provei, compreendi. Há algo de podre no reino da Dinamarca.

E está na hora de mudar isso tudo. Apoiei os pés. Dei impulso pra (tentar) deixar isso pra trás. E cá estamos.

Com a cabeça um pouco mais no lugar, resolvi ouvir meu corpo e o que eu andava fazendo com ele. O primeiro padrão que notei foi a azia forte que sentia depois de comer carne e beber. Todas as vezes. O efeito na minha digestão era sempre o mesmo, independente de quão delicioso estivesse ou quão emocionalmente reconfortante aquele franguinho /cachorro-quente / churrasco fosse. E as manchas em meu rosto aumentavam, parecendo o processo alérgico que tenho quando tomo Schwepps. (Algo na composição do Schwepps de limão faz aparecerem placas vermelhas, quentes e piniquentas no meu corpo todo, e desde a faculdade que não chego perto disso.)

Estou querendo dar um tempo em carne, chuchu, disse a Allex. Não está me fazendo bem.
Ok, ele disse. Ele andava tendo os mesmos pensamentos.
Não para sempre, continuei. Mas deixar carne pra ocasiões realmente especiais, tipo quando vamos viajar para algum lugar e o prato típico é de carne e a gente quer muito provar, sabe?
Ele assentiu.

Isso me deixou tranquila. Sou eu quem cozinha em casa, mas não quero impor minhas escolhas ao restante da família. Expliquei às crianças que a mamãe pretendia passar um tempo sem cozinhar carne nenhuma, e eles acharam ok. Laura só não se empolgou com os hambúrgueres vegetarianos, dos quais ela nunca foi muito fã.

Naquela mesma noite, tive mais uma de minhas insônias. E, cansada de me revirar na cama, levantei às cinco da manhã e resolvi ir fuçar no celular... que estava sem bateria. Sem saber o que fazer, sem vontade de ler naquele momento, resolvi meditar. E meu dia foi tão melhor depois disso, que assim que tomei meu café da manhã, acertei meu relógio para me despertar às cinco e meia na manhã seguinte.

A primeira semana foi difícil. Acordar às cinco e meia e meditar é a parte fácil. Sinto-me tão bem depois de fazê-lo que essa mera lembrança é incentivo o bastante para sair da cama, mesmo de sábado e domingo. O problema foi a adaptação da hora de dormir. Eu tinha um sono acachapante no fim da tarde, e sabia que seria capaz de ir dormir às sete e meia da noite junto com as crianças, se não fosse o desejo de passar tempo com Allex à noite. Ele ainda tinha expectativa de que fôssemos conversar, ver uma série e ir dormir às onze, e depois de entrar na rotina dele por alguns dias, precisei bater meu pé e dizer boa noite às oito e meia, o que foi um bocado decepcionante para todos. Há alguns dias atrás, no entanto, ele resolveu começar a acordar junto comigo para meditar também (depois de lembrar que ele costumava fazer a mesma coisa há uns anos atrás no Brasil), o que faz com que nosso padrão de sono seja o mesmo, ainda que ele notoriamente precise dormir menos horas que eu. Temos ido dormir pouco depois das nove e meia e por enquanto isso tem funcionado muito bem. :) A vantagem que eu não previa era de que acabamos vendo menos TV à noite, uma vez que não dá tempo de ver nada. Filme e série fica para o fim de semana, quando dá pra ir dormir depois das dez e compensar com um delicioso cochilo à tarde. Meditar todos os dias também abaixa minha ansiedade e me faz ter menos vontade de beber qualquer coisa, não só à noite, mas nos fins de semana também. Uma coisa vai puxando a outra. Hábitos ruins puxam hábitos ruins, hábitos bons puxam outros hábitos bons.

Então num desses dias em que Allex estava em Ottawa a trabalho e as crianças haviam ido para a cama particularmente cedo, com preguiça de ler, sentei para assistir a um documentário que andava pipocando por aí: Game Changers.

Quando comecei a me preparar para a maratona do ano passado, fui atrás de informação sobre nutrição de maratonistas e ultramaratonistas, pois percebi que os treinos longos diários andavam me deixando com muito mais fome do que o normal, e eu precisava me adaptar um pouco, mas não sabia como. O fato de boa parte deles terem uma alimentação vegana me chamou a atenção, e fiquei desde aquela época com essa pulga atrás da orelha.

O documentário é bem divertido. O outro que a Netflix exibe, Forks Over Knives, também é, e dá um pouco mais de infromação científica a respeito de alimentação a base de plantas.

Eu tenho minha primeira ultra-maratona marcada para agosto. Cinquenta quilômetros. Tenho seis meses para me preparar. Aí está uma boa oportunidade de ver se meu corpo se comporta diferente (tanto em saúde quanto no desempenho nos treinos) evitando produtos animais. E depois de ir atrás de mais informação, resolvi fazer essa experiência. Assim, sem cobranças nem me enfiando em caixinhas e rótulos, porque quem fica dentro de caixa com rótulo é produto de supermercado e eu não tenho vocação pra isso. Resolvi simplesmente tentar fazer a maior quantidade de refeições veganas (plant-based) possíveis. POSSÍVEIS. Porque afinal, quem está correndo 50km sou eu, não meus filhos, nem meu marido. E não quero impor a eles mais de mim mesma do que já imponho. Eu estou tomando café preto, mas marido continua no tradicional cappuccino. Claro que se eu puder fazer um strogonofe com creme de castanha de caju ao invés de creme de leite, eles vão acabar comendo um prato vegano também e não vão nem notar (eu não faço alarde e ninguém nota). Mas se eles quiserem um ovo frito junto com o arroz, feijão preto, couve e abóbora assada (que é meu PF favorito e não intencionalmente vegano), não vou ficar surtando na batatinha.  Eles adoram ovos e iogurte. Laura não é fã de queijos, o que até facilita a vida.

O painço de ontem virou esse hamburguinho, cheio de ervas e temperos. Usei linhaça para dar liga. Laura não é fã de bolinhos nem de hambúrgueres vegetarianos, mas se ela puder colocar maionese em cima, ela come. Fazer o quê.

Por exemplo, quando fiz burritos no fim de semana, o dos meninos tinha queijo e o das meninas, não. Mas enfim, é minha experiência e não deles e a saúde deles está ótima e sem necessidade de qualquer restrição alimentar. E se eu estiver afim de comer pizza com queijo, está tudo bem. É para DIMINUIR os produtos animais tanto quanto possível, não eliminá-los completamente e me deixar miserável. Afe, a vida é muito curta pra se sentir miserável.  (E eu adoro OVO. Costumava dizer que jamais seria vegana por conta do queijo, mas hoje sei que se tem um produto animal sem o qual minha vida seria triste é ovo. Sonho da vida era ter galinhas de novo, como tinha na chácara, ciscando felizes por aí, comendo couve na minha mão. A gente nunca matou galinha para comer lá na chácara dos meus pais, eram só os ovos que a gente queria. Elas tinham uma vida bem longa e feliz no meio do mato, num galinheiro imenso (que eu abria para elas passearem na horta e comerem os bichinhos que mastigavam nossas verduras) que só servia pra elas não serem comidas por outros bichos durante a noite.) Enfim.

No fim de semana, fiz burritos de arroz, feijão preto, pico de gallo (aquele vinagrete mexicano) e abacate. Os meninos colocaram queijo nos deles, mas Laura e eu comemos sem. Mas durante a semana, fiz um para meu almoço de feijão preto, banana-da-terra grelhada, abacate e couve refogada. DELÍCIA.
Também teve o dia em que Thomas disse que queria preparar o almoço. O que você quer fazer, perguntei? E ele disse: aqueles crepes marrons que você faz, com ovos mexidos e salada.

Almoço idealizado e quase todo feito pelo Matador de Dragões.
Fiz os crepes para ele, pois eles são mesmo um pouco difíceis de preparar, e o restante ele mesmo preparou do começo ao fim, incluindo a montagem dos pratos. A couve roxa refogada foi sugestão minha, que ele acatou imediatamente. Quando meu filho faz crepes de sarraceno com ovos mexidos, couve e salada, eu vou recusar porque não estou comendo ovo e leite? DE JEITO NENHUM. Comi, e estava uma delícia, e agradeci todo o trabalho dele e disse que quero vê-lo cozinhando mais. 💓

Ainda que eu tenha preparado arroz doce com leite de amêndoas e eles tenham adorado e sequer notado a diferença. ;) Mas isso era só porque EU queria comer arroz doce.

As crianças pediram sorvete, mas eu também queria tomar. Então sorbet de manga foi uma excelente solução. Só bater manga congelada com umas colheres de água, açúcar e uma espremidinha de limão no processador até virar sorvete.

Além da experiência toda relacionada à corrida, cortar os produtos animais pode também diminuir esse meu quadro inflamatório. EM TEORIA. Veremos. Só preciso tomar cuidado com minha constituição ayurvédica. Da última vez que me enveredei em cozinha vegana, ainda no Brasil, o resultado foi meu Vatta nas alturas: pele mais seca ainda, falta de memória e atenção, sensação de estar aérea o tempo todo, mais insônia... E acabei voltando pras carnes e queijos porque na época conclui que era a ausência deles que me deixava assim. Mas hoje sei que fiz tudo errado: fiquei nas saladas leves e nos sucos verdes, que não são boa coisa pra mim. No MEU CASO (lembrando que o lindo do Ayurveda é que ele é específico para você e não genérico, então o que funciona pra mim não necessariamente funciona pra você), preciso de todos as minhas folhas verdes e amargas muito bem coizidinhas e balanceadas com coisas como batata-doce ou abóbora, por exemplo. A gente vai aprendendo, e dessa vez estou passando longe do suco verde e indo mais para os sucos de fruta mesmo. E tomando meu leite de amêndoa com tâmara depois de correr na neve. (Também porque NO MEU CASO não estou precisando perder peso, como era quando comecei a correr há anos atrás ou quando voltei à corrida aqui no Canadá, então comer mais dessas coisas cremosas, docinhas, quentinhas, vai só me fazer bem. Se você tem todos esses sintomas de vatta alto e também está acima do peso e letárgica, seu estado é completamente outro, e nada disso que eu disse serve pra você. É bom ir atrás de um profissional para fazer a anamnese correta e te ajudar com as mudanças de hábito e dieta necessárias para o SEU caso.)

