quinta-feira, 28 de abril de 2016

De uma abóbora, de um churrasco

Uma bruschetta de abóbora feita na grelha. 
Naquele fim de semana de feriado havíamos combinado de relaxar. Marido acenderia mais uma vez a churrasqueira para usarmos o que sobrara de um evento anterior, tomaríamos uma cerveja das nossas, uma Chocolate Stout que dera muito certo, e deixaríamos as crianças brincarem na piscininha