quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Simples é bom. Como o desperdício me ensinou a cozinhar. E um Clafoutis pra se divertir.



Eu sofro de um caso sério de FOMO (Fear of Missing Out), e desta vez não é nem culpa da Internet. Sim, as redes sociais e o acompanhar constante de blogs de estilo de vida e sites de cozinha e viagem com certeza intensificam essa sensação de não estar sendo / fazendo / experimentando o bastante, mas confesso que isso é mesmo um problema intrínseco à minha personalidade, muito antes do advento da conexão discada.

Há quem diga (eu digo) que é culpa dos planetas: isso de ser Libriana com ascendente em Gêmeos não me ajuda em nada na hora de tomar decisões. Se quiser me ver num momento simples de angústia, pergunte-me se quero jantar pizza ou japonês. Se eu decidir por pizza e você me perguntar quais coberturas eu quero combinar em cima da minha, partindo de um cardápio com trinta e duas opções, eu sento num cantinho e choro. Metaforicamente, é claro.

Passei os seis meses de frio dessa terra estranha ansiando pelos meses de calor que trariam alguma variedade de volta à minha mesa, um frescor, um verde que não fosse couve, cores que não viessem de beterrabas. A Primavera custou a chegar. Com a última neve em Abril (argh!), aqueles lindos ingredientes primaveris ainda eram caros e não pareciam combinar com as temperaturas geladas lá fora. Foi apenas quando os termômetros começaram a estabilizar nos vinte graus, e o calor começou a aumentar, que os preços dos aspargos e das cerejas tiveram o efeito inverso, despencando de uma forma tão convidativa quanto os gramados ensolarados nos parques.

O Verão trouxe tudo aquilo que no Brasil parecia comum e sem graça, tem o ano todo, ninguém liga muito: abobrinhas, vagens, berinjelas, melancias, melões, alfaces, milho na espiga. Você nunca se empolgou com uma abobrinha? Fique seis meses sem uma, aí a gente conversa.

Saíram as cerejas e vieram os morangos, os mirtilos, as framboesas, as amoras, e então os pêssegos e as nectarinas e uma fabulosa variedade de ameixas. E as vagens vêm amarelas, verdes e roxas. E os dentes-de-leão vêm vermelhos. Há cinco variedades de rabanetes no mercado. Há melancias de casca tão escura quanto o céu à noite e outras de polpa amarelo-forte. Há manjericão genovês, manjericão gigante, manjericão tailandês. Há tomates de todas as formas e cores e tamanhos. Há batatas jovens de nomes que nunca vi, algumas roxas (mas que não são doces), outras de cascas manchadas, há batatas Viking, batatas Mozart, batatas Fingerling. Há berinjelas gigantes e brancas como um ovo de avestruz. E outras pequeninas e esverdeadas. Há pimentões para combinar com qualquer cor de prato que você tenha em casa. Há legumes e verduras tão coloridos, que têm seu nome precedido do epíteto "Rainbow".

E uma ida ao supermercado ou ao Farmer´s Market, de repente, parece uma visita ao saldão do outlet multimarcas em véspera de Natal. Eu não sei nem o que olhar primeiro.

Tenho minha lista. Depois de um ano aqui, finalmente sou dona de minha cozinha. Sei exatamente o que a gente consome e em qual ritmo. A busca por uma rotina na mudança brusca que lhe tira o chão, e a necessidade do simples e do conforto em momentos emocionalmente complicados e desconfortáveis, transformou minha cozinha num ambiente mais previsível e ordenado, com cardápios um pouco mais fixos, que me permitiram entender melhor nosso padrão de consumo e alimentação.

Sei o que vale a pena comprar no atacado e o que vale a pena pegar em pequenas quantidades toda semana. Sei também exatamente quantas patacas posso gastar toda semana no horti-fruti. Lá vou eu com meu folhetinho do mercado com todas as frutas e verduras em promoção. A meta é comprar três frutas, dois legumes, duas verduras, e repor qualquer básico que esteja faltando, como salsão, cenoura, cebola e alho, salsinha, cebolinha e coisas como pepino e abacate que são consumidos feito água aqui em casa. Lá vou eu, acreditando em minha disciplina e força de vontade zen. E lá me lasco, assim que vejo que já tenho ameixas, melancia e amoras pretas na cesta, mas os pêssegos estão num preço incríiiiiiivel, e pode ser que semana que vem eles não estejam mais aí, afinal, as cerejas sumiram de um dia para o outro, e aquele melão óoooootimo de duas semanas atrás também não deu mais as caras. E pego minhas vagens roxas, minha acelga suíça de talos amarelos, meu pézinho de alface (eita! tá pequeno, essa semana!), e meus tomates coloridos, mas então vejo aqueles pepinos pequeninos que há tempos eu queria transformar em picles, e lembro que precisava de folha de repolho para cobri-los, e olha lá! O repolho está por 99 centavos o pound! Pô! Mas será que levo mesmo essas ameixas? Estão mais baratas porque é época, ou porque não estão tão boas quanto as outras? Porque não pego as outras, amarelas, Mirabeille, que ainda estão aí e a Laura adorou? Será que vou mesmo deixas os pêssegos? As nectarinas estão mais doces que as ameixas? E morango? O morango está sumindo. Vixe. Morango. Será que levo abobrinha de novo? Seis meses sem abobrinha, Ana, seis meses! Nunca comi berinjela branca. Será que tem o  mesmo gosto? Vou levar manjericão. Fiz muito pouco pesto nesse verão, e preciso fazer mais pesto. Cogumelos. Não, péra, deixa os cogumelos para o Outono, que combina mais. Ai! Meu! Deus! Olha aquelas batatas roxas!!! Eu lembro da receita do primeiro livro do Jamie Oliver usando aquelas batatas roxas e eu achava que eram batatas doces e não eram! Caraca!!! Ieeeei! PRECISO EXPERIMENTAR! PODE NÃO TER MAIS SEMANA QUE VEM!

Lou-ca.

Nunca mais na vida critico gente enlouquecida em Shopping com vinte e oito sacolas. Tá? Nunca mais.

Quando cheguei em casa e coloquei tudo na fruteira e na geladeira, tendo carregado uma melancia inteira dentro da minha mochila, porque eu não aguentava mais o peso das duas imensas sacolas da Ikea rasgando meus dedos, Allex começou a rir. "Caramba! O que aconteceu? Estamos estocando para a guerra?"

Pois é. Só que não. Ainda bem.

No dia seguinte, comento com minha amiga: "Eu sou minha melhor versão sob restrição, isso com certeza. Essa abundância de opções me deixa completamente desbaratinada. No Inverno, quando eram só batatas, couve e maçã, eu resolvia a compra da semana em quinze minutos, voltava pra casa e já sabia tudo o que ia cozinhar todos os dias, e a parte mais divertida era criar pratos diferentes com aqueles mesmos ingredientes, pra não enjoar, não encher o saco. Agora, minha geladeira tá tão entulhada que eu não consigo enxergar a luzinha no fundo, e pareço daquelas mulheres com closets do tamanho de quartos de hotel, que dizem que não têm o que vestir: olho para a comida e não sei o que cozinhar."

De fato, fiquei longos períodos de tempo em pé em frente à geladeira aberta, braço apoiado à porta, escaneando todas as frutas e verduras ali e tentando montar na minha mente o melhor quebra-cabeça culinário. A acelga suíça vai murchar antes do repolho, tenho que usar antes. Mas tenho dois tipos de batata e os rabanetes, que vão começar a soltar raízes por conta da umidade. Hmmm... os tomates que deixei na fruteira para amadurecerem estão passando do ponto. Não vou abrir a melancia, porque essa geladeira queima tudo, congela tudo, então vou oferecer as uvas e as amoras antes para as crianças. O que eu faço com essa acelga? Gratin de novo? Afe, a gente comeu gratin semana passada. Mas não quero fazer torta. Tá quente demais para abrir massa. Meu Deus! As crianças voltam às aulas daqui a dois dias! O que elas vão levar de snack?? Rabanete? Hmmm...

Acho muito difícil não cair nessa pegadinha, e acho difícil porque sempre caio quando a oferta é muita. No Inverno, a restrição de comprar apenas "Local" e "Da Estação" (que por conta dessas duas qualidades, também existem em abundância, e, portanto, estão sempre "Em Promoção" - win-win situation), evitava olhar para aquela abobrinha vinda do outro hemisfério e custando um quilo de ouro. Mas no Verão, TUDO é local e da estação, e tudo está com preços relativamente bons. Que é que eu faço? Convenço-me de que todas aquelas verduras vão durar duas semanas, então está tudo bem. Mas a verdade é que compro mais perecíveis do que consigo consumir em uma semana, e acabo preparando legume acompanhado de legume em todas as refeições para não deixar nada estragar, e acabo esquecendo de usar os feijões e o arroz da despensa, que normalmente entram justamente para "dar sustância" e baratear a refeição. Daí que na última semana do mês, acabou a verba do horti-fruti, e rola solto um arroz-feijão-e-ovo, ou spaghetti cacio e pepe. É para essas semanas de prato bege, que eu acabo guardando sempre um potinho de pesto no freezer ou ervilhas congeladas. Ou pelo menos um pouco de salsinha para ter algum frescor no prato. A parte boa é que quando vira o mês, todo mundo está louco para comer salada de novo. ;)

O fato é que eu nunca tinha DE FATO me dado conta disso tudo. 

Daí que durante o último mês assisti a um excelente programa da TV canadense, meio que sem querer, pois eu estava procurando informações sobre a segunda temporada do The Great Canadian Baking Show. O programa, chamado Back In Time for Dinner, mostrava uma família típica canadense, que concordara em ver sua casa, suas roupas e seus hábitos (principalmente alimentares) transformados por uma semana como se vivessem na década de 40. E depois 50 e 60, e assim sucessivamente até os tempos atuais. A série, que depois descobri que se trata da versão canadense do original da BBC britânica (a versão original tem no YouTube!), é muito bem produzida, e mostra a progressão da indústria alimentícia, o impacto da tecnologia e das guerras na produção e disponibilidade de comida, e sobre a relação estreita entre comida e as relações familiares. É muito bom.