Contei que minha insônia foi embora? Yaaaaaaay! Leite de amêndoas quentinho com uma pitada de noz-moscada meia hora antes de dormir foi também um remedinho ayurvédico fantástico. :D


Essa é uma sopa de brócolis e ervilha (2 xíc cada), refogados com cebola, alho e gengibre, cozidos em caldo de legumes e batido com leite de coco e algumas folhas de hortelã. A receita estava no Instagram do Green Kitchen Stories, e é uma delícia. Comi no almoço com a torrada com abacate que, antes, teria sido meu almoço apenas. Pequenos ajustes.

E para firmar esse acordo comigo mesma de não me levar excessivamente à sério, preparei esse bolo de chocolate da Alice Medrich, que leva as amêndoas que sobraram do leite, TEM ovos, açúcar e um nadinha de farinha de trigo, mas usa azeite no lugar de manteiga. Além de ficar uma delícia e acalmar meu Velho Eu radical, ainda nutriu meu Eu Verdadeiro que acredita na mágica das coisas. Porque eu não prestei atenção ao fogão e deixei a mistura de azeite e chocolate mais tempo no fogo do que a receita mandava, e assim que eu adicionei os ovos, ela talhou MISERAVELMENTE.

Cogitei jogar tudo fora e amaldiçoar os demônios da massa talhada, como eu fazia antigamente. Mas respirei fundo. Meditação é essa coisa linda que te ajuda a lidar com as intempéries da vida de uma forma mais tranquila. Dei risada daquela porcaria nadando na minha tigela de vidro, que parecia ter sido retirada do esgoto. Respirei fundo de novo. Sem me sentir nenhum pouco ridícula e munida de uma confiança saída sabe-se lá de onde, olhei para aqueles caroços de massa marrom nadando em azeite e disse: "Nossa! Nem acredito que esse bolo deu certo!" E continuei com a receita, colocando um pouco das amêndoas antes das claras em neve, e batendo bem, e o tempo todo pensando que fantástica era aquela receita, que apesar de dar tão errado no meio do caminho, ficaria perfeita no final. Despejei a massa empelotada e pouco promissora na forma e coloquei o bolo no forno feliz e confiante, mas também com um enorme nível de desapego com relação ao resultado. (Desapego, essa outra coisa linda que vem com a meditação.) Meus filhos não fazem a menor cara feia com bolo solado, porque doce é doce e para eles tudo está sempre ótimo, então o pior que poderia acontecer, era virar uma maçaroca doce de chocolate razoavelmente comestível e mais um "Desastre Culinário", parte da coleção de histórias que meu filho pede pra eu contar quase todo o jantar. "Mãe, conta de novo aquela da torta de dedão de pé?"

O timer tocou, e lá fui eu tirar meu bolo. Frio, desenformei, cortei a primeira fatia. E comecei a rir.

"NOSSA! NEM ACREDITO QUE ESSE BOLO DEU CERTO!"

O bolo mágico de chocolate, que assim como qualquer jornada psicológica e emocional que valha à pena, foi da lama do esgoto ao estado de bem-aventurança, com um pouco de adaptação e trabalho duro.

E continuemos nos cuidando com amor, observando os efeitos de nossos hábitos em nossos corpos e mentes e mudando o que for necessário mudar. Quero ser eu, só eu, sem rótulo nem caixinha, que eu não tenho vocação para produto de supermercado.

Depois de preparar o bolo de chocolate para meus filhos, tratei de fazer minha pizza. Cheia de legumes, mas com queijo. 



BOLO MÁGICO DE CHOCOLATE, AZEITE E AMENDOAS
(do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, de Alice Medrich)

Ingredientes:
  • 1/2 xic de amêndoas com ou sem casca ou a mesma quantidade de amêndoas moídas (o resíduo do leite vegetal)
  • 2 colh. (sopa) farinha de trigo
  • 170g chocolate amargo (70 a 72%), picado
  • 1/2 xic. azeite extravirgem
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 4 ovos grandes, separados, em temperatura ambiente
  • 3/4 xic. açúcar
  • 1/8 colh (chá) cremor tártaro (ou algumas gotas de suco de limão - o que serve de estabilizante para as claras é a acidez)

Preparo:
  1. Unte uma forma de 22cm de fundo removível com azeite. Pré-aqueça o forno a 190oC e posicione a grade na parte inferior do forno. 
  2. Se estiver usando amêndoas inteiras, bata no processador com a farinha, pulsando, até que estejam finamente moídas, tomando cuidado para não formar uma pasta. Se estiver usando as amêndoas já moídas, apenas misture-as à farinha.
  3. Coloque o chocolate, o azeite e o sal numa tigela em banho-maria (sem que a tigela toque na água quente) e mexa de vez em quando, apenas até que o chocolate esteja quase derretido. (Eu deixei derreter totalmente e provavelmente por isso talhou), 
  4. Remova a tigela e mexa o chocolate com uma espátula até que esteja derretido e incorporado no azeite. Junte 1/2 xic. do açúcar e as gemas e misture com um fouet. (Foi nesse momento que minha mistura separou.)
  5. Com uma batedeira, bata as claras e o cremor tártaro (ou suco de limão) até que forme picos suaves. Junte gradualmente o restante do açúcar, enquanto continua a bater as claras, até obter picos firmes, mas não secos (ainda devem estar brilhantes). 
  6. Use a espátula para incorporar um quarto das claras à mistura de chocolate. (Foi nessa hora que mudei o processo, pra tentar reverter a mistura talhada, incorporando as claras e as amêndoas de forma intercalada. Mas se sua mistura não talhou, siga a receita normalmente.) Coloque o resto das claras batidas sobre a mistura, e também as amêndoas, e então termine de incorporar tudo, rápida mas delicadamente, até que esteja razoavelmente homogêneo. 
  7. Transfira a massa para a forma, alisando a superfície para que fique uniforme, e leve ao forno, na grade mais baixa, por 25 minutos, ou até que um palito inserido no centro saia com migalhas ainda úmidas. 
  8. Retire do forno e coloque numa grade para esfriar. Passe uma faca nas laterias, para permitir que o bolo afunde um pouco e craquele por cima enquanto esfria. Deixe esfriar completamente antes de remover da forma.
....


PS1: claro que eu fiz de novo, e apertei o botão PUBLICAR ao invés de SALVAR. Eu escrevo umas três versões de cada texto antes de publicar, porque sou bem cricri com o que escrevo hoje em dia. Daí que alguém deve ter recebido por email a versão 2.4 (hahaha) sem nem receita nem foto ainda. Releva. Afe.


PS2: Em tempo, um aviso: ando recebendo muitos comentários em posts MUITO antigos, fazendo perguntas sobre receitas que preparei há dez anos atrás. Ainda que eu queira muito responder a todos e ajudar todo mundo, eu me perco e não dou conta, e às vezes eu nem me lembro direito da receita o bastante para responder de forma satisfatória. Então, para evitar futuros desconfortos, estou aos poucos retirando os comentários de textos antigos. Assim consigo DE FATO responder aos comentários do post atual e me organizar melhor. Ok? Grata pela compreensão. ;) 


quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Sonhos, uma canção de acordar, um fim de ano, duas sopas.

Durante os cinco dias que estive em Portugal, em Junho do ano passado, eu me levantava ao sentir finos raios de sol trespassando as persianas. Trocava de roupa com as luzes apagadas, dobrava meus lençóis, montava o sofá-cama de volta ao seu estado natural de palavra simples e não composta e fazia meu alongamento sobre o tapete fino e claro que escorregava pelo piso de azulejos. Ao que minha amiga entrava na sala, sorridente sempre, e começava o processo de abrir as persianas da casa, passar o café e colocar sua vasta coleção de frutas, queijos e presuntos sobre a mesa da sala. Por esses cinco dias, ela o fez cantando uma musiquinha alegre que dizia: "bom dia começa com alegria, bom dia começa com amor". Eu ria, pois ela cantava com verdadeiro entusiasmo, quase que como uma paródia de si mesma. Rimos juntas quando ela me contou que ouvira outra amiga cantando a mesma coisa nos breves dias como sua hóspede, e que a pequena canção nunca mais saíra de sua cabeça.

Canção de bruxa, deve ser, pois desde que voltei a Toronto, essa tem sido a trilha sonora de todas as minhas manhãs.

Primeiro eu me vi a cantarolar os dois versos como mera provocação. Todos achavam meio ridículo, mas aquilo que é ridículo é risível, e o riso veio, e as manhãs passaram a ficar leves com o sorriso fácil que acompanhava a música. Logo as crianças seguiram, e comecei a despertar com o canto delas, vindas do quarto, felizes pelo novo dia.

Quem fica em casa agora é igualmente amaldiçoado (ou bendito) pela canção da bruxa, e esse desejo de alegria e amor prossegue se expandindo a outros lares.

Naquela manhã, Laura entrou no quarto carregando nas duas mãos minha xícara rosa como nascer do sol repleta de cappuccino, cantarolando feliz aquelas palavras, como os pássaros de Aldous Huxley. Pulou sobre minha cama sem derramar uma gota, sentou-se ao meu lado e, passando a xícara às minhas mãos com cuidado, disse:

"Mamãe, quer saber o sonho que eu sonhei?"

Assenti com um ronronar por traz do café quente que eu sorvia.