Uma das coisas mais interessantes da série, para mim, foi ver a economia doméstica não apenas em tempos de guerra, mas no momento em que a classe média britânica e norte-americana se viu sem a ajuda (cozinheira e empregada) que costumavam ter antes. Foi toda uma geração de mulheres se vendo sozinhas na cozinha, sem nenhum conhecimento ou orientação, tendo que fazer duzentos gramas de carne render uma semana toda para cinco pessoas, correndo o risco de serem multadas ou irem para a cadeia por jogar no lixo uma fatia de pão.

Faz pensar no desperdício de comida, na dureza da guerra e da pobreza, na importância que ganha um prato de comida (lembro as histórias de Marcella Hazan em sua autobiografia), mas essas foram elucubrações minhas e que sei que todos terão ao assistir ao programa. O ponto desse texto é outro, na verdade. Porque ao assistir àquilo, lembrei-me de um livrinho ótimo que li há muitos anos atrás, justamente a respeito da economia doméstica na época da guerra: Como Cozinhar Um Lobo, de M.K.Fisher, livro que já devo ter mencionado aqui, em tantos posts em que falei sobre desperdício de comida. (O modo como ela pedia para que se raspasse com a faquinha qualquer restinho de manteiga que pudesse ter caído do pão, para que pudesse ser usada em outra refeição faz você pensar naquele resto de macarrão que ninguém quis e que você jogou no lixo despreocupadamente.) 

Durante as guerras, os governos criaram cartilhas ensinando como transformar quase nada em uma refeição para sua família. Uma vez ganhei de um amigo uma dessas cartilhas britânicas. Foi esclarecedor ler aquelas palavras e aquelas receitas, não porque eu quisesse implantar uma economia de guerra aqui em casa - ainda que exista sim a piada interna de que nossa despensa parece uma de 1940, mas porque me fez repensar completamente o modo como eu enxergava os ingredientes e montava meus cardápios.

Foi naquele momento em que comecei a pensar minha cozinha com a seguinte restrição: não pode haver desperdício.

Durante anos, esforcei-me, dentro de toda a minha esquizofrenia culinária, alterando completamente a despensa cada vez que conhecia novos sabores e gastronomias, sempre sem muita rotina no que eu decidia cozinhar, a nunca jogar fora o que podia se transformar em refeição. Até chegar ao ponto em que meu lixo da cozinha só contivesse partes realmente não comestíveis. Foi preciso devagarinho educar a família a nunca se servir de mais do que se vai comer, que é melhor repetir do que jogar fora. Pegue pouco, digo às crianças, e depois, se estiver com fome ainda, você pode se servir de mais, ou esperar pela sobremesa. E nunca há sobras no prato a ir para a lixeira. Se sobrou Maple Syrup no prato, repito sempre, é porque tem Maple demais para pouca panqueca. Certa vez, para ilustrar o tamanho do desperdício, cheguei a juntar todo o xarope restante em seus pratos num medidor. Havia mais de três colheres de sopa de Maple Syrup ali, indo para o ralo. Ao ver a quantidade ali numa medida que eles compreendiam, passaram a ser mais cuidadosos na hora de se servirem. Quando exageram, alerto mas não estresso a respeito: boto as minhas panquecas em seus pratos e deixo que elas absorvam aquela pocinha açucarada enquanto eles saem para brincar.

O que finalmente me dei conta, assistindo àquele programa, foi como essa meta de não desperdiçar me ajudou a entender a cozinha, mudou meu olhar em relação à comida e, invariavelmente, tornou-me uma cozinheira melhor, mais prática, mais rápida, e com certeza mais econômica. E percebi que essa é a parte difícil: PENSAR a cozinha. Quando converso com amigos que eu considero ótimos cozinheiros, que gostam de preparar bolos e tortas e criar boas refeições, as reclamações são sempre as mesmas: como é difícil pensar os cardápios todos os dias, criar esse quebra-cabeças com a sua despensa. Seguir a receita é fácil. Executar a técnica aprendida é fácil. Olhar a geladeira e criar algo com o que está lá: essa é a parte complicada.

E é CLARO que é complicada. Porque esse é o tipo de coisa que se aprendia com sua família, observando e ajudando, você via sua avó transformando o arroz de ontem em bolinho, fritando as aparas de massa fresca de macarrão, polvilhando açúcar e servindo de lanche. Ou que se aprende na prática, ao longo de anos cozinhando e cozinhando e cozinhando. Há dez anos atrás, eu precisava dos meus 267 livros de cozinha e mais duas dúzias de sites e blogs para me dizer o que fazer com uma berinjela. Hoje, confesso, quase nunca abro os poucos livros que trouxe, a não ser que a memória traga à tona aquela receita que eu vira um dia enquanto folheava  o livro há meses atrás e que parecia usar os ingredientes que eu tenho.

Isso não quer dizer nada. Não faz de ninguém melhor ou pior cozinheiro. Só tornou minha vida mais fácil. 

Se você não teve uma mãe, um pai, uma avó, um amigo para ensiná-lo o pulo do gato na cozinha, só a experiência vai trazer. Aprendi muito com minha mãe e com minhas avós, e até hoje lembro de meu pai me dizendo que  um bom cozinheiro não joga comida fora. Mas foi o livro de Tamar Adler, An Everlasting Meal, presente de uma leitora querida, que de fato mudou tudo. Trata-se de, grosso modo, um livro sobre sobras. O que fazer com o arroz que empapou, como usar o óleo do vidrinho de anchovas, como transformar um frango só em diversas refeições diferentes. Há quem diga (eu digo) que Tamar Adler é a M.K.Fisher na nossa geração. Se você lê em inglês, leia esse livro. Infelizmente, não acho que exista em português, mas deveria. (Tenho recomendado a todas as pessoas que vêm se queixar dessa dificuldade de pensar a cozinha, e até peguei o livro de novo na biblioteca para reler, pois o meu está com minha irmã, emprestado. Aliás, peguei todos os da M.K. Fisher também.)

O que esse livro me mostrou, e que foi genial na minha evolução como cozinheira, foi que as sobras são (voltando à metáfora do closet cheio de roupa e nada para vestir) uma espécie de peça obrigatória. Você tem que ir a esse evento, mas tem que ser de calça jeans. E o resto? Sei lá, mas tem que ser de jeans. É uma restrição que elimina uma decisão da sua vida e facilita tudo. As sobras funcionam do mesmo jeito: elas precisam ser usadas e já estão lá, muitas vezes já no meio do caminho, até poupando seu tempo na cozinha. São uma base já pronta e obrigatória para se construir algo novo em cima. O que dá pra fazer com a carne de panela que sobrou? Botar no sanduíche? Cobrir de purê e transformar em escondidinho? Misturar a molho de tomate e servir com macarrão? Ou com polenta? Juntar as carninhas a uma alface romana e alguns picles e fazer uma salada, guardando o caldinho da carne para dar sabor a um molho de massa ou uma sopa? Misturar aquela colherada de arroz que sobrou, temperar com coentro e rechear tortillas de trigo? Ou crepes? Que tal crepes de farinha de milho? Ideias infinitas. Mas a base está lá, e se você estiver no pique de ser criativo e construir algo novo ao invés de só requentar no microondas, a brincadeira fica bem mais fácil do que olhar a geladeira cheia de coisa nova e caçar receita para fazer tudo do zero, coisa que, pelo menos para mim, costumava ser mais estressante, porque achava mais receitas para um mesmo ingrediente e nada para outro, e começava a ficar aflita porque precisava de três abobrinhas mas só comprei duas, ou tenho iogurte mas não tenho sour cream, ou porque a receita pedia coentro e só comprei salsinha, ou porque não vou conseguir usar TODAS as berinjelas na torta e aí vai sobrar uma mísera berinjela e eu não queria que sobrasse porque depois vou ter de pensar o que fazer com ela, e ela vai murchar... enfim. Já viu.

Seja um arroz com feijão ou um peixe tchananans com verduras exóticas e molho complicado, minha mente se acostumou a esse quebra-cabeça, de pensar o que dá pra fazer com o que sobrar depois. Vida corrida de mãe (mas que também podia ser vida corrida de quem tem um emprego fora o dia todo e fica três horas no trânsito todo dia), ensinou-me a pensar além daquela refeição, e cozinhar alguns itens a mais para poder recombinar as sobras nos dias seguintes ou simplesmente congelar para uma semana bege de orçamento estourado. Essa restriçãozinha, que parece tão pequena, foi o que me tornou uma cozinheira mais inteligente. E há anos tenho esse desafio comigo mesma, que me faz sentir criativa e virtuosa: na última semana do mês só cozinho com o que tem em casa, até ver todos os potes da despensa e da geladeira vazios; nesses dias costumam sair os pratos mais interessantes, e recorro muito à cucina povera italiana, para transformar um maço de salsão ou meia dúzia de cebolas em algo delicioso, quando não há mais nada de fresco disponível. Acredite, você só pensa em salsão gratinado quando é só isso que sobrou na geladeira.

O não poder desperdiçar fez também com que ao longo dos anos as refeições fossem ficando mais tranquilas, com menos pressão para ter o Selo Internacional de Aprovação dos Chefs Nutricionistas Gourmets Convidados de Fim de Semana e Aquele Seu Primo que Cozinha Bem Doadores de Likes Infinitos da Suprema Rede Social Regente da Vida de Todos os Seres Humanos da Internet e Além.
Um jantar improvisado que parecia impossível para mim há dez anos atrás.

Afinal, tem vezes em que me sinto super esperta, transformando 1/4 de xícara de painço esquecido na despensa há um ano (porque nunca mais comprei painço), uma abobrinha, um ovo e um naco de queijo, em uma refeição para quatro pessoas (o ovo foi na receita dos crepes de sarraceno, que preparei enquanto o painço cozinhava; refoguei a abobrinha com cebola e alho até quase desmanchar, misturei ao painço e ao queijo e recheei os crepes, que foram ao forno com manteiga e foram acompanhados do que sobrara do - pequeno - pé de alface e meio tomate. Alimentou nós quatro e sobrou para o marido levar na marmita no dia seguinte). E tem vezes que pego meia porção de spaghetti, requento na frigideira com azeite e um punhado grande de ervilhas congeladas para dar volume, acompanho com a colher de sopa que sobrou da salada de ontem, e completo com uma torrada com a uma fatia de presunto e queijo que restava, passada no grill pra gratinar. Eu ri muito quando vi que a foto tinha ficado bonita. Porque é macarrão com pão.

Eu sei que normalmente as pessoas jogam fora a salada quando sobra só uma colherada. Mas eu guardo até a próxima refeição. Dependendo da folha, ela não perde muito a textura. Às vezes guardo a salada, mesmo que murchinha, para enfiar num sanduíche de queijo, quando não ligo para a textura e sim para o sabor.

O pior foi Laura, olhando para o prato, uma sobrancelha erguida, as mãos na cintura: "Mamãaaae! Macarrão com sanduíche?? Isso não faz o menor sentido! Macarrão NÃO TEM acompanhamento! A gente come ele sozinho!"

Toma essa.

"Não é pra fazer sentido, Laura. É pra ser comida. Parece ruim?"
"Não. Tá com uma cara gostosa."
"Então, pronto. Coma."

 E  a vida segue.
 
A melhor parte de aprender a pensar as sobras, os restos, as aparas, é relaxar e lembrar que não precisa ter vinte e quatro ingredientes, não precisa ter cara de restaurante, não precisa ter quinze super-foods virtuosos do momento. Pode ser só um prato de comida gostoso. Mesmo que seja macarrão com sanduíche. Ficou todo mundo alimentado para poder correr lá fora no parque nos últimos dias de férias. Não precisa mais que isso. A nossa geração que se encantou de novo com a cozinha como hobby e não como obrigação, que cresceu vendo os programas de culinária mais deliciosos de chefes famosos, e que depois foi massacrada por uma avalanche de informações nutricionais conflitantes e alertas de saúde, às vezes se perde um pouco nisso tudo, e acredita que cozinha é só técnica e receita exata e um amontoado de nutrientes.

Num outro livro de Tamar Adler (acho que recém-lançado, não sei, catei na biblioteca), ela comenta justo sobre isso, sobre a prisão que às vezes é se cozinhar com precisão: 100g disso, 1 colher de chá daquilo, cubinhos de 2cm. As receitas antigas não tinham medidas exatas e muitas vezes sequer instruções muito claras. Lembro sempre das receitas de minhas avós: farinha o quanto baste, coloque na forma e asse até ficar pronto, um cálice de leite, uma colher (qual colher???) de fermento, um pires de açúcar, ou tão somente uma lista de ingredientes, um título e NENHUMA instrução. Essa cozinha intuitiva, aprendida com a observação, com o cozinhar junto e absorver a experiência dos outros, é a coisa mais difícil de se conseguir hoje em dia. Mesmo. Demorei quinze anos para fazer pão sem medida nenhuma, ou pra saber quantos maços de espinafre cru equivalem ao bastante dele cozido para encher uma torta. Ou quanto de cada especiaria colocar no meu curry improvisado para aquela quantidade de lentilhas.

Mas todo mundo chega lá. Tamar Adler e M.K. Fisher me ajudaram muito nisso. E não desperdiçar nada foi o empurrão que eu precisava para continuar. Porque há momentos em que simplesmente não há receita de livro ou de internet que use o desconjunto absurdo de ingredientes e sobras do fundo da sua geladeira, e você tem que simplesmente se jogar e inventar alguma coisa, ao contrário de fazer o que eu fazia há anos atrás, que era sair ao mercado para comprar dez itens que compusessem um prato com aquela uma berinjela na geladeira. O que isso faz é gastar dinheiro e criar mais sobras. E você continua preso à receita. Eu costumava recalcular receitas para fazê-las todos os dias só para duas pessoas, quando não tinha filhos. Hoje, adoro preparar receitas que alimentam seis ou oito bocas, porque sei que terei muitas sobras para reaproveitar e que me pouparão MUITO tempo e trabalho nas próximas refeições.

A melhor coisa é se jogar na aventura de combinar o que tem disponível, usando o que você já sabe fazer como inspiração. Às vezes fica muito bom. Às vezes sua família que te ama come por pura educação (muitas vezes). Outras vezes, na tentativa de não desperdiçar cascas de bananas, você usa vários outros ingredientes para criar algo tão pouco comestível que tudo vai para o lixo mesmo assim, e você se sente uma nhaca, mas aprende que aquilo, daquele jeito, não dá muito certo e não faz mais. Não se sinta mal se ficar ruim. Noutro dia, ao invés de ler livros, Thomas me pediu para contar histórias de todas as comidas ruins que eu já preparara na vida. Olha... dava para virar a noite contando. Muitas dessas histórias viraram piadas de família. Ria, coma como for possível (ketchup serve pra isso), aprenda, siga em frente.

Mas quase sempre, tio Google está aí para receber com carinho as perguntas mais escalafobéticas no seu celular, enquanto volta da escola com as crianças já tarde, sabendo que daqui a uma hora o jantar precisa estar na mesa e que você não tem a mais parca ideia do que fazer: "O que fazer com 1 xícara de curry + 1 batata + meio pepino?" Sempre vai ter uma bizarrice por aí que sirva pelo menos de inspiração para aquela comida virar algo bom e não ir para o lixo. 

Senão, quase tudo pode ser transformado em sanduíche.



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ALGUMAS DICAS ÚTEIS E IMPERTINENTES...

 
Uma refeição típica resultado da compra exagerada de legumes: salada de batatas com rabanete e salsão, frittata de cenoura ralada e folhas de rabanete refogadas em cebola e manteiga, e salada de tomates.
Eu coloco de tudo na salada de batatas, dependendo do que tenho. Cenouras cozidas, salsão cru, rabanetes, pepinos, picles, alcaparras, cebolas, nabos, beterrabas, legumes cozidos... na hora de temperar, tento manter uma certa coerência entre ingredientes e nacionalidade da cozinha. Mas se já estiver uma mistureba, azeite, vinagre, sal e pimenta bastam.

Se sobrar tanta salada de batata, que não dá para comer tudo no dia seguinte, coloque tudo dentro de uma boa e velha torta de liquidificador ou transforme em um purê e junte a ovo e farinha e fermento e frite como panquequinhas em manteiga. Se sobrou super pouco, tipo mal dando pra uma pessoa, junte abacate, tomates, pepinos e alface, tempere com azeite e limão e se esbalde (foi meu almoço hoje).

Sobras de verduras ficam ótimas não só em frittatas, mas em massas de panqueca americana, sem açúcar. Tempere com sal e pimenta, misture às verduras à massa e frite. Comecei a fazer isso inspirada nessas blinis de agrião, que usavam fermento biológico.

Quando compro verduras e legumes a mais, pego um momento ocioso e preparo todos de um jeito básico: as folhas de rabanete já estavam refogadas e guardadas num potinho, esperando uso ao longo da semana.

Clafoutis de acelga suíça com milho.
Foi o mesmo com esse clafoutis. Eu já tinha branqueado a acelga suíça (swiss chard), com medo de que murchasse. No fim, nessa receita, esse passo era desnecessário. Sem problemas, piquei e refoguei tudo, e no fim deu na mesma. Não tinha alho poró, então refoguei as partes brancas das cebolinhas super-crescidas que eu tinha no meu freezer e mais uma cebola. Não tinha queijo Gruyere, usei mozzarella. Não tinha dill, usei salsinha. Achei desnecessário o queijo parmesão por cima para dourar, já que tinha mozzarella flutuando na superfície da massa, então ignorei. Esse clafoutis pede crème fraîche, que até tem aqui pra comprar, mas eu não queria sair de casa de novo e nem gastar dinheiro, então usei metade iogurte, metade creme de leite. Dizia para fazer direto na frigideira com os legumes refogados, mas eu bem sei que tudo o que tem ovo GRUDA HORRORES se não tiver sido untado com manteiga, então transferi tudo para uma travessa untada.

Moral da história: ADAPTE. Adapte o quanto puder. Use o que você já sabe e confie mais nisso do que na receita. Substitua livremente ingredientes que você sabe que têm propriedades semelhantes uns com os outros. Esse clafoutis ficou um desbunde, super cremoso e saboroso, e eu tive de prometer sorvete de sobremesa para fazer as crianças pararem de se servir para que sobrasse um teco pra marmita do Allex no dia seguinte (que foi clafoutis e o que sobrou daquela salada de batata roxa).

O tempo é pouco? Salada. Salada no prato transforma uma omelete em refeição. Uma fatia grande de pão dourada do azeite, coberta com os legumes que sobraram de ontem vira refeição com uma salada do lado. Sempre tenho alface em casa e sempre tenho mostarda. Um vinaigrette de azeite, mostarda de dijon, vinagre, cebola picadinha, salsinha e cebolinha faz algumas folhas de alface ficarem robustas e satisfatórias, e é sempre assim que sirvo, pois é meu vinaigrette favorito e combina com tudo o mais que possa acompanhar o alface: o último rabanete da gaveta, cenoura ralada, um teco de pepino, umas batatas cozidas, o meio tomate que alguém esqueceu na geladeira, o talo de salsão.
Qualquer coisa vira refeição com uma salada do lado.
E não precisa ser só salada de alface. Comprara na feira uns cogumelos novos, e Thomas pediu para prepará-los no almoço, com ovos mexidos. Havia muito poucos cogumelos, no entanto, pois eu não esperava dar de cara com o Farmers Market e muito menos com aqueles cogumelos, e estava sem dinheiro na carteira. Os poucos dólares que tinha em moedas compraram dois punhados de Chanterelles. (Aquele tantinho ali na foto lá em cima, era o que eu tinha para transformar em almoço para mim e as crianças, considerando que os cogumelos tinham que ser a estrela do prato.) Chegando em casa, refoguei os cogumelos na manteiga e na cebola, polvilhei com salsinha, servi com os ovos mexidos, completei com uma fatia dourada de pão e... uma salada de tomates. Tomate, sal e azeite. Só. E pronto. Basta.

(Aliás, uma das coisas que mais me entristece nessa onda do sem glúten - a moda, e não sobre quem é de fato celíaco - é o fato de o pão ter sumido das mesas. Nada completa mais um prato que uma fatia de pão, sabem bem os povos lá do Mediterrâneo. Fez o panelão de comida, achou que é pouco? Uma bela fatia de pão dourada em azeite, esfregada com um dente de alho, vai bem com qualquer coisa, principalmente se houver um molho ali esquecido no prato, pronto para ser absorvido pelo miolo do pão.)


 Foram vários os dias de férias em que almoçamos milho grelhado e... uma salada de tomates. As espigas eram imensas e saborosas, e não precisavam de nada além de manteiga e sal. Os tomates vieram apenas para arrematar.