"Sonhei que eu estava no meio da floresta. Eu tava pendurada numa árvore bem alta, num galho, porque meu casaco tava enroscado no galho. Aí tinha um monte de gente em volta, lá embaixo no chão, gritando que eu ia hurt myself, e que aquilo era muito dangerous. Mas eu não achava dangerous. Eu disse que tava tudo bem, que eu sabia o que tava fazendo, mas ninguém acreditou em mim. Aí eu cansei daquilo, porque era muito silly, e pulei pra fora do meu casaco para o galho, e saí correndo nas árvores, pulando nos galhos, lá em cima. Só que aí eu fiquei com frio. Aí eu voltei pra pegar meu casaco, que tinha caído do galho no chão, e pedi pro pessoal lá embaixo, que tava assim, em volta de mim lá embaixo, pra ver se o casaco era meu e me devolver. Mas ninguém me respondia. Aí eu gritei pra todo mundo, e eles ainda não me respondiam. Aí você apareceu, mamãe. Você pegou o casaco, viu que tinha meu nome nele, dobrou e colocou na minha mochila. Aí eu fui embora porque eu sabia onde tava o meu casaco."

"E como você se sentiu no sonho, querida?"

"Muito feliz."

"Que bom. Agora vai lá tomar café da manhã que hoje tem escola."

Muito feliz. Foi como me senti ao ouvir aquele relato. Laura sonha sonhos muito claros, de metáforas muito explícitas. Nos primeiros meses de mudança de país, sem falar a língua ou entender costumes, Laura tinha todas as noites o mesmo pesadelo: que brincava num parquinho e descia pelo escorregador, mas que no fim dele, ao invés de chão firme, era o mar aberto e arisco que a esperava. E nele ela caía, sem saber nadar, sem saber para que lado havia terra.

Naquela tarde, contei a Allex o sonho de Laura.

"Ela faz o que quer", disse ele.
"Ela SABE o que faz", corrigi. "Conhece suas capacidades. O medo dos outros não são os dela."
"And mom's got her back", acrescentou.
"Sim. Isso foi o que me deixou mais contente. Ela sabe, lá no insconscientezinho dela, lá no coração, que mamãe está lá dando suporte para o que ela precisar. Não é lindo? Não é o que a gente mais queria? Pelo menos era o que EU queria. Que eles soubessem que eu sempre vou apoiá-los."

Desde que li Man In Search For Meaning, de Viktor Frankel, comecei a pensar no que é que me movia. Ao cabo de tudo, no meu âmago, despida de todas as cobranças da sociedade, de todos os meus objetivos materiais, o que é que mantinha meu coração batendo, o que me fazia levantar de manhã e correr, e pintar, e escrever. O que é que me impelia a tentar ser hoje um ser humano menos babaca do que ontem. Então caí nessa frase, não sei bem original de quem, mas que tem sido muito usada pela Eliana Rigol em seu Instagram (que por sinal, tem sido fonte de excelentes indicações de livros): "Seja uma boa ancestral".

Era o resumo em quatro palavras de um sentimento até então sem nome. Mas que remontava às palavras de meu guru de Kriya Yoga: dê o exemplo.

Olho para meus filhos e eles são o constante lembrete de que preciso continuar tentando ser uma pessoa melhor. Penso em tantos familiares que já se foram, com suas histórias amargas de vida, suas escolhas ruins, suas infelicidades marcadas para sempre nas histórias contadas por meus pais, e chacoalho para fora tudo isso e penso: quero ser um bom exemplo. Quero ser a louca tataravó Ana, lembra dela? A que corria maratona, a que fazia aqueles quadrinhos sobre o vovô Thomas e vovó Laura? A vó Ana que mudou pro Canadá com cachorro e tudo. A vovó Ana que ensinou a gente a cozinhar. Aquela tataravó que era feliz. Lembra dela? Quero ser um parente distante que deixa uma história boa para variar. Não tenho vocação para Cautionary Tale.

Sinto vontade de curar minhas feridas para não provocar as mesmas em meus filhos. Não passar para frente dores herdadas. Rever comportamentos e destrinchar hábitos até saber o que sou eu e o que sou dos outros. Largo o dos outros, que eu me basto se for eu de verdade.

É um processo de resgate de todos os meus melhores momentos que foram perdidos na memória dessa minha vida esquizofrênica. Tantas soluções busquei, que algumas deixei na estante empoeirando, sem me dar conta de que já eram soluções boas para mim. Contei que a maior parte dos livros que a Eliana menciona, eu tinha na estante no Brasil? Nunca tinha lido. Estava lendo outras coisas. Não couberam na mala, e foram deixados para trás. Pego eles agora na biblioteca e é quase um flagelo pensar que poderia ter lido aquilo há dez anos atrás. Tanta lição adiada, tanto aprendizado esperando por mim.

Enfim.

Dou-me conta dessa responsabilidade. De não apenas criar dois seres humanos capazes de cuidar de si mesmos. Mas criar duas pessoas essencialmente boas, capazes de gentileza. Criar seres humanos esclarecidos, capazes de pensar por si mesmos, para não caírem nas armadilhas do mundo. Criar dois indivíduos capazes de continuar abrindo os caminhos que eu, em minha existência, serei incapaz de abrir sozinha. Abrir caminhos para quem vier depois deles.

Mãe de menina. Mãe de menino. Dupla responsabilidade. De desconstruir os grilhões do feminino que me foi ensinado. De desconstruir os apelos do masculino que ainda incutem nos meninos. Responsabilidade de criar duas pessoas confiantes em si mesmas e de pensamento livre.

Muitas vezes acho que o trabalho é impossível. Mas então me dou conta de que preciso começar não com eles, mas comigo. É desconstruindo isso em mim e me construindo de volta em novas imagens, que mostro a eles, pelo exemplo, o que é ser adulto. O que é ser mulher. O que é ser mãe. O que é ter relacionamentos de amor e carinho e respeito. O que é correr atrás de seus objetivos. O que é estar feliz.

Toda criança aprende pelo exemplo. Ela repete aquilo que ouve. Ela repete aquilo que vê. Se ela não conhece ninguém feliz, como ela vai aprender o que felicidade é? Olho para mim mesma e me pergunto o que meus filhos têm a aprender comigo hoje. O que eles vêm. Que lição eles tiram ao me ver ali, fazendo o que quer que esteja fazendo. O que eu quero que eles imitem? O que eles herdarão de mim? O que eles deixarão para os seus?   

Essa noite tive um sonho. Sonhei que Laura era bebê, e eu a carregava aninhada em meus braços, enroladinha em um xale azul claro, enquanto caminhava perdida por uma imensa estação de trens. Uma amiga me incumbira de ciceronear um grupo de adultos por aquela cidade desconhecida, e eu me desesperava por dentro: como posso cuidar desse bando de adultos? Eles não veem que tenho de cuidar de minha filha e sequer sei ainda o caminho? Ao fim do sonho, avisei ao grupo que eu não era responsável por eles, abracei minha Laura e saí a passos firmes buscando que trem tomar.

O caminho do que é ser mulher hoje ainda é indistinto para mim. Continuo buscando, para que minha filha tenha caminhos menores a percorrer.   

Acordei com Laura cantando ao meu lado e com cheiro de café. Bom dia começa com alegria. Bom dia começa com amor!

.....

E Novembro e Dezembro e Janeiro e a comida?

Os meses voaram. Eu tinha intenção de escrever em Dezembro, mas o mês desapareceu entre preparação para uma exposição nova, a infinidade de eventos de fim de ano da escola, e a chegada de meus pais perto do Natal. Novamente eu queria ter feito torrone, panforte, panettone, e toda a pataquada, e no fim só saiu Spekulatius dia 6 de Dezembro e uma batelada imensa de biscoitos sortidos para presentear os professores e levar no lanchinho comunitário de fim de ano da classe das crianças. Também fui convidada pela classe de ESL (English as a Second Language) do Thomas para participar de uma festa com todos os pais estrangeiros, em que cada um tinha que levar um prato típico, e escolhi Bolo de Fubá, que foi sucesso absoluto (apesar do milho norte-americano ser doce a ponto de ter gosto de açúcar, NINGUÉM usa o bendito pra sobremesa, então o bolo foi uma surpresa para todo mundo.)

A parte divertida. Decorando com Royal Icing e cranberries secas.

No meio da bagunça, teve UM projeto culinário que deixei para fazer com meus pais aqui, pois achei que eles gostariam de participar e porque me parecia um bom plano B para um dia de tempo feio: Gingerbread House. Já havíamos feito no ano passado, e resolvi repetir a receita, mas desta vez usando só Royal Icing. (No ano anterior eu resolvera ir pela rota da preguiça e comprara uns tubos de icing colorido, mas eles tinham gosto de bala velha. As crianças comeram todo biscoito decorado, mas eu não cheguei nem perto.) A receita do gingerbread que mais gosto é essa de Martha Stweart, que tem uma pancada de especiarias e fica deliciosa. Só precisa de um pouco de engenharia para fazer os moldes da casa e cortar a massa dos tamanhos certos antes de assar. O Royal Icing que eu uso é esse aqui do Alto Brown.
 
DESAPEGO é o nome dessa casa: largo na mão das crianças, a única coisa que eu faço é deixar o bicho de pé.