Faça crepes. Montes. O recheio que se coloca neles é super pouco (duas ou três colheres de sopa por crepe?) e faz a sobra de qualquer carne ou legume parecer algo novo e delicioso. Rende, e se sobrar, você pode servir com limão, açúcar e canela de sobremesa no dia seguinte, mesmo que a massa de crepe não leve açúcar. Ou enrolar com alface, queijo e maionese e cortar em rolinhos, e mandar de lanche para as crianças, como wrapps. Ou servir de sobremesa com sorvete e frutas. Ou congelar. Quando estiverem frios, coloque num ziplock e congele. Eles reaquecem na frigideira, um por um. Sobrou arroz e curry? Fica ótimo dentro dos crepes. Sobrou algo mais italiano, recheie os crepes, cubra com molho de tomate, queijo e forno. 

Enfim, faça crepes. Muitos.


Use a água de cozimento das coisas. Branqueou verduras? Use a mesma água para fazer o arroz, que ficará perfumado e nutritivo. Algumas verduras, como espinafre e acelga suíça, deixam a água metálica e preta se deixar que esfrie, então use a água ainda quente imediatamente.

Acelga suíça gratinada, arroz cozido na água da acelga, e a boa e velha salada de tomates.
Vai fazer macarrão com molho de tomates frescos? Pele o tomate na água do macarrão antes da massa entrar. Nunca entendi o povo na TV ter dois, três potes de água fervendo. Tem uma receita italiana de massa com erva-doce que faz isso: a água em que se cozinha a erva-doce (funcho) cozinha a massa em seguida, justamente para a massa pegar o sabor da verdura. Faça isso.

 Se não tiver nada com muita cara de elemento principal, gratine. Pegue sua verdura ou legume, meta no forno com um pouco de queijo e é isso. Esse gratin de verdura do Nigel Slater nada mais é do que verdura branqueada, coberta com um pouco de creme, mostarda e um punhado de queijo. É muito bom. E o creme que sobra no fundo da travessa fica SENSACIONAL sobre o arroz.

O feijão branco que eu descongelei, o molho de tomate que eu tinha pronto, um ovo para cada um cozido ali dentro. Achei pouco, então completei com uma fatia de pão e uma abobrinha refogada.
 Faça muito feijão de uma vez e congele. Tenha sempre molho de tomate. Se você estiver preparando qualquer outra coisa e tiver uma boca de fogão sobrando, vale a pena fazer um molho de tomate. Eu sempre tenho por conta da pizza de sexta-feira. Sei que uma vez por semana comeremos macarrão com o molho de tomate que sobrou da pizza (ou faremos pizza com o molho de tomate que sobrou do macarrão). Às vezes, junto uma sobra com a outra: o feijão de ontem, o molho de tomate de transantontem, e bum! Uma coisa nova. Ovos poché dentro disso tudo, e uma abobrinha refogada para completar, porque achei que tinha ficado pouco.
 Legumes refogados fazem uma porção de macarrão de ontem alimentar três bocas hoje.
 Tinha sobrado um nada de macarrão com molho de tomate, e eu não queria transformar em frittata de novo. Legumes. Refogue legumes o bastante para dar volume e misture à massa na panela até o macarrão ficar quente de novo. Se achar que o macarrão já tava meio passado e não vai rolar um repeteco assim, envolva em um bechamél ou creme de leite e queijo e leve ao forno. Gratinado e borbulhante, ninguém vai falar que o penne passou um pouquinho.

Descomplique.

Sabe arroz? Sabe feijão? Tá ótimo!

No fim das contas, depois de toda a loucura de ingredientes e cozinhas internacionais, e vegan-gluten-free-natureba pela qual minha cozinha passou, sempre que pergunto a meus filhos e meu marido quais são seus pratos favoritos de todos os tempos, a resposta é unânime: arroz, feijão, couve e ovo frito. (Com um empate técnico com spaghetti com molho de tomate.)

Simples é bom. Dá um abraço no simples e convida pra ficar, que ele é seu melhor amigo e você nem sabia.

Agora, GO CRAZY com esse clafoutis. Adorei as proporções do creme, e pretendo usar essa receita mais vezes com outros ingredientes. A quantidade de recheio parece imensa em relação ao creme, mas acho que foi isso que ficou tão bom. Você pode fazer numa travessa maior, mas isso quer dizer que vai cozinhar mais rápido: você QUER que ele fique CREMOSO, e não firme como uma frittata, e por isso gostei de assá-lo numa travessa pequena de paredes altas. Dourou em volta mas não ressecou por dentro. A receita está exatamente como fiz. Deixei na lista de ingredientes apenas o que considero "obrigatório", e meti nos processos a sugestão do que eu coloquei ou colocaria. Essa receita está escrita exatamente como eu penso, com todos os pensamentos que me ocorreram enquanto preparava a receita, de como poderia modificá-la ou adaptá-la.

Divirta-se.

CLAFOUTIS DE VERDURA E MILHO VERDE
(do NY Times - receita original AQUI.)

Ingredientes:
(creme)
  • ¾ xic. leite
  • ¾ xic. de crème fraìche, creme de leite, iogurte, sour cream ou uma mistura de quaisquer deles
  • 4 ovos grandes
  • 2 ½ colh. (sopa) farinha de trigo
  • salsinha picada a gosto ou qualquer outra erva que você goste e que combine com os seus legumes
  • sal a gosto (a receita original dá uma medida exata, mas isso vai depender muito do quanto você salgou seus legumes e de quão salgado é o queijo que está usando - experimente)
  • pimenta do reino a gosto
  • 1 xic. queijo ralado grosso (o que você tiver)
(Legumes)
  • um fio de azeite para refogar os legumes ou um naco de manteiga
  • 1 alho poró grande, ou uma cebola em rodelas ou meias luas finas
  • 2 xic. de milho verde fresco debulhado ou congelado (umas 2-3 espigas)
  • 1 dente de alho picado
  • 1 maço grande de acelga suíça, cortada grosseiramente (ou rasgue com a mão, em pedaços médios, como você rasgaria um pilha de contas vencidas - haha!) ou qualquer outra verdura verde escura que seja mais suave, como espinafre, folhas de mostarda ( se você gosta de amargo, acho que almeirão deve ficar ótimo e eu faria até mesmo com couve, branqueada antes de refogar, talvez, para que fique bem macia.)
Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 190oC. Unte com manteiga * uma forma refratária com capacidade para 2 litros (a minha quadrada tem 20cm e 5cm de altura).  
  2. Numa frigideira, aqueça o azeite ou manteiga ou qualquer gordura que esteja usando e junte a cebola ou alho-poró e uma pitada de sal para que eles liberem um pouco de água e não queimem antes de dourarem.
  3. Quando estiverem brilhantes e macios, junte o alho. Refogue, mexendo com uma colher de pau (sabe por que se pede colher de pau? Pra não riscar sua panela.) até que esteja tudo macio e começando a dourar.
  4. Junte o milho, uma pitada de sal (se quiser, um nadinha de pimenta calabresa fica ótimo), e mexa, recobrindo bem o milho com os temperos.
  5. Junte as verduras cortadas, uma pitada de sal para ajudar a murchá-las, misture, e cozinhe em fogo mais baixo até que as folhas estejam murchas e brilhantes. Cuidado com o fogo para não queimar as cebolas enquanto as folhas murcham por cima (já fiz isso várias vezes). Quando estiver tudo cozido, tire do fogo, experimente, acerte o sal e a pimenta a seu gosto e deixe de lado. 
  6. Numa tigela grande, bata os ovos com um fouet até que espumem um pouco. Junte o creme (ou a mistura que estiver usando) , o leite, e misture. Junte a farinha, misture com o fouet até que ela esteja incorporada, sem pelotas, e então o queijo. Salgue cuidadosamente, pensando em quão salgado é seu queijo. Junte a salsinha e quaisquer outras ervas, pimenta-do-reino e, se quiser, um pouco de noz-moscada ralada na hora, que vai bem com tudo que leva ovo, mas que não é obrigatório. Experimente e corrija o tempero. 
  7. Espalhe os legumes na travessa e cubra com o creme, dando uma cutucada para que o creme escorra por entre os legumes e para que os legumes flutuem um pouco no meio do creme e do queijo. Leve ao forno por 40 minutos, checando de vez em quando, dependendo do tamanho da sua forma. Quando estiver dourado nas bordas e parecer inflado e firme no meio, enfie uma faquinha no centro. Ele vai desinflar, mas a faca deve sair úmida e pegajosa de queijo. Se estiver completamente molhada e pingando, ainda está cru, e se estiver completamente limpa, assou demais - mas ainda vai ser gostoso, então nem comente nada e simplesmente tire do forno e manda o povo sentar pra comer. 
  8. Retire, espere uns cinco minutinhos para não queimar a boca de ninguém, e sirva com uma salada. 

* Um truque que aprendi com a Nigella: guardar os papéis que embrulham a manteiga para esfregar nas formas, assim você não gasta a manteiga para isso. Tenho um saco plástico na geladeira apenas para guardar as embalagens de manteiga até a hora de untar alguma coisa - a louca. 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Agosto e sorvete, sorvete, sorvete

Precisa de receita? Dá para usar qualquer biscoito e qualquer sorvete de baunilha? CLARO QUE DÁ. Mas se tem receita, ótimo, não é?
 O Verão que dava sinais de terminar voltou, contrariando as previsões do tempo. Uma onda de calor varreu Toronto este mês e os dias foram quentes, úmidos, pegajosos, de ar espesso no pulmão e peso nas pernas. Voltam os parques, os Splash Pads, os mergulhos no lago, a grama, a lama, as abelhas, as pedras, os galhos, o pula, salta, escala, escorrega, corre, pega, empurra, anda de bicicleta, voltam os piqueniques, a melancia, o pão de queijo, a toalha no chão, o pé na terra, o livro na mão.