Esse ano, resolvi que faria toda a comilança natalina diferente: como aqui o Papai Noel chega enquanto as crianças dormem, toda aquela ceia para esperar meia-noite não fazia sentido. Bem melhor botar pimpolhada cedo na cama, para descansar direitinho e poder abrir presente de manhã cedo e brincar o dia todo, sem mau humor de sono. Mas também para não passar batido e ser o mesmo arroz com feijão de sempre, inventei de fazer Cappelletti in Brodo. Afinal, é tradição minha fazer pela primeira vez na vida alguma coisa num dia especial em que nada pode dar errado. 
Apesar dos cappelletti terem ficado desengonçados, NENHUM abriu durante o cozimento, o que considero um sucesso!
Saí com meus pais para comprar os ingredientes, e no dia 24, munidos de uma taça de vinho e olhando o dia desaparecer rapidamente lá fora, comecei a preparar tudo. O recheio é bastante simples e fácil, carnes refogadas, misturadas a queijos e temperos. A massa é onde o bicho pega. Massa recheada para seis pessoas. Já contei que aqui em Toronto a umidade do ar chega a 20% durante o inverno? Que alegria! Imagina o que acontece com massa fresca esperando nessa umidade desértica? Aquela linda fita de massa amarela fresquinha e macia vira Biju em um piscar de olhos. Para prevenir isso, pensei em chamar a família toda para fechar cappelletti, mas calhou que meu pai estava cochilando, as crianças viam desenho e Allex passeava o cachorro, e sobramos minha mãe e eu para rechear e fechar bem uns duzentos cappelletti em tempo recorde. 
Aquela refeição que parece a simplicidade em pessoa, mas que deu um trabalho do cão pra fazer.

Os cappelletti foram servidos em caldo de frango que eu deixara já preparado e congelado duas semanas antes, e, modéstia à parte, ficaram uma delícia. Achei que fosse sobrar alguma coisa, que fosse cappelletti demais para a gente que não é de comer muito, mas não teve um ser vivo na mesa que não tenha repetido o prato e só restou mesmo foi um panelão vazio.

CAPPELLETTI IN BRODO
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan. No livro, ela chama a receita de Tortellini, mas a gente sabe que é a mesma coisa, o nome muda conforme a região. Na minha casa, em que a família veio toda do Veneto, isso chama Cappelletti.)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes:
(recheio)
  • 110g carne de porco moída
  • 180g peito de frango moída
  • 2 colh (sopa) manteiga
  • sal a gosto
  • pimenta do reino
  • 3 colh. (sopa) mortadela picadinha
  • 1 1/4 xic. ricotta fresca
  • 1 gema
  • 1 xic. queijo parmesão ralado
  • noz moscada para ralar
(massa)
  • 4 ovos grandes
  • 400g farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) leite
(para servir)
  • 2,5 litros caldo de frango ou carne caseiro
  • parmesão ralado

Preparo:
  1. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio. Quando começar a espumar, junte as carnes de porco e de frango, uma pitada de sal e pimenta, e cozinhe por seis ou sete minutos, quebrando os grumos e mexendo com uma colher de pau, até dourar. Retire da panela e deixe esfriar em uma tigela. 
  2. Junte a mortadela, ricotta, gema, o parmesão e cerca de 1/8 colh (chá) de noz moscada ralada. Misture muito bem e corrija o tempero. 
  3. Prepare a massa. Não vou dar muitos detalhes a respeito da massa por dois motivos: se você nunca fez pasta fresca na vida, essa não é a que você vai usar pra começar. Faça um fettuccine. Então se você está fazendo Cappelletti, imagino que já saiba misturar os ovos à farinha e sovar a coisa toda. O que você precisa saber é que o leite vai junto com os ovos na hora de misturar à farinha. Você vai sovar a massa até ficar lisa, embrulhar bem e deixar meia hora fora da geladeira para o glúten relaxar. Abra com o rolo ou com a máquina, seu método favorito, até que fique bem fino. Para massa recheada, costumo ir até o penúltimo número da máquina. Não faça toda a massa de uma vez, ou as tiras vão secar antes que você possa recheá-las. Você vai dividir a massa em 4 porções e abrir e rechear cada porção enquanto as outras ficam quietas embrulhadas. Se precisar de ajuda para entender como abrir a massa, há um zilhão de videos internet afora que vão ser mais úteis do que qualquer coisa que eu escreva aqui. Mesmo seguindo a receita da Marcella Hazan, eu aprendi a fazer massa vendo minha avó fazer. Ver alguém fazer é o que tira as dúvidas.
  4. Quando tiver a primeira tira de massa, apare a massa e corte em tiras compridas de 3cm de largura. Corte no sentido da largura, produzindo quadradinhos de 3cm.  Distribua 1/4 colh.(chá) de recheio sobre os quadradinhos. Dobre-os ao meio, fazendo triângulos e apertando bem pra selar. Essa parte tem que ser feita rapidamente para a massa não secar. Apoie o dedo indicador onde está o recheio, deixando a ponta maior para cima, e dobre as outras duas pontas uma sobre a outra, por sobre seu dedo. Sério, vídeos de gente fazendo tortellini. Serve o Jamie Oliver. Pelo texto é muito difícil visualizar. Como minha massa estava secando muito rápido, acabei me atrapalhando e a massa saiu cortada maior do que deveria. Mas como minha massa estendeu bem fininha, consegui produzir todos os cappelletti de que precisava. 
  5. Uma vez que você faça os cappelletti, deixe-os espalhados em uma assadeira polvilhada com farinha, sem se encostarem, para que sequem, e comece tudo de novo com o restante da massa. Você pode deixar os cappelleti secando ali em temperatura ambiente pelo dia todo até a hora de cozinhar. Eles têm menos risco de se abrirem no cozimento se tiverem secado um pouco. Ao final, você deve ter cerca de 200 cappelletti.
  6. Na hora de servir, leve o caldo à fervura. Com cuidado, coloque os cappelletti, que não devem demorar mais que 3 minutos para cozinharem, mas vai depender da espessura da massa e do quanto secaram. Vá retirando um e testando. Quando estiverem cozidos, leve à mesa IMEDIATAMENTE e sirva com parmesão ralado.
No dia seguinte, aquela bagunça de criança e presente, café da manhã, e mal deram onze horas e começamos a petiscagem. Minha família é do petisco, do antipasto, do acepipe, do cicchetti, dos tapas, e a gente consegue ficar no pãozinho com qualquer coisa em cima o dia todo e pular almoço e jantar. E era esse o objetivo: petiscagem até o meio da tarde, para só colocar o assado no forno para o fim do dia. 
Eita, foto fora de foco!
Servi salames e presuntos, incluindo um exótico salame de alce com mapple syrup que comprara especialmente para meus pais. Brinquei que mais canadense que salame de alce com mapple, só se o alce tivesse sido morto por um lenhador canadense barbudo, usando camisa de flanela e chapéu de guaxinim. Servi também patê de fígado de frango, que é um clássico familiar, uvas, tomates, queijos e castanhas. E vinho. E caipirinha, claro. As crianças passaram o dia petiscando junto, entretidas com seus presentes, e sobrou para os adultos a arte da conversação.

O jantar principal foi simples, um lombo assado com batatas e uma salada de folhas amargas com maçã, que eu já tinha tido trabalho o bastante no dia anterior. Sobremesa foi uma torta de peras e chocolate que prometia muito mas não achei aquilo tudo não. 
Passado o Natal, vêm os passeios no parque, no museu, almoço aqui e ali, e pronto, que já é Ano Novo! Recebemos um casal de amigos que trouxeram um Caldo Verde para complementar a já sabida petiscagem, repeteco do Natal, acrescida de guacamole com tortillas e uma quiche de brócolis que acabou sobrando inteira para a ressaca do dia seguinte. Brownie com sorvete sempre dá conta do recado com a criançada (e com os adultos), e foi uma noite maravilhosa, com karaokê improvisado e todo mundo acompanhando Bon Jovi e Backstreet Boys com Kazoos, e dobrando no chão de tanto rir. Tem que ser criativo em Reveillon canadense, que aqui mal se soltam fogos e ninguém "vai pra Paulista" nem pula sete ondinhas a doze graus negativos.

Os dias que se seguiram exigiram criatividade também. Que eu programara diversos passeios que dependiam dos trocentos centímetros de neve que sempre caem no início de janeiro. Mas o que tivemos (e continuamos tendo) é um inverninho mixuruca, ameno e chocho, sem neve nem dia bonito, com muita chuva que vira gelo na calçada e tempo cinza-depressão. Daí que nada de fazer snow-shoeing, nada de descer barranco com trenó, nada de boneco de neve no parque. Pelo menos teve um dia, antes do lago descongelar, que, de confiança alimentada pela marca de passos sobre a neve antiga depositada no lago, fomos Allex, meu pai e eu caminhar por sobre o lago congelado. Que afinal, se você vai para um lugar em que um lago inteiro vira uma pedra de gelo, não dá pra perder a oportunidade de ficar em pé em cima dele, mesmo que morrendo de medo de cair lá dentro e virar picolé. 

Meu pai trouxe os tênis de corrida, depois de eu muito insistir durante o ano todo, e foi uma das coisas mais legais que fiz poder correr 9km do lado dele, ao longo do lago, em temperatura negativa. Orgulho do papai! Setenta anos e firme e forte, melhor que muito amigo meu de quarenta!
Teve uma nevinha nos últimos dias, quase prêmio de consolação. E meus pais pelo menos puderam passear no parque e ver como fica lindo assim branquinho. Foi minha mãe quem se animou a descer no meio da noite quando a neve caiu mais forte e brincar de snowball fight. Bando de adulto de pijama na frente do prédio rindo e tomando bola de neve na cara, e canadense passando por nós com aquela cara de quem não entende o por quê de tanta alegria. 

Alegria foi também levar minha mãe no The Rex, o bar de jazz mais antigo de Toronto. Com cara de de pub velho atrás de igreja, lotado da terceira idade no domingo na hora do almoço, surpreendeu pela qualidade da banda. Uma banda igualmente composta por gente que passou por duas guerras, tocando um Dixieland delicioso, num show animado e divertido por três horas. De deixar o sorrido no rosto até doerem as bochechas. Acho que nunca vi minha mãe tão contente, e esse foi para mim o ponto alto da visita toda. 
Quando eles foram embora bateu aquela depressão, a casa vazia e não saber quando vou vê-los de novo. Eles voltaram para o Brasil no mesmo dia em que as crianças voltaram para a escola e Allex para o trabalho, e de repente eu estava sozinha, olhando para a cara do cachorro. Vou retomar minha rotina, pensei. Corrida, meditação, pintar feito louca, procurar um novo lugar de exposição, terminar meu livro, montar minha loja no Etsy, participar daqueles concursos, fazer aquelas aulas. 