Almoço.
Novamente, lembro dos meus pais, com duas filhas confinadas num apartamento pouco maior que o meu, sem clube, sem playground nas redondezas. Eles me contavam contos de liberdade infantil em suas infâncias soltas na rua, e eu sonhava acordada com a possibilidade de ter aquilo para mim. Lembro do parquinho do prédio, única opção para gastar a energia borbulhante das crianças, e como a cada ano um brinquedo desaparecia, retirado prontamente sempre que uma criança do prédio se machucava. Foi-se a gangorra, foi-se o trepa-trepa, foi-se o gira-gira, foi-se o escorregador. Nenhuma criança no meu prédio tinha uma segunda chance de aprender a não cair. Caiu, perdeu. Para sempre confinada a seu trauma. Num dia de férias, descemos para o parquinho e só restara o tanque de areia. Única opção considerada segura o suficiente para brincar, até o dia em que ele também foi embora, restando apenas um pátio árido com dois bancos, onde velhinhos e babás sentavam-se para conversar e mandavam as crianças pararem de correr e fazer barulho. Não pode correr, não pode gritar, não pode pisar na grama, não pode subir na árvore, não pode jogar bola, não pode andar de bicicleta, só pode ficar em casa, pode ver tv, tv isso pode, que aí a gente fica quieto e não atrapalha ninguém.

Lembro disso todas as vezes que me dá preguiça (preguiça-monstro) de levá-los ao parquinho. Só meia hora, digo a mim mesma. Ás vezes são eles que estão com preguiça. Só meia hora, digo a eles. E é sempre igual. Chegamos, e meia hora vira uma e vira duas, e todo mundo se diverte, e todos voltam relaxados e cansados e temos um jantar calmo depois de um banho gostoso. A gente tem mais fome quando correu a tarde toda, e criança com fome simplesmente senta e come qualquer coisa. Paz e sossego à mesa.

Esse mês que o papai conseguiu chegar mais cedo, pegamos o hábito de jogar algum jogo de tabuleiro ou de cartas antes de ler história e ir dormir. Não todos os dias, depende do horário da janta, mas quando dá, fazemos, que as crianças ficam contentíssimas e nós damos boas risadas. Os maiores sucessos aqui em casa são Zombie Dice, Dungeon Roll, Exploding Kittens, Uno, Trouble (Ludo, no Brasil) e Dominó.

Eles vão dormir e o sol começa a se por num horário mais razoável. Talvez por isso às nove da noite já venha o sono, influenciado pela luz que desaparece lá fora. Os dias longos nos mantiveram despertos e ativos por mais tempo que o que considerávamos normais durante nossos quase quarenta anos no Brasil. Estico as pernas no sofá ao lado de Allex. Afe, quão louca eu sou de ter saudades do Inverno?, pergunto. Não muito, ele responde. Também pensei outro dia como dormi bem durante os meses de frio.
O cão, morrendo de calor, quer ficar na água.
O calor começa a cansar. Aquele cansaço de quem não dorme direito há um mês, o calor de quem não quer andar no sol esturricante até o mercado, o calor de quem sabe que vai terminar o dia varrendo areia da casa toda. Eu que reclamara da lama da neve derretida, não pensara na areia dos parquinhos no verão. O cão já não quer passeios tão longos a não ser que haja um grande suprimento de água ou um lago onde se refrescar. As crianças pedem parquinho na mesma medida em que pedem para ficarem em casa brincando de Lego. Há dias em que arrasto os dois para fora, quando começam a se espezinhar. Vai, gente, meia hora no parquinho, assim vocês param de se provocar e gastam toda essa vontade de se bater (Não seria bom resolver os problemas entre adultos dessa forma? Vou começar a mandar os adultos que me aporrinham darem uma corridinha ou subirem numa árvore por aí.Vai ver que a chatice passa com um pouco de exercício.) 

Mas não é só o calor que cobra pedágio.

Veja bem. Não tenho nem coragem de reclamar desse Verão. Poder deixá-los mais independentes nos parquinhos e simplesmente sentar e colocar a leitura em dia foi uma bênção com a qual sonhei desde que entendi o trampo louco que é ser mãe vinte e quatro horas por dia. O cansaço não vem do preparo dos piqueniques ou das caminhadas de seis quilômetros, da busca por parquinhos ou de ficar ensinando criança a andar de bicicleta sem rodinha. Isso eu realmente gosto e era o que eu queria desses meses. Adoro ficar ao ar livre. Os piqueniques facilitaram minha vida ao não ter de pensar em almoço. Gosto de andar bastante (o exercício faz a MINHA chatice passar) e me dá uma alegria imensa ver esses dois brincando do lado de fora e aprendendo coisas novas. É a parte de ser mãe que eu mais gosto.

Mas aí.. Vem uma dorzinha de cabeça diferente no fim do dia, uma irritaçãozinha chata que parece sem motivo, que você só entende a origem quando, no fim de semana, leva o cão para passear sozinha enquanto as crianças brincam com o pai. Você se dá conta de que está ouvindo os pássaros. E as cigarras. Quando encontra um adulto, tem uma conversa inteira sem interrupções. UAU! O que está faltando? Falta o alto e sonoro MÃAAAAE! que costuma acompanhar as férias todas num ritmo preciso de um relógio suíço: de cinco em cinco minutos, vem a badalada. E os segundos entre uma e outra são preenchidos com...

...aranhas têm cérebros?
...por que os esquilos têm cores diferentes?
...por que não tem grilos no inverno?
...o Thomas me bateu!
...é nada!
...a gente pode ver desenho?
...compra sorvete?
...a Laura me chamou de cocô!
...mas se os grilos dormem, como eles sabem que chegou a primavera?
...mas você trouxe dinheiro pra comprar sorvete?
...por que você não trouxe dinheiro pra comprar sorvete?
...quero água!
...mas se o besouro se enterrou, o que acontece se ele cavar fundo até chegar na lava?
...quero água!
...o Thomas não quer devolver minha espada!
...quero água!
...a gente pode ver desenho?
...deixa eu terminar de falar Thomas!
...eu é que tava falando primeiro!
...tava nada!
...por que o sorvete de ameixa é rosa se a ameixa é azul e amarela?
...a Laura destruiu o robô que eu fiz com o Lego!
...mas o Thomas não quer me emprestar a peça azul!
...a peça azul é do meu robô! Eu vi primeiro!
...é nada!
...não é verdade que chuva é xixi de nuvem?
...claro que não, Laura!
...é sim! Não é, mamãe?
...seu cocô!
...a Laura me chamou de cocô de novo!
...chamei nada!
...se o caminhão de sorvete aparecer você compra sorvete?
...quero água!
...como o Gnocchi aprendeu a nadar?
...a gente pode ver desenho?
...por que só o papai sabe comprar sorvete?
...por que as meninas tiram os pelos das pernas?
...a gente pode ver desenho? 
...e quando a gente chegar em casa, a gente vai poder ver desenho tomando sorvete?

É muito amor pelo cérebro desses dois, mas quando minhas têmporas começam a zumbir é sinal de que mamãe precisa de meia horinha de silêncio. Assim como começo a ansiar por um ventinho frio e um agasalho, uma panela de ragù cozido por três horas e um vinho tinto, também começo a pensar naquelas horinhas em que os pimpolhos estão na escola e posso sair para correr, posso trabalhar sem interrupções, resolver com calma pendências de banco e governo sem precisar arrastar criança junto, que, claro, prossegue com toda a verborragia aí em cima em português enquanto tenho explicar para o funcionário do banco em inglês que meu cartão foi clonado, cancelado, refeito, mas quando refizeram, fizeram no nome do meu marido, e  cancelaram o dele, e quando ele foi refazer o dele, cancelaram o meu de novo, e eu preciso PELAMORDETODOSOSSANTOS de uma droga de um cartão funcionando para poder comprar o macarrão do jantar, P*RRA!

Quando chegam os fins de semana, me escondo um pouquinho. Levo o cão para um passeio longo sozinha. Vou à biblioteca sem pressa apanhar um livro novo. Ofereço-me para ir ao mercado sozinha pegar o que precisamos para que Allex prepare o jantar.

Podemos ir todos juntos, diz ele.

Neh, tá sussa, deixa que eu vou sozinha, respondo. ;)

Deixa a mamãe descansar, pede ele, puxando os dois para brincar, passear, comprar uma pizza pra jantar, tomar um sorvete.

Afinal, papai sabe comprar sorvete. ;)

Cansou. Na falta de um selfie nas mesmas condições, vai o cão mesmo.

Os dias seguem, e começo devagar a eliminar o piquenique. Os almoços são sempre leves, pois saímos logo em seguida para o parque para encontrar os amigos da escola que voltaram de suas viagens e vão sempre ao playground à tarde. 

Torrada com manteiga, queijo e pepinos e salada de tomate e melancia. Um MONTE de sorvete de sobremesa.

Uma omelete com salada verde, uma tartine de algum legume e queijo. Uma das coisas boas do verão são as espigas de milho. Imensas e dulcíssimas, grelhadas até chamuscarem, são almoço acompanhadas de salada. As refeições vão saindo sempre no improviso, pois nunca sei quanto tempo ficarei em casa ou fora, e quando estou de fato em casa às vezes adianto algumas coisas como massas de torta ou feijão, para usar em outro dia. Já duas vezes preparei essa torta de dente de leão do New York Times, mas sem os cogumelos. 

Uma constante em todas as refeições de Agosto tem sido, contudo, o sorvete. Mamãe não sabe comprar sorvete mas sabe FAZER sorvete. Há! :D

Dois dias depois que publiquei o post anterior, minha tia, que mora aqui na América do Norte, escreveu-me dizendo que lera o texto e queria me dar uma sorveteira. E é claro que aceitei o presente. Alguns dias depois, dias longos em que a criançada me perguntou todo santo dia se ela tinha chegado e se eu faria sorvete, a máquina foi entregue na minha casa.

No dia em que ela chegou, no entanto, eu estava fora de casa, resolvendo o pepino de um cartão de débito clonado. Porque sim, tem disso aqui no Canadá. Tem crime no mundo todo, e você nunca deve desligar completamente o paulistano dentro de você. (Tem uma reportagem ótima da Vice sobre clonagem de cartão, ao qual, ironicamente, eu assisti dois dias antes do meu cartão ser bloqueado pelo banco.) Achei que o entregador da Amazon, ao bater na porta e não encontrar ninguém, voltaria outro dia. Quando a mercadoria é entregue pelos correios, o carteiro deixa um aviso na sua porta para que você vá buscar a caixa na agência mais próxima. Mas eu estava do outro lado da cidade, e a caixa estava marcada como entregue pelo próprio funcionário da Amazon.

Passei o resto do dia encafifada, pensando como haviam entregado a sorveteira se não havia ninguém em casa. Talvez minha vizinha da frente tenha recebido, como já aconteceu. Tentei voltar o mais rápido possível para casa, e qual não foi minha surpresa ao encontrar a caixa da Cuisinart, assim, lacrada, foto do produto exposta, totalmente solta e solitária, sem nem um papelzinho pardo em volta, na frente da minha porta.

Prédios canadenses não têm porteiros, e em geral a segurança é bem precária, quando comparada com a justificada paranoia dos prédios paulistanos. Suspirei aliviada por aparentemente ter vizinhos honestos, principalmente depois de ouvir histórias de mercadorias roubadas no prédio. Sim, como disse, aqui também tem disso. Canadá não é essa bolha cor de rosa que a mídia pinta.

Fica a dica, para quem mora aqui e não sabe disso: você pode e deve mandar entregar suas compras nas agências de correio para que você busque quando for conveniente. É mais seguro.

De qualquer forma, a chegada da sorveteira foi uma alegria generalizada aqui em casa. Havia meses que as crianças me pediam para fazer sorvete.

Antes que perguntem, esse é o modelo básico da Cuisinart. Apesar do motor ser trambolhoso em relação àquela que eu tinha da Hamiltom Beach, o balde é maior, gela mais rápido e achei o motor mais potente. Achei ótima e recomendo. O sorvete batendo é o de ameixas (Blue Plums, aqui).
Comecei com um de chocolate. Não sei por que cargas d´água, inventei de fazer de novo aquele primeiro gelato de chocolate do blog, mas usando a receita original, que levava unswetened chocolate. O chocolate talhou na mistura e ficou muito forte. Thomas e eu comemos, mas não foi um sucesso imediato com a famíla toda. Em seguida, claro, veio o sorvete de morango, que é um clássico aqui em casa e sempre foi o mais pedido de todos. Esse sim foi sucesso retumbante e acabou em poucos dias. Nem deu tempo de tirar foto.


Frozen Yogurt de Pêssego e o que sobrou do Sorvete de Morango
Decidi que duramte esses dias de calor aproveitaria para fazer os sorvetes mais simples e refrescantes, de frutas, e que deixaria os pesados, baseados em custards, para quando o tempo começasse a esfriar. (Também porque eu não estava nem um pouco afim de ficar mexendo custard quente dia sim, dia não, nesse calor do inferno.) Peguei na biblioteca a versão nova do livro The Perfect Scoop (já declarei amor eterno à biblioteca de Toronto?) e as crianças me ajudaram a escolher algumas receitas.

Sorbet de Amora Preta e Frozen Yogurt de Pêssego (uma coisa que eu não tenho ainda é uma colher de sorvete. Blog da vida real - aqui o sorvete não é servido em bolas perfeitas. hahaha  Mas a textura dos sorvetes estava excelente, apesar da carinha de bloco de gelo que têm aqui.)
Quero aproveitar o fato de que as frutas da estação aqui não são exorbitantemente caras (apesar de também não serem baratas), como era um saquinho de cerejas ou uma caixa de pêssegos lá em São Paulo. Sempre tinha dó de usar as frutas em doces quando morava no Brasil, e tanto os pimpolhos quanto o marido pareciam gravitar sempre à volta de sorvete de baunilha, enquanto eu era a única que dava conta sozinha de um litro de sorbet de abacaxi. Isso mudou agora que as crianças cresceram, e eles andam empolgados com os sabores diferentes, o que me deu vontade de comprar outra vez o livro do David Lebovitz, que está ainda mais bonito na nova edição.

Dele, fizemos Frozen Yogurt de Pêssego, sorvete de Ameixas frescas, Sorbet de Amora Preta (que ficou parecendo sorvete de açaí, por algum motivo - delicioso! - basta bater no liquidificador 450g de amoras congeladas, 1 xíc. de água, 2/3 xic. de açúcar e 2 colh. (chá) de suco de limão, passar na peneira para tirar as sementes e colocar na sorveteira), sorbet de banana e mirtilos, e eu ainda tenho planos de preparar vários outros sorvetes de frutas sazonais, bem refrescantes.

Então, olhando o livro, as crianças encontraram a foto da contra-capa, com uma pilha de Ice Cream Sandwiches, polvilhados de granulados coloridos. Vieram os dois correndo, o livro em riste nas mãozinhas, pedir POR FAVOR MÃE FAZ ISSO HOJE!!!

Lá fui.

Preparei o sorvete, preparei os chocolate chip cookies, e foi tudo muito fácil. Achei apenas que os cookies espalharam mais do que deviam e ficaram finos. Talvez eu tenha usado pouca farinha, no momento de medir (sempre usei a equivalência de 1 xic de farinha = 125g, mas ele pede 140g. Não sei se é o bastante para fazer diferença, mas enfim,). O resultado é que ficaram grandes, e a camada de sorvete, consequentemente, ficou mais fina. Eu faria os biscoitos com metade do tamanho da próxima vez, pois no fim, acabamos cortando todos ao meio na hora de comer, pois inteiros, eles eram imensos. Aqui em casa gostamos que a sobremesa seja MENOR que o almoço. ;) Mas entendo como esses Ice Cream Sandwiches podem ser considerados uma porção normal norte-americana. Tudo aqui é sempre gigante.

O calor tornou um pouco difícil a montagem. O sorvete começou a derreter enquanto eu cobria as laterais de granulados, e tudo já estava desmilinguindo antes de chegar ao freezer. Acabei colocando todos os sanduíches numa assadeira no freezer até que endurecessem e eu pudesse transferi-los para um pote fechado.

O resultado foi excelente, e não tive um momento de paz ou silêncio até enfim colocar os biscoitos na mesa. Laura reclamou das nozes no biscoito, mas depois comeu e lambeu os dedos. Thomas só ficou triste por a receita render tão pouco: só dois Ice Cream Sandwiches para cada um.

No ritmo que vamos, acho que vai demorar até a novidade do sorvete passar. Há toda uma série de receitas com frutas de outono a serem feitas e mais um punhado de outras que ficarão maravilhosas com bolos e tortas de inverno.

A novidade do Verão em Toronto com certeza passou. Agora que até a brincadeira virou rotina, que o verde e o calor lá fora parecem eternos, resta a espera pelas mudanças por vir. Laura pergunta: Mamãe, falta muito para a neve voltar?

Logo as férias acabam. Falta pouco para as aulas recomeçarem. Já sei mais ou menos o que me espera com Laura no Senior Kindergarten, mas confesso estar empolgada e ansiosa por ver Thomas no Grade 2.

Hoje chove. Acho que o dia todo.

Thomas acordou cedo, seis e meia, olhou para fora enquanto o pai fazia o café, e perguntou: Por que está escuro lá fora?

.....................

Em tempo: OBRIGADA TIAAAAAAAAAA!!! 💓💓💓💓💓💓💓💓

ICE CREAM SANDWICHES
(Do livro The Perfect Scoop, de David Lebovitz)
Rendimento: 8 porções

BISCOITOS
Ingredientes:
  • 115g manteiga sem sal em temp. ambiente
  • 1/4xic. açúcar
  • 1/3xic. açúcar mascavo
  • 1 ovo grande
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1 xic. (140g) farinha de trigo
  • 1/4 colh. (chá) baicarbonato de sódio
  • 1/4 colh. (chá) sal
  • 3/4 xic. chocolate chips
  • 1/2 xic. nozes picadas

Preparo:
  1. Bata a manteiga e os açucares até que fique cremoso. Junte o ovo e a baunilha e bata até incorporar. 
  2. Junte a farinha, bicarbonato e sal e misture apenas até que a farinha desapareça. Incorpore os chips e as nozes. 
  3. Forme um disco largo com a massa, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira por 1 hora. 
  4. Pré-aqueça o forno a 180oC e posicione as grades no terço inferior e superior. Divida a massa em dezesseis partes. Forme bolas com elas e disponha metade delas em cada assadeira. pressione as bolas para formar discos mais finos e leve ao forno por 15 minutos, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento. 
  5. Deixe que esfriem na assadeira por 1 minuto antes de retirar com uma espátula e deixar que esfriem completamente sobre uma grade. 

SORVETE DE BAUNILHA
Ingredientes:
  • 2 xic. creme de leite fresco
  • 1 xic. leite
  • 3/4 xic. açúcar
  • 1 pitada de sal
  • 3/4 colh (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Leve 1 xic. de creme e o açúcar e o sal em uma panela pequena ao fogo médio, mexendo sempre, até que o açúcar dissolva completamente.
  2. Remova do fogo, misture o restante do creme e do leite e o extrato de baunilha. 
  3. Leve à geladeira por algumas horas até ficar bem frio e então coloque na sorveteira. 

MONTAGEM
Simplesmente coloque uma ou duas bolas de sorvete entre dois biscoitos, pressionando ligeiramente. Talvez você não usei todo o sorvete de baunilha. Não tem problema, é a gosto. Se quiser, role as laterais do sanduíche de sorvete em granulados, castanhas picadas ou mini chocolate chips, antes de levar ao freezer. Mantenha-os embrulhados, depois de firmes, em potes fechados, para evitar formação de gelo na superfície do sorvete ou dos cookies.   

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Julho veio, julho foi, o verão que acaba, um bolo mármore.


Minha cunhada, na Noruega, faz sempre a piada: esse ano a gente perdeu o Verão, porque ele caiu numa terça-feira. Aqui em Toronto, apesar de termos tido vários dias de temperaturas altas e sol forte, o Verão, que tanto custou a chegar, parece querer fugir rapidamente. Os dias de 34oC se intercalam com alguns de 17oC, a brisa quente, devagar e úmida foi substituída pelo vento frio que arrasta as nuvens e traz a chuva, e o sol começou a se por a cada dia mais cedo. A noite já não cai às dez da noite, mas às nove, e o coração palpita a essa contagem regressiva, sem querer desperdiçar as últimas oportunidades de aproveitar a estação que se vai.

O dia amanhece cedo. No início, quase antes das cinco da manhã, agora já às seis. Sabendo como são seis meses sem usar a varanda, levo meu cappuccino para fora, para o cheiro da rua e do parque, para o som das gaivotas, dos casais de Cardinal que fizeram ninho no topo do prédio, e da obra intensa logo ao lado, que inicia suas marteladas em horários surreais.

As crianças têm seu tempo de desenhos e video-game enquanto me sento à prancheta e ao computador para trabalhar por um par de horas. Escrevo meu livro, pinto aquarelas, resolvo pepinos. Enquanto isso o forno trabalha: um bolo simples, uma porção de pão-de-queijo da Marina ou aqueles muffins de sempre, adaptados aos ingredientes disponíveis.