Só que não. 

Passou Ano Novo, tem aniversário da Laura. SETE ANOS. Mamãe, quero chamar minhas amigas.

E lá vou eu. Mamãe, no dia do meu birthday, quero levar a sopa da vovó de almoço na escola. E de jantar, quero cachorro-quente do papai, aquele na churrasqueira. E bolo de chocolate. E na minha festa quero pão de queijo, pipoca e cupcake de baunilha. E quero almoçar no japonês. 

Tinha que ser minha filha, só pensar na comida do aniversário.

E lá fui eu passar minha semana fazendo bolo, cupcake, comprando coisa pro cachorro-quente, lembrancinha pra escola, lembrancinha pra festinha, balão pra encher, bandeirinha pra pendurar, e o tal do kit de pintura de rosto que ela andava pedindo pra ter no aniversário dela desde o ano passado. 

Contei que também tinha trabalho encomendado pra entregar essa semana?

E que o marido ficou doente de cama um dia todo? 

Pois é. 

Veio aniversário e deu tudo certo e ela ficou felicíssima com tudo. Festa aqui no Canadá é super simples e dura duas horinhas, mais playdate que festa. Pão-de-queijo, pipoca, cupcake e suco de laranja. Pintei o rosto da criançada toda (os meus mais quatro amigas da Laura) de tudo quanto é bicho, e já vi que se tudo der errado na vida, ainda posso ganhar uns trocados fazendo face-painting em festa infantil. Talento escondido, olha só! 

Janeiro prosseguiu assim, comigo tentando voltar para a rotina e alguma coisa aparecendo pra não me deixar. Teve coisa boa, como uma viagem rápida para Ottawa, e teve coisa ruim, como a escola estar em greve por conta dos cortes na educação que o Ford, nosso digníssimo governador de direita, andou fazendo e que não anda agradando ninguém. 

E agora escrevo assim correndo, enquanto as crianças estão no banho, porque amanhã tem greve de novo, e se fosse deixar esse post para outro momento mais calmo, ele sairia apenas em março. Ufa!

A sopa da vovó é uma canja com arroz e legumes e peito de frango que comi durante a vida toda. E que aqui ocasionou grandes mudanças, pois depois de enviá-la de almoço na escola, as crianças FINALMENTE voltaram a comer COMIDA no almoço e não sanduíche. Isso me facilita horrores a vida, pois é só requentar o jantar do dia anterior e colocar na marmita deles, ao invés de ter de ficar inventando moda e me estressando com o valor nutricional do pão com queijo. 

A sopa da vovó que a vovó faz fica mais soltinha, mais líquida, e mais clarinha, pois ela usa peito de frango. Eu que já tinha caldo de frango feito e todas as aparas da carcaça que eu usara o caldo (depois de cozinhar a carcaça saio tirando todo fiapinho de carne cozida dela, e você junta bem umas duas xícaras de frango desfiado), fiquei com dó de botar o peito do bicho na sopa e resolvi guardar para fazer filés. O caldo deixou a sopa mais dourada (e igualmente gostosa, ainda que mais forte.) Também errei na quantidade de arroz, que achei que era muito pouco, e a sopa quase que virou risotto. Hahah!Ainda assim, foi devorada, com parmesão ralado por cima e croutons, que é como os netos sempre comeram na casa da vó.

Prometo voltar mais rápido na próxima vez. ;) Obrigada a quem lê, por continuar por aqui.



SOPA DA VOVÓ
(A canja da minha mãe é daqueles pratos feitos a olho, com o que sobrou na geladeira, então todos os ingredientes são adaptáveis em quantidades. Quanto rende? Rende no mínimo para quatro pessoas.Você pode cozinhar o arroz direto na sopa, desde que fique de olho pra que ele não passe do ponto - você não quer que ele desmanche, apenas que fique macio. Nesse caso use 1/3xic. arroz branco cru quando as cenouras estiverem já macias e acrescente 1 xícara de água à panela para compensar a absorção de líquido do arroz. Se quiser trocar o arroz por um macarrãozinho pequeno pra sopa, pode. Se quiser não usar nem o arroz nem o macarrão, também pose. Se vc já tiver frango desfiado na geladeira, ótimo: refogue com os legumes para dourar um pouquinho, e use a cenoura ralada grossa para acelerar o cozimento.)

Ingredientes:
  • azeite de oliva 
  • sal e pimenta do reino
  • Meio peito de frango, cortado em 3 ou 4 pedaços (para cozinhar mais rápido)
  • 1 cebola, picada
  • 1 cenoura, descascada e cortada em cubinhos bem pequenos
  • 2-3 batatas médias cortadas em cubinhos 
  • 1 xícara de arroz branco JÁ COZIDO
  • salsinha picada
  • queijo parmesão ralado e croutons para servir  (minha mãe doura os cubinhos de pão em azeite e orégano)

Preparo:
  1. Numa panela grande, aqueça um fio de azeite generoso, em fogo médio, e refogue a cebola e a cenoura com uma pitada de sal até que comecem a dourar. 
  2. Junte o frango, dourando todos os lados, e temperando com sal e pimenta conforme for pegando cor. 
  3. Junte a batata, remexa algumas vezes, e então junte água suficiente para cobrir o frango e os legumes, cerca de 6 xícaras. Leve à fervura, abaixe o fogo e cozinhe por trinta a quarenta minutos. 
  4. Cheque o frango. Se ainda não estiver cozido por dentro, volte para a panela e continue cozinhando. Se já estiver bom, retire os pedaços da panela, coloque na tábua e desfie com a ajuda de garfos.
  5. Volte o frango desfiado para a panela, mexa algumas vezes e acerte o tempero. Cheque as cenouras e as batatas, que devem estar bastante macias, quase derretendo. Se já estiver tudo bom, junte o arroz já cozido, misture bem, deixe cozinhar por mais uns cinco minutos e acerte o tempero. A sopa pode ficar mais rala ou mais consistente, dependendo da quantidade de líquido. Acerte isso também, a seu gosto, lembrando de corrigir o tempero. (Minha mãe costumava usar um amassador de batatas para espremer as cenouras e as batatas, e até um pouco do frango junto, para servir uma sopa mais cremosa quando meus filhos eram bem pequenininhos.)
  6. Junte a salsinha, misture e sirva imediatamente com croutons e parmesão ralado por cima. 
 MINHA ADAPTAÇÃO: como eu tinha já uns dois litros de caldo de frango e umas duas xícaras de frango desfiado da carcaça da preparação do caldo, refoguei os legumes, o frango, juntei as batatas e cobri com o caldo. Quando os legumes estavam macios, juntei o arroz. Meu pecado foi colocar arroz demais, pois havia bastante caldo e achei que a sopa ficaria muito rala. Mas o arroz absorve bastante líquido, e a sopa terminou mais cremosa do que eu pretendia. Com o caldo de frango, a sopa fica com um gosto mais forte. A sopa da minha mãe tem um gosto mais delicado.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

40 anos, 42km, um Dahl, um Frango


Acordei  àquela manhã de quinta-feira ao som de Parabéns A Você, cheiro de cappuccino quentinho e lambidas de cachorro usando chapéu de festa. Levantei um tanto atordoada, pois fora dormir tarde na noite anterior, e, saboreando pequenos goles do meu café, ri da cara do Gnocchi enquanto andava em direção à sala. Eu já sabia que eles tinham aprontado alguma, pois na hora do Boa Noite, Laura sussurrara ao meu ouvido: "Mamãe, amanhã, quando você acordar, fica na cama, tá, não pode levantar se não você vai ver sua surpresa!"

Abençoada inocência infantil.

Mas nem esse aviso me preparou para o que Allex montara na sala. Havia bandeirinhas e balões de látex coloridos por toda a parte onde se lia "Happy 40th Birthday!", e outros balões de hélio variados, incluindo um enorme unicórnio de crina cor-de-rosa (segundo Allex era para ter uma lhama também, mas o moço da loja esqueceu), e outros ainda amarrados com fitas coloridas numa sacola no meio da sala que tinha meu presente: um relógio de corrida, pra eu parar de correr carregando o celular. No aparelho de som, tocava uma playlist especial só de músicas lançadas em 1979. Laura me entregou um caixa inteira de cartões de aniversário que ela fizera durante um mês todo. Thomas pulou em cima de mim e colocou uma enorme coroa de plástico dourado na minha cabeça. "Porque você é a Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa, então precisa de uma coroa!"

Eu ria compulsivamente.

Feliz Quarenta Anos.


Naquela manhã, as crianças foram para a escola normalmente, ainda que àquele dia tivessem uma prova de corrida (para o qual vinham treinando havia dois meses) em um parque distante. Allex tirara dois dias de férias especialmente para meu aniversário e veio logo perguntar, enquanto tomávamos um café com mais calma, só nós dois: "O que você quer fazer no seu aniversário?"

"Correr. Primeiro, correr."

Explicando... Logo ao fim da visita de minha irmã, em Agosto, Allex veio empolgado: "Estou me inscrevendo na Maratona de Toronto, do Scotiabank!"
"Certeza? Você nunca correu mais do que 25km..."
"Ah, mas fiz 25km em trilha, com altimetria. A maratona é reta, asfalto... Acho que rola."
"Ok. Divirta-se."
"Tô inscrevendo você também."
"Mas hein?"
"É, ué. Vamos! A gente faz nossa primeira maratona juntos!"
"Vixe... Hmmm... Será?"
"Você já correu 30km, são só mais doze... hahah... Vai, você consegue!"
"Eita. Tá bom. Quando é?"
"Vinte de outubro."
"P*ta que pariu. Tem dois meses pra treinar, é isso?"
"É. Vai, pronto, já te inscrevi. Aqui ó... camiseta? Tamanho M... feminino... Motivação... Wine and Pasta!"
"Ei!"
"Ué..."
"É. Verdade. Você tá certo. Bora treinar então. Vixe..."