Cada vez mais as receitas básicas me atraem. A baunilha, a laranja, os ovos e o creme. Sabores limpos e claros, processos simples, resultados que falam mais ao coração da criança que fui e das crianças que fiz do que ao adulto gourmet que um dia almejei ser.

Desliguem tudo, nada mais de telas, computadores, tvs, celulares, é hora de olhar a janela, hora de ver o dia que se estende lá fora e mergulhar no seu ar quente enquanto ele há. Hora de levar o cão a um passeio longo, sem coleira, a correr por entre seus companheiros caninos, cheirar uns rabos, latir um tanto; mandão, esse cão que lembrou que é pastor desde que pisou em terras canadenses. É hora de subir em pedras, de escalar árvores, cutucar insetos, procurar as últimas amoras que os esquilos e os passarinhos ainda não apanharam.

O retorno à casa é uma parada breve. Banheiro para quem precisa, enquanto monto o piquenique.

Piquenique é sinônimo de Julho. 



O piquenique é o almoço, é o lanche da tarde, tudo num só. É meu atestado de férias, sem hora, sem pressão, sem cobrança. O abandono total e completo daquela expectativa irreal do Piquenique Na Provence de tantos livros de cozinha que eu colecionara ao longo da vida, com quiches e macarons, e saladas, e pães recheados, e louças e talheres em cestas de vime com alças para guardanapos de linho. Essa história linda em livro mas que na realidade é um grilhão do perfeccionismo e da memória fabricada. O que meus filhos querem é estar do lado de fora, é brincar e correr e não sentir fome. Quando mostro a foto do almoço de legumes e restos de waffles, alguém ri: "Mas isso é almoço?!". No verão Canadense, é almoço qualquer petisco que lhe permita ficar o dia todo na grama. Não há tempo de voltar para casa e bater um arroz com feijão. Não há tempo para os deliciosos cochilos de tarde toda após a manhã de praia. O Verão vem sorrateiro e vai embora sem aviso, e o tempo que se passa à mesa e à cama é tempo de Verão perdido.

Apanho um pouco do que saiu do forno e esfriou na bancada, ou mesmo o que restou dos waffles ou panquecas do café da manhã. Se sobrou pão, monto sanduíches, de prosciutto com manteiga e alface, de tahini, abacate e pepino. Se sobraram crepes, recheio de pouco queijo e da sobra da salada de ontem e faço rolinhos refrescantes e fáceis de comer.

Apanho legumes como salsão, cenouras, pepinos, tomatinhos. Junto as frutas que houver: morangos, cerejas, mirtilos, pêssegos, melancia, ameixas amarelas (que noutro dia uso para fazer essa torta deliciosa). Um queijo? Um queijo, em cubos, se houver. Meto os potes, que não são especiais, mas meramente os da escola, e as garrafas de água na mochila, com uma toalha de acampamento, leve e compacta, os trajes de banho dos pimpolhos num saco plástico e um livro para mim. Às vezes vamos à pé, às vezes as crianças vão de bicicleta, às vezes precisamos pegar o metrô. O cão, ainda de coleira, esperando, vai junto sempre.

As crianças decidem a qual parque vamos. A diversão é essa. Num dia, ao Splash Pad, esse complexo de chafarizes gratuitos em vários parques da cidade. Todos os playgrounds têm Wading Pools, piscinas circulares e cônicas, rasas, cuja água é trocada e tratada por funcionários temporários da prefeitura umas três vezes por dia. Todos os playgrounds são diferentes. Alguns parecem castelos medievais de madeira. Alguns são complexas estruturas de metal para crianças se pendurarem das formas mais escalafobéticas. Alguns têm imensos tanques de areia com pás de construção civil e água para enormes diques e canais. Alguns são simples, mas são sempre uma agradável novidade quando encontrados.

Laura quer testar os Monkey Bars de todos os parques da cidade, num ponto em que cria bolhas nas palmas das mãos de tanto se pendurar. As bolhas estouram e viram calos, pois ela não se importa com a dor. Vejo seus músculos se desenvolverem ao longo das férias. Thomas encontra os mesmos amigos em parques diferentes. We go to the best parks, diz uma mãe para mim, depois da terceira vez em que nos encontramos ao acaso.



Quando chegamos, todos querem comer. Arrancamos os sapatos, sentamos na grama e disponho as opções do dia. Peço para que comam bem e com calma antes de sairem correndo. Nunca gostei do hábito que via com frequência no Brasil e continuo vendo aqui, da babá ou da mãe com o saco de biscoito aberto e a criança ao longo de três horas "snacking" enquanto brinca. Ou come, ou brinca. É preciso dar tempo ao corpo para que ele entenda o que está fazendo e se dedicar integralmente a isso. É preciso prestar atenção ao que se faz. Não dá para prestar atenção à subida do trepa-trepa com um sanduíche na mão. Não dá para prestar atenção ao gosto do pêssego quando se está cavando no tanque de areia.

Claro, isso nem sempre funciona. As vezes catam um bolo e saem correndo.

Às vezes eles sentam. Comem sem pressa. Explicam em detalhes seus planos para aquele dia. Vou botar o biquini e brincar na water, mamãe. Vou construir um castelo no sand box para esse galho em forma de dragão destruir. Vou chamar aquele menino para brincar de Grounders, para brincar de Tag, para brincar de Hide And Seek.. Mamãe, I'm going to be a Zombie! Os nomes das brincadeiras já são outros. O inglês se intromete em nossa conversa.

Eles correm para longe. Combinamos que não podem sair da área do Playground. Afago o cão, guardo os potes até a hora do lanche. Olho em volta. Abro meu livro.

Às vezes passam-se cinco horas.

Noutras vezes, passam-se duas, e eles querem procurar um parque diferente. Vamos a dois, três num dia. Vamos ao lago.



Às vezes ficamos no lago.

Às vezes saímos do lago para um parquinho, do parquinho para o lago, do lago para casa.

Às vezes ficamos perto de casa. Noutras andamos seis, sete quilômetros.

Eles correm, escalam, sobem, descem, escorregam, puxam, empurram, constroem, destroem, criam, falam, gritam, andam, contam, conversam, discutem, correm de novo.

Fico impressionada com sua energia. Com seu potencial para a vida. Com o modo como enfrentam seus medos. Como se desafiam. Como conseguem.



Penso nas crianças trancadas em casa. Enlouquecendo pais. Tanta energia prestes a explodir dentro de corpos tão pequenos. Pequenas bombas nucleares. Nos dias em que, preguiçosa, largo os dois em frente à TV, sei que aquela que precede a bronca explosiva é minha culpa. Meia hora de parquinho faz milagres. Seis horas são felicidade plena.

Penso no privilégio que é estar aqui. E em como era estar lá. Do esforço necessário para fazer em São Paulo o que faço aqui. Converso com uma amiga que mora num bairro paulistano com muito relevo e ela conta das dificuldades, do filho não poder andar de bicicleta nas calçadas irregulares, de ter de andar um bocado até encontrar um parquinho, de ter de ficar vigiando a criança o tempo todo, de ter de pegar carro para conhecer um parque diferente. Neide Rigo comenta no Instagram sobre festas em parques, sobre balões amarrados em bancos de praça. Uma pessoa conhecida comenta comigo como acha cafona as bandeirinhas e balões nas árvores, o bolo imenso de aniversário na mesa de concreto. Fico fula. Cafona é teu nariz. Cafona é não usar o espaço público que teu imposto paga. Cafona é a gente ter de morar em condomínio fechado com escolta armada para teu filho ter espaço pra andar de bicicleta. Todo mundo tem direito ou deveria ter direito de usar os parques. De fazer um piquenique sem ser chamado de farofeiro, de fazer um aniversário numa praça. Toda praça deveria ter um playground, todas as calçadas, se fossem apropriadas para cadeiras-de-rodas, seriam também para bicicletinhas de criança. Todo bairro deveria ter uma infinidade de praças e parques. E todas as pessoas deveriam poder sentar na grama e relaxar um pouco no fim de semana.

Meu Verão ficou infinitamente mais fácil aqui. Mas me lembro de que o esforço em São Paulo, ainda assim, valia a pena. Se houvesse um parquinho, parávamos nele. Levávamos sempre piquenique, mesmo que o local de destino fosse abarrotado de opções para comer e beber. Farofeira sim, vai lamber sabão. Pesquisava atividades gratuitas para crianças. Íamos a museus gratuitos e entrávamos em galerias particulares pelo caminho. Qualquer coisa que fosse novidade era excitante e interessante. A mesma prerrogativa do brinquedo, mas aplicada a experiências. Lembro das crianças terem detestado a exposição do Museu da Escultura. Mas adoraram a água que espirrava sob a marquise de concreto: Splash Pad brasileiro. Bicicleta, só dentro do condomínio. Mas quando visitávamos minha mãe, usávamos as pernas. Subíamos a pé até a Paulista para ir ao Trianon, contar quantas aranhas-de-jardim gigantescas encontrávamos entre as árvores até chegar ao parquinho. Parquinho caidinho, sem manutenção, mas o bastante para duas horas de brincadeira entre aquelas árvores de folhas verde-escuras brilhantes de mata atlântica das quais sinto saudades. E íamos ao Masp, e olhávamos a cidade, e caminhar com eles pelo lugar onde cresci era enxergar com olhos novos o que minhas retinas já deixaram de registrar.

O tempo no trânsito era mais difícil. Não havia mesmo nada a se fazer do lado de fora do condomínio, e invariavelmente eu precisava planejar uma ida a São Paulo. Uma hora e meia dentro do carro. E as tardes de Verão acabavam cedo por causa das chuvas. Chuvas que às vezes faziam minha volta para casa se arrastar por três horas.

O medo dos assaltos era difícil. Fecha o vidro, dá a mão, não corre para longe, cuidado com o carro, cuidado com a bicicleta, cuidado com aquele homem, cuidado.

Mas ainda assim, tentávamos. Tentávamos estar do lado de fora. Olhar aquela cidade com a inocência dos meus filhos. Viver ali a vida que eu imaginava em outros lugares. Dois anos antes de imigrar, eu decidira não esperar vir para o Canadá para ter a vida que eu queria ter. Decidira que não ia suspirar de inveja de quem vivia no interior ou em cidades européias. Eu crio o meu mundo. E criei para minha família aquela realidade. Eu queria minha vida tranquila imediatamente, e não num futuro condicionado por uma dezena de variáveis.

Eu já tinha lá o que tenho aqui.

Aqui só ficou mais fácil, pois o ambiente é favorável.

Fecho meu livro e voltamos para casa.

Cheios de areia e terra e grama e lama e suor, as crianças são coagidas a ir para o banho. Penso no jantar. Às vezes penso numa sobremesa. Ambos sempre de improviso. Olho a geladeira. Hoje tem curry. Meu curry sem receita. Refogo cebola e alho e gengibre fresco picados em azeite. Douro junto 1 colh. (chá) de cada especiaria: cominho, coentro e mostarda em grãos; cardamomo, canela, chinese five spice, cúrcuma, todos em pó. Sal, pimenta caiena  e pimenta-do-reino a gosto. Refogo qualquer legume que eu tenha à disposição ou nenhum se não houver. Junto grão-de-bico ou lentilha, com seu caldo. Tomate em lata ou umas colheres de extrato de tomate. Leite de coco. Cozinho até engrossar. Cubro com uma cama de coentro fresco. Acompanha arroz. Se houver pepino, uma raita. Se não houver, uma colherada de iogurte é o que as crianças pedem para amansar a pimenta do curry.



Se o jantar sai rápido, dá tempo de improvisar a sobremesa. Frutas com chantilly batido na hora são frequentes. Morangos e ameixas e figos e cerejas. Nos dias de calor, todos querem sorvete. Não tenho máquina de sorvete e ninguém quer andar até o NoFrills para pegar o sorvete pela metade do preço. Bato manga congelada com uma colherinha de limão no processador. Melhor sorvete de manga do mundo. Bato bananas congeladas com morangos, mel e iogurte. Fica mais molinho, mas agrada a todos. Então tento algumas receitas de No-Churn Ice Cream com leite condensado, como fazia minha avó, que batia uma lata de leite condensado, duas de creme de leite e suco de limão e me dava para comer na varanda da chácara. Aquele limão que um dia respingaria no dorso de minha mão e faria uma mancha marrom sob o sol forte do interior; uma mancha que demoraria trinta anos para sumir quase que completamente.

Preparo ESTA RECEITA com frutas vermelhas congeladas e é um sucesso, ainda que eu sinta mais que os outros o doce agressivo do leite condensado. A versão de limão de minha avó fica muito doce para o meu paladar e o de Laura. Mas descubro que esmigalhar por cima os biscoitos de Tahini da Alice Medrich, ligeiramente salgados, equilibram a sobremesa e dão um gostinho de torta de limão. Por último, tento o de baunilha, de Tessa Kiros, de gemas cruas, leite condensado e creme de leite. Ele me lembra o sorvete de creme da Kibon da minha infância, doce e denso. Bom, mas sinto falta da delicadeza dos sorvetes feitos na máquina. Quem sabe no próximo verão?

Num dia com muitas cerejas, carnudas, rubi, suculentas e saborosas, resolvo fazer um clafoutis. Apanho o livro de Gynette Mathiot, I Know How to Cook, e preparo a receita ipsis literis. Acho estranho que a 1/2 xícara de açúcar de confeiteiro vá toda por cima da sobremesa terminada e não na massa, mas prossigo. Todas as vezes em que embarquei na estranheza daquelas receitas, elas se mostraram deliciosas. Desta vez no entanto, eu tinha uma pulga atrás da orelha e deveria ter dado ouvidos a ela. O Clafoutis ficou denso e com gosto forte de massa crua de panqueca. Não estava ruim. Mas claramente precisava do açúcar ali dentro. 

 Por isso, foi com curiosidade mórbida e desconfiança que resolvi testar um bolo do mesmo livro. Todas as receitas salgadas são ótimas, por mais escalafobéticos que alguns detalhes possam ser. No entanto, eu nunca preparava nenhum doce dele. Era um bolo mármore. Que ao invés de usar cacau em pó na massa de chocolate, usava chocolate ralado e não especificava que tipo de chocolate. Um bolo assado por 1 hora a 120oC. Sim, CENTO E VINTE. Isso não pode estar certo. Ainda assim, me joguei. Arrisquei. E como acontecera com a sopa de peixe engrossada com maionese, e tantas outras receitas esquisitas desse livro, o resultado foi mágico. Foi o melhor bolo mármore que fiz até hoje. A textura é compacta, macia e úmida, algo que vinha perseguindo há anos, uma vez que todos os bolos-mármore que fazia pareciam ligeiramente secos. O sabor do chocolate é intenso e as raspas de limão na massa branca trazem vida ao bolo. Delicioso.

Empolgada com o tal bolo, e tendo apanhado o livro Sweet, de Ottolenghi, na biblioteca, resolvi tentar repetir o sucesso com outra receita estranha. Esse bolo mármore também tem um processo diferente, em que se bate a manteiga amolecida direto na farinha e se mistura os ovos já batidos com o leite. Estava tudo indo bem até a hora de fazer as misturas das duas massas. A massa de café e chocolate levava só duas colheres de chá de cacau, o que achei muito pouco para tingir a massa. E a de cardamomo levava 1 colh e meia de chá de cardamomo, o que me pareceu coisa demais. Resultado, um bolo de textura ok, ligeiramente seco na boca, com ausência de chocolate e excesso de cardamomo, que acabou me lembrando gosto de remédio. As crianças detestaram. "O outro era muito melhor, mamãe."

Mais uma vez, ponto para os clássicos.

E nos clássicos, continuo mergulhada nos italianos. No meu desafio de acabar com toda a despensa antes de comprar mais comida, coisa que geralmente cria pratos um pouco esquizofrênicos, o spaghetti com ragù de lentilhas da Tessa Kiros aparece sempre. Você cozinha as lentilhas com sálvia fresca e alho, sem refogar. E então acrescenta as lentilhas cozidas com algum caldo a um molho de tomates feito de tomates em lata e cebola refogada em azeite. Deixa apurar. Tempera e polvilha com salsinha em abundância. Não apenas é delicioso mas, com um pouco mais de lentilhas, faz um pacote de 450g de spaghetti render mais de seis porções. Afinal. passamos o mês todo com o filho da prima de Allex hospedado em casa, estudando inglês, e eu estava tentando fazer as refeições renderem três porções de adulto, duas de crianças que já comem como adultos e uma extra para o almoço de Allex no trabalho.


 Depois de brincar e ler histórias, às vezes no horário de sempre às vezes mais tarde porque as partidas de Exploding Kittens ou Zombie Dice ou Uno com o pai se estenderam noite adentro, as crianças vão dormir. Elas sabem que estão indo dormir tarde quando o sol já se pôs.


Eu apanho meu livro novamente e vou à varanda, aproveitar aqueles dias em que posso ficar sentada do lado de fora por um longo tempo sem perder a sensação dos dedos.

Sento com Allex e fazemos o balanço dos últimos doze meses. As expectativas que tínhamos, as frustrações, as conquistas. O que melhorou, o que piorou, o que ficou igual.

Dia cinco de Agosto faz um ano que entramos naquele avião com nossas sete malas rumo a uma cidade que eu não conhecia. Já parece distante aquele mês de aflição e aventura na casa velha do AirBnB. A correria enlouquecida do aluguel do apartamento, da compra dos colchões e dos pratos na Ikea e a volta de metrô para casa às dez da noite, crianças dormindo no meu colo. Acordar a primeira vez no apartamento vazio e comer pão com manteiga sentados no chão. Descobrir o caminho para a escola. Descobrir onde comprar verduras e que cara tem o creme de leite. Esperar o PR Card chegar para buscar o cão no Brasil. Ficar doente enquanto marido viaja. Descobrir a neve. O inverno que chega rápido e demora para ir. Patinar no gelo. Descer encostas de trenó. O silêncio da natureza gelada. A alegria das primeiras plantas verdes nascendo numa Primavera fria. Ficar sem ver meus pais por seis meses. Um ano sem tomar café com minha melhor amiga.

Um ano.

Eu queria que esse Verão tivesse aquele mesmo gostinho de quando chegamos aqui. De parques e piqueniques. Eu fizera daquele primeiro verão exatamente o que eu imaginara no Brasil, o que eu tentava produzir em São Paulo, apesar das dificuldades. O Verão chegou de novo e está indo embora. E foi um reviver delicioso daquele Agosto. De parques e piqueniques. Mas sem a correria de achar apartamento, sem a aflição da chegada, sem a desestabilização da ausência de referências. Um Verão de descanso. Merecido. Depois de um ano.





BOLO MÁRMORE "FRANCÊS"
(Do Livro I Know How to Cook, de Gynette Mathiot)
Rendimento: 1 bolo de 21cm.

Ingredientes:
  • 1/2 xic. manteiga sem sal (100g) em temperatura ambiente
  • 1 xic. açúcar
  • 3 ovos, separados
  • 1 2/3xic. farinha
  • 1/3 xic. leite
  • 1 colh. (chá) fermento químico em po
  • 60g chocolate ralado (usei 70%)
  • 1/2 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/2 colh. (chá) raspas de limão (tahiti ou siciliano)

Preparo:
  1. Aqueça o forno a 120oC ou o mais baixo que seu forno tiver. Unte uma forma de bolo inglês com manteiga e polvilhe com farinha, batendo para retirar o excesso.
  2. Bata a manteiga com o açúcar até que fique macia e pálida. Junte as gemas, uma a uma, e misture até que fique homogêneo. 
  3. Misture a farinha e o fermento e uma tigela e reserve.
  4. Junte a farinha em duas partes e o leite, alternadamente. Junte a baunilha.
  5. Bata as claras em neve até obter picos firmes e incorpore à massa. Divida a massa em duas partes iguais. 
  6. Numa das partes, incorpore o chocolate ralado. Na outra, as raspas de limão. 
  7. Coloque colheradas alternadas das duas massas na forma, que deve ter 2/3 de seu volume preenchido. Leve ao forno por 1 hora ou até que esteja dourado e um palito saia limpo ao ser inserido no centro. (No caso de seu forno não assar a 120oC, fique de olho a partir dos 45 minutos. O meu assou em exatamente 1 hora a 120oC.)
  8. Deixe esfriar por 10 minutos antes de desenformar. O bolo fica delicioso ainda um pouco morno e maravilhoso no dia seguinte.

Cozinhe isso também!

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