Até o fim das férias escolares continuei correndo como era possível. Às vezes as crianças montavam em suas bicicletas e pedalavam pelas ciclovias à minha frente, parando e olhando para trás para ter certeza de que mamãe ainda estava ali, ou me esperando para atravessar ruas e avenidas. Eles pedalavam e eu corria 10, 12, 16km, dependendo do dia, parando ocasionalmente para brincar um pouco num parquinho ou numa praia.

Em outros dias, quando não queriam sair de bicicleta, acordava mais cedo e ia correr trajetos mais curtos enquanto Allex se arrumava para o trabalho.
Vista para o lago, de uma das trilhas onde gosto de correr.

Mas o treino de verdade só começou quando as aulas voltaram, em Setembro.

Foi um mês atabalhoado. É sempre estranho voltar à rotina da escola, depois de dois meses de férias de verão. Além disso, Laura está agora na primeira série, e os horários dela finalmente são os mesmos dos do Thomas. Voltam as aulas, voltam os eventos escolares. Volta o preparar almoço de todo mundo logo de manhã cedo. Voltam os gostos e desgostos que transforma a montagem do lanche num quebra-cabeça de 5 mil peças. Thomas não gosta de fruta fresca. Laura não gosta de nada "cheesy" (sim, Laura anda se revoltando contra queijo.) Thomas não come comida quente na marmita, Laura não gosta de levar sanduíche. Eu quero esganar todo mundo e mandar comer o que a mamãe preparou e parar de encher os pacová e me arranjar sarna pra coçar. Mas né? A gente faz aquele esforço zen para não matar a prole.

Eu tinha vários projetos envolvendo ilustração e novas exposições engatilhados para Setembro, mas além da adaptação à rotina escolar, as reuniões com professor, a anual caça às roupas de inverno que não cabem mais porque as crianças cresceram dois números de calça e de bota em quatro meses, minha cabeça só pensava em uma coisa... Maratona.

Eu não sou tonta nem nada, e por mais que me jogue loucamente em algumas empreitadas, gosto de pesquisar onde estou me metendo para não me estrepar muito lá na frente. Até então eu vinha correndo muito mais esporadicamente, 5km por dia, dez de vez em quando, e num sábado me dava a louca e eu ia correr vinte e um. Assim, come um donut, sai pra correr, volta três horas depois, pro espanto da família que não sabia das minhas intenções. Ou corre até o centro da cidade, toma uma cerveja na Steam Whistle, a cervejaria que fica em frente à CN Tower, e volta correndo tudo de novo. Manda uma foto da cerveja pro marido, pra ele dar risada e saber quando começar a preparar o almoço.

Decidi que ia tentar fazer mais ou menos direito. Vi videos e li textos sobre maratonistas e ultra-maratonistas, gente de trail running e povo de Iron Man. Lembrei de tudo o que eu fazia na época em que tinha treinador. Peguei os pontos em comum dos treinos e da alimentação e vi como melhor adaptar isso tudo à minha realidade.

E lá fui eu.

Allex achava graça que, se antes meu feed do YouTube só tinha video de comida, agora só tinha video falando sobre fascite plantar e síndrome do trato iliotibial. Quem corre vai entender. ;) O marido, enquanto isso, fazia seus treinos e trocava figurinhas com amigos ultramaratonistas (e quando paro pra pensar, me surpreendo com a quantidade de gente que a gente conhece que corre 70km em montanha...)

Comecei a planejar melhor meus treinos, para ir aumentando as distâncias um pouco por semana. Li em várias fontes que meus treinos longos não poderiam ser maiores que 30% do treino total da semana, então logo me dei conta de que isso de correr meia horinha por dia não ia mais rolar.

Conforme as distâncias aumentavam, percebi que aquela dieta que a nutricionista fizera para mim dez anos antes, quando corria com treinador no Brasil, era insuficiente. Eu andava com fome, e o objetivo não era emagrecer. Era correr bem.
Café da manhã de corrida. Torrada com tahini, banana e mel, pêssego e uvas.
Meu café da manhã mudou muito pouco. Continuei na minha torradinha com cappuccino, mas colocando um pouco mais de frutas no prato. Às sextas-feiras, quando fazia algo entre 18 e 26km, acrescentava mais uma torrada com queijo ao prato. Levava na pochete de corrida sempre duas bananinhas (aquele docinho de banana e açúcar) trazidos do Brasil por minha mãe, pois nunca na vida aquele Gel bizarro de corrida me desceu.
Café de treino longo: Torrada com tahini, banana e mel, torrada com manteiga e queijo, pitaya e uvas. E Cappuccino, claro.

"Você vai ter que mudar o trajeto. A Maratona sai do centro e vem pra esses lados pelo lago, você vai achar chato fazer o mesmo caminho...", avisou Allex.

E por isso saí me enfiando em novas ciclovias e trilhas que me levassem por parques e caminhos que eu nunca percorrera. Descobri pedaços lindos de Toronto, que me fizeram ainda mais grata pela oportunidade de morar aqui.




Os treinos longos são sempre meus favoritos. Lembro de um amigo nosso avisando: "Correr longa distância é mais cabeça do que perna - você tem que se acostumar com a ideia de que vai passar MUITO tempo correndo. É a cabeça que quebra primeiro, o corpo depois." No melhor estilo Dorie, quando estou perto de chegar na distância a que me propus a correr àquele dia (pois acordo e decido assim, de supetão, "Hoje eu vou correr 25km, porque é isso que me deu vontade") saio cantarolando: "Just keep running... Just keep running..."

Correr virou para mim muito mais que um exercício físico, mas um momento completa e unicamente meu, que não serve a mais ninguém a não ser... eu. É meu cuidado comigo. Meu momento de silêncio, de solitude, de botar a cabeça no lugar. Eu corro sorrindo. Assobiando uma música. Parando para olhar o mirante ou procurar um bicho selvagem ao ouvir um farfalhar de folhas ao meu lado na trilha. Correndo, já tive encontros com guaxinins, coelhos, esquilos, chipmunks, cobras, falcões, gaviões, corujas, corvos, garças pretas, uma raposa e dois coiotes. Coisas de Toronto. Há muitos corredores verdes no meio da cidade, e a bicharada simplesmente circula por aí.

Volto pra casa cansada e feliz, cheia de endorfina. O ritual é sempre o mesmo. Ainda suando, sento pra comer meu iogurte com fruta, agora com manteiga de alguma castanha e sementes de cânhamo. Banho, e seguir com a vida normal.
Iogurte natural, pêssegos, manteiga de amêndoa, sementes de cânhamo e mel.
Na hora do almoço, durante a primeira semana inteira de treino segui uma receita de um livro ayurvédico que Allex me dera de presente há muitos anos e que minha irmã trouxera para mim em sua visita. Arroz integral e legumes no vapor temperados com ghee e cúrcuma. Simples demais e muito bom.  Só isso mesmo. Quando os legumes estão prontos, você esquenta o ghee numa panelinha, dissolve um pouco de cúrcuma em pó e derrama isso por sobre os legumes. Nham!
Arroz integral com legumes no vapor e ghee com cúrcuma.
Como isso era bem mais que minha usual torrada com abacate, eu não tinha fome no meio da tarde. Se tivesse, comia uma fruta. Os pêssegos e nectarinas do fim do verão estavam um desbunde!
Dahl de lentilhas e legumes no vapor com ghee, castanhas e coco ralado.
O jantar eram aqueles mesmos legumes no vapor e ghee, polvilhados com castanha de caju picado e coco ralado, e um fenomenal dahl de lentilhas cuja receita deixo aqui. As crianças amaram a refeição, para quem servi também arroz.

DAHL AYURVEDICO TRI-DOSHA
(Do livro You Are What You Eat, Cooking for body, mind and soul, de Sandra Herber-Percy)

Ingredientes:
  • 1 xic. lentilhas (vermelhas, amarelas ou qualquer outro tipo - usei uma mistura da vermelha, preta, marrom e verde)
  • 8 xic. água
  • 2 xic. abóbora ou abobrinha em cubos
  • 1 xic. cenoura fatiada
  • 1/2 colh.(chá) assafétida (se não tiver, use 1/4 cebola pequena bem picadinha, que foi o que fiz. O sabor é ligeiramente diferente e não é uma substituição autêntica, porque há muitos indianos que não usam cebola e alho de jeito nenhum. No entanto, fica delicioso igual.)
  • 2 colh. (sopa) ghee ou óleo vegetal
  • 1 colh. (chá) cúrcuma em pó ou fresca, ralada
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1 colh. (chá) sal marinho
  • 1/2 colh (chá) gengibre fresco ralado
  • 2 pimentas verdes, sem sementes, picadas (aqui, vai no gosto, na verdade, e dependendo do tipo de pimenta verde que você encontrar. Comprei uma pimenta verde que era grande e forte, e usei apenas uma e foi o bastante)
  • 1 colh (chá) sementes de mostarda
  • 1 colh. (chá) sementes de cominho
  • 1 colh (sopa) coentro fresco
  • 1 colh (sopa) de coco ralado fresco

Preparo:
  1. Aqueça 1 colh (sopa) do óleo ou ghee numa panela grande. Junte a assafétida, cúrcuma e suco de limão e refogue em fogo baixo por 30 segundos. Junte as lentilhas e refogue por 1-2 minutos.
  2. Junte os legumes, e misture bem por 1-2 minutos.
  3. Junte a água, pimenta, sal e gengibre. Leve à fervura,  cubra, abaixe o fogo e mantenha em fervura branda por 45 minutos, ou até que as lentilhas estejam se desmanchando.
  4. Aqueça o óleo restante em uma frigideira pequena. Junte o cominho e sementes de mostarda e cozinhe até que as sementes de mostarda comecem a pular. Desligue o fogo e adicione o óleo e sementes às lentilhas.
  5. Sirva o Dahl com coentro e coco ralado por cima.  

Variei os legumes durante a semana, usando também berinjela e brócolis e temperando o ghee não só com cúrcuma, mas também com um pouco de gengibre fresco picado. Castanhas por cima e tudo cobrindo arroz.
Arroz integral, berinjela e brócolis no vapor, com castanhas e gengibre.
Noutro dia, já sem arroz, fiz novamente aquelas mesmas berinjelas, mas sobre soba, e temperado também com um nada de shoyu e folhas de coentro.

Soba com berinjelas no vapor.
Essas primeiras semanas comendo mais leve me deram um gás para de fato engatar os treinos. Pela primeira vez desde o nascimento do Thomas, eu estava correndo consistentemente e melhorando. Eu me sentia bem, forte e motivada. Junto dos treinos de força de kettlebell para evitar lesões, comecei a ver meu corpo reagir bem àquela nova rotina.

E lá estava eu, no meu aniversário, a 17 dias da maratona, querendo sair para correr.

Chovia leve. O dia estava feio. Allex saiu para correr comigo, mas não sem antes apanhar dois chapéus de festa e colocá-los em nossa cabeça.

"Você acha que eu vou sair assim?"
"Vai. É seu aniversário."

E lá fomos nós correr na chuva de chapéuzinho colorido.

Foram os 12km mais engraçados da minha vida. Todo canadense que passava por nós desejava Happy Birhtday! Caminhões buzinavam. Velhinhas riam da nossa cara. E nós ríamos de volta. Foi sensacional.

Saímos para almoçar só nós dois depois disso, e então fomos buscar as crianças na escola. Depois de algum descanso, saímos para comer uma pizza numa das poucas pizzarias da cidade que usam forno à lenha. Apesar de estar caindo de sono, foi um bocado divertido. Principalmente porque a família toda usava chapeuzinhos coloridos e eu, claro, fui a louca andando por aí de coroa dourada na cabeça. "Vocês foram ao Medieval Times?", perguntou a garçonete, servindo-me meu segundo Spritz da noite. "Não", respondeu Allex, "É o aniversário de 40 anos dela e a gente tá fazendo ela passar vergonha." Por conta disso, ganhamos sorvete de chocolate com uma vela de aniversário em cima. ;)

Na manhã seguinte, com crianças na escola e Allex ainda de férias, arrastei o marido para o treino longo. O dia estava lindo e ensolarado. Subimos o rio Humber e eu ria apontando para ele todos os locais que haviam usado como cenário na série Handmaid's Tale. Achava engraçadíssimo que os personagens quisessem fugir para Toronto mas já estivessem aqui. (Explico: Toronto e Vancouver são cidades canadenses amplamente usadas pela indústria cinematográfica americana para fingir que são Nova York ou outras cidades americanas, pois elas se parecem muito e são mais baratas.)


Paramos sobre uma ponte abaixo da ferrovia para comer uma bananinha e voltamos. Nos separamos num certo ponto, pois ele queria voltar logo para casa indo por cima, e eu queria fazer todo o trajeto de volta pela margem do lago. Ele correu 21km, eu queria fazer 30.

Sozinha, descendo à margem do rio, ri novamente da minha sorte com bichos. Aproximei-me do rio ao ver um acumulado de gente batendo fotos, quando me dou conta do que está acontecendo: a piracema do salmão. Lá iam os salmões imensos rio acima, se debatendo nos ares, cheios de convicção e coragem, tentando infinitas vezes ultrapassar a pequena queda d'agua que os separava de seu objetivo.


Quando o primeiro deles conseguiu, dei um gritinho de alegria com braços para o ar e continuei a correr. Se o salmão consegue subir aquele rio, eu vou conseguir correr minha maratona. Just keep running! Just keep running!

Na última semana antes da prova, minha sogra veio visitar. Consegui correr uma ou duas vezes, mas no restante do tempo simplesmente passeamos. As crianças faltaram dois dias na escola para que pudéssemos ir até Algonquin Park, pois lá o Outono já chegara oficialmente e as árvores estavam todas coloridas. Alugamos um chalezinho simples perto do parque, à beira de um lago, e fomos passear pelo parque imenso, lindo, inteiro dourado e vermelho.


Passávamos o dia fora, em trilhas pelo parque. Capas de chuva protegendo do tempo ruim mas que não desanimou nossos espíritos. Eu ia na frente com o cão e com Thomas, que ia "Kilian-Jornando" * todo o caminho íngreme de pedra e lama. Mais tarde eu me inspiraria nessa visão do meu filho correndo a trilha sem medo, mas estou me adiantando.

*Procure vídeos do Kilian Jornet, se não sabe quem é, e vai entender do que estou falando.

O último local a que fomos antes de voltarmos a Toronto foi à pedra mais antiga do mundo. É um morro rochoso cuja datação de carbono é tão antiga que o local inteiro parece ter sido importado de Marte.


Foi uma viagem curta mais deliciosa. Não há nada que eu goste mais do que me enfiar no mato, principalmente com minha família.
De volta a Toronto, as primeiras árvores a ficarem vermelhinhas.
No dia da Maratona, minha sogra ficou com as crianças. O outono começara a dar as caras também em Toronto, e estava frio. Fazia oito anos que eu não participava de uma prova de rua, sendo a última a Meia-maratona do Rio, que eu corri sem saber que estava grávida de Thomas. Fiquei impressionada com a participação popular durante toda a prova. Muita gente por todo o trajeto carregava cartazes engraçados, como "You payed to do this!", "It seems like a huge effort just for a banana!", "Pain is only the french word for bread!", "You think your legs hurt, my arms are killing me!" "You already ran 40km, I can't run even 1", "There's beer at the end!", "The faster you run, the sooner you're drunk!"e tantos outros. Havia grupos de música tocando e dançando em vários pontos do caminho. Crianças distribuindo pretzels e bananas para os corredores com suas mães. Gente fantasiada torcendo e soltando bolhas de sabão. A energia toda da prova era muito boa, e me lembrou da sensação de participar da São Silvestre, há tantos anos atrás.
Preparando para a largada em Downtown.
Allex se machucou no quilômetro 21, e por um instante fiquei triste, achando que ele abandonaria a prova. Mas logo se recompôs e me alcançou e por algum tempo corremos juntos outra vez até ele me dizer para ir no meu ritmo, que ele iria mais devagar. E assim fui. Assobiando, sorrindo, feliz.

Quando cheguei ao quilômetro 32, conhecido como o "paredão", eu estava me sentindo ótima, o que me empolgou ainda mais. O problema desses últimos dez quilômetros, é que eles consistiam de loooooongas retas em áreas industriais, feias e sem sombra. O frio fora embora, e os dezoito graus ao meio dia começavam a cobrar pedágio. O calor (sim, 18oC é quente) sob minha camiseta preta incomodava. E aquelas retas eram infinitas. Você via os quilômetros passando e não via a curva de retorno. A cabeça começava a pirar, pensando que tudo o que a gente ia, teríamos de voltar.

Foi no quilômetro 37 que a pilha começou a acabar. Meus quadris doíam. Meus joelhos doíam (Olá, iliotibial!). Meu abdome doía. Lembrava dos videos de corrida, treinadores avisando: "você vai cansar de simplesmente passar tanto tempo em pé".

Comecei a desacelerar. Então pensei em Allex: "o negócio é não pensar nos 42. Pensar que são só dez. E dez é um treino de terça-feira. Cinco K é uma volta no parque. Você consegue dar uma volta no parque."

Eu consigo dar uma volta no parque. É só uma volta no parque. São só 5k.

Não parei de correr. A reta industrial acabou e subi um viaduto de volta a Downtown. As ruas se fechavam por entre prédios altos novamente. Eu ouvia de longe gente torcendo. Eu ouvia o narrador da corrida falando, empolgado, o nome de quem terminava. Meu sorriso se abriu largo de felicidade e de repente havia força para aqueles últimos dois quilômetros. Acelerei. Acelerei mais. Fiz a curva para a praça da prefeitura, e ali estava a multidão torcendo atrás das barricadas vermelhas, a linha de chegada, e todo mundo gritava e aplaudia como se me conhecesse. Meus olhos se encheram de lágrimas. Energia tão boa. Ouvir aquela voz no microfone dizendo meu nome quando cruzei a linha dos 42km foi uma das coisas mais fantásticas da minha vida. Felicidade plena.

Foi perfeito.

Foram 4 horas e 48 minutos correndo sem parar. Muito longe de ser um tempo impressionante. Mas foi o bastante para mim. Eu fiz. Eu terminei. Eu queria muito, fui lá e fiz. Quarenta quilômetros para comemorar meus quarenta anos. E mais dois de lambuja.

Allex terminou depois de mim.

Voltamos, exaustos, pernas duras, medalha pesada no peito, de metrô para casa. Ríamos. Meu deus do céu, como tinha sido difícil! Mas como era legal! Vixe, imagina povo que faz 50? E 100? Nossa, não rola. 42 acho que já foi o bastante.

A cerveja e o macarrão em casa eram divinos. Eu me sentia bem.

Passado o cansaço, que perdurou por alguns dias, não sobrou nenhuma lesão. Sobrou a surpresa de me dar conta de que meu abdome e meus braços doíam mais que as pernas.

Fazer uma maratona foi como parir. Tanto tempo de preparo, chegou a hora, acelera, acelera, parece que não vai, eita, que maravilha!, terminou, você conseguiu. Também é como parir porque depois que passa o efeito do primeiro filho, você esquece o sofrimento e decide ter o segundo. Por isso, na semana seguinte, me inscrevi para minha primeira ultra. Cinquenta quilômetros em trilha, daqui a um ano. Muito tempo para treinar. Para fazer maratonas em parques. Para melhorar minha velocidade, para passar menos tempo correndo. Mas em trilha. Chega de asfalto. Correr em asfalto foi chato. Gosto de mato.

Três semanas depois, fiz minha primeira prova de trail running. 25km no mato. Lama e pedras e limo e raízes escondidas pelas folhas mortas de outono. Lembrei de Thomas "Kilian-Jornando", levantei os braços na altura do ombro pra me equilibrar e simplesmente soltei o corpo. Vai. Pula de pedra em pedra. Aceite o fato de que você vai cair em algum momento, dizia um video de uma ultra-maratonista numa entrevista. Aceito. Eu sei que vou cair. Não vou ter medo. Só pula. Pulei. Caí. Duas vezes. Xinguei, ri, limpei a lama das luvas (porque fazia -7oC àquele dia) e continuei correndo. Meu eu de vinte anos atrás, se borrando de medo de altura nas trilhas, ficaria orgulhosíssima.

Feliz Quarenta Anos.

....


Uma das abóboras, design da Laura.

No meio do caminho, claro, teve Halloween. Laura me pediu para mandar um lanche "scary", e pela primeira vez na vida me dei ao trabalho de fazer isso. Eu não curto essa coisa de fazer comida parecer outra coisa. Pra mim comida tem que parecer comida. Mas... enfim. Foi divertido.

Preparei muffins de abóbora (com o miolo da abóbora que virara Jack-O-Lantern), com o glacê de açúcar e limão em forma de teia de aranha.  Improvisei aranhas com uvas verdes e salsão. Thomas comeu o muffin e deixou a uva, Laura comeu a uva e deixou o muffin. Né? Minha sina. (Improvisei os muffins usando de base aquela mesma receita-base da Martha Stewart que já linkei aqui várias vezes. Mas esqueci de escorrer e apertar a abóbora cozida e o purê ficou muito úmido, o que afetou toda a receita...)



 Também mandei ovos cozidos, com lascas de azeitonas encaixadas em buraquinhos que escavei com a ponta da faca para fazer os olhos e a boca. Ghost-eggs. Esse fez sucesso com os dois.

Teve sanduíche de queijo e salame demoníaco, com lascas de tomate-cereja como olhos brilhantes. Thomas adorou. Laura reclamou que foi difícil de comer, porque seus dedos tocavam o salame ao invés do pão. Ai, ai...

 
Por último, Cheesy Feet da Nigella, suuuuuuuuper fáceis e deliciosos. Por que pés? Porque eu não tinha nenhum cortador de biscoito assustador. Eles foram tão fáceis de fazer e ficaram tão gostosos, que pretendo prepará-los mais vezes para mandar de lanche da escola. Apesar de bem "cheesy", Laura aprovou.



No meio disso tudo, dos curries ayurvédicos e tranqueiras de halloween, continuo no meu surto de cozinha saudosista. Rolaram panquequinhas de ricotta e espinafre, um dos pratos que minha mãe mais fez para mim e para o Allex em nossa fase mais vegetariana. Quando eu era criança, elas eram recheadas de carne moída e eram deliciooooosas. Acabei usando a receita de um dos livros da Tessa Kiros, mas apesar de amar os crepes doces dela, a versão salgada foi meio difícil de acertar e achei que molho branco MAIS molho de tomate ficou meio pesado. Delicioso, mas pesado. Próxima vez vou na receita simples da minha mãe para a massa dos crepes e faço como ela, servindo apenas com molho de tomate.
Amor puro, panqueca de ricota e espinafre.
 Quando Allex viaja a trabalho, sempre aproveito para preparar frango, pois ele não gosta, mas as crianças sim. A pedido deles, resolvi preparar o frango frito da minha mãe, uma das coisas que ela mais preparou para mim e para meus filhos desde que nasci. É a quintessência da casa dos meus pais.

Liguei para ela e pedi a receita. Ao contrário das panquequinhas, nesse caso, tinha que ser a receita da mamãe.

Como sempre, muito didática e solícita, minha mãe preparou o frango na casa dela e fotografou todos os passos, explicando minuciosamente o preparo.

Fui ao mercado comprar peito de frango, mas quando cheguei lá, quase caí pra trás com o preço de dois peitinhos orgânicos. Era o preço do frango inteiro. Vai o frango todo, então, que pelo menos rende mais refeições e faço caldo com a carcaça. Fora que sempre me divirto destrinchando o bicho. Ok, acho que perdi um zilhão de leitores veganos e vegetarianos agora. A técnica. A técnica eu acho divertida. De separar as partes. Ah, você entendeu.

Estava tudo bem não fosse o fato de a geladeira estar vazia, pois eu acabara de passar por uma daquelas minhas semanas divertidas de "rapa-despensa". Fui vendo a lista e botando no carrinho. Vendo e botando. Na hora de pagar, fui encaixando tudo nas duas grandes sacolas que levo comigo e na minha mochila.

"Quer ajuda pra levar até o carro?", perguntou a caixa.
"Eu tô a pé", respondi. Ao que ela me lançou um olhar desconfiado."Eu aguento. Sou mais forte do que pareço."

Faz a conta... 1 frango inteiro, 4 litros de leite, 2 litros de água de coco, meio quilo de queijo, 1,7kg de iogurte, 1,5kg de maçã, 1,5kg de pêssego, meio quilo de tomate, meio quilo de cenoura, 2 caixas de ovos, 1 abóbora, 1 couve-flor... Pois é. Esse 1,5km carregando essa tralha no braço pareceram MUITO mais longos do que os 42 correndo... ;)

Aí no fim do dia, Allex me pede ajuda para ROLAR (literalmente) os pneus de neve pra fora do nosso armário e até a garagem, para que ele pudesse aproveitar a revisão do carro e já trocar os pneus.

"Vai, Ana! É cross fit!", brincou ele.
"Minha vida é um cross fit, Allex."


 Durante a viagem dele, destrinchei o frango e com o peito preparei o franguinho frito, macio e suculento, de crostinha crocante e com gosto de comida de vó. Servi com macarrão gratinado e couve refogada. Foi a alegria da pimpolhada. "Mamãe, agora faz a sopa da vovó? E o rocambole?" Tá na lista, filho.
E outro amor puro: frango frito.
 O que sobrou do frango virou uma caçarola com molho de tomate, também da Tessa. E a carcaça foi cozida com legumes para virar 2 litros de caldo de frango que foram direto para o freezer. Contei o causo para meu pai, que ria, perguntando se o frango era do tamanho de um cisne, tanta comida tinha vindo dele.

Para arrematar a seção saudade, bolinho de chuva, que meus filhos nunca tinham comido na vida. Usei a receita da Rita Lobo e o sucesso foi retumbante. A única reclamação foi que a receita rendia muito pouco.



FRANGO FRITO DA MINHA MÃE

Ingredientes:
  • 2 peitos de frango sem pele
  • 1 colh. (chá) sal
  • leite (cerca de 2 xic)
  • 2-3 ovos
  • 2 xic. farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Limpe bem o frango, tirando qualquer nervura. Corte em pedaços mais ou menos iguais, do tamanho de uma bolinha de ping-pong, lembrando que o frango encolhe depois de cozido. (Prefiro tamanhos menores, pois é garantia de que o frango vai cozinhar por dentro sem ficar seco ou queimado.)
  2. Numa tigela grande, misture o leite ao sal e coloque ali o frango já cortado. Cubra com um prato e leve à geladeira por pelo menos meia hora. 
  3. Retire da geladeira uns quinze minutos antes de usar, para perder um pouco o gelo. 
  4. Numa outra tigela, bata com um garfo dois ovos com cerca de meia xícara do leite do frango (aprendi a não desperdiçar nada com minha mãe e meu pai, veja bem.) até que fique misturadinho. (Segundo minha mãe, o leite na mistura de ovos para empanar deixa a casquinha mais fina e leve). Num prato, disponha metade da farinha de rosca.
  5. Retire o frango do leite (reserve o resto do leite, para se precisar bater com aquele ovo que sobrou). Pegue um pedaço de frango por vez, passe na farinha de rosca, então no ovo, e depois na farinha de rosca novamente e deixe num prato ao lado. (O leite, também, segundo mamãe, impede que o ovo faça aquele rabicho pingando quando a gente está empanando - a mistura fica mais homogênea.)
  6. Quando todo o frango estiver empanado (use o último ovo com um pouco daquele leite, e o resto da farinha de rosca, se precisar), coloque uns dois dedos de altura de óleo vegetal numa frigideira grande e aqueça em fogo médio-alto. Coloque um fósforo lá dentro. Quando o fósforo acender, o óleo está a 180oC. (Minha mãe não gosta de fritura com muito óleo, então usa um pouco de azeite e manteiga, mas desse jeito precisa ficar com uma colher banhando o os pedaços de frango. Esse jeito dela prefiro fazer quando é filé e não nuggets.)
  7. Enquanto isso, ligue o forno a 180oC.
  8. Coloque os franguinhos no óleo quente, sem encher muito a frigideira, para que a temperatura não abaixe. Cozinhe até dourar embaixo e vire-os com uma colher. Deve demorar uns dois a três minutos de cada lado, se os nuggets estiverem pequenos e o óleo na temperatura certa. Retire os franguinhos prontos, coloque-os numa assadeira e leve ao forno. Isso vai garantir que continuem cozinhando, para que nenhum fique cru por dentro, e a casquinha continue crocante. Termine de preparar o restante. 
  9. Simples e bom. 




Cozinhe isso também!

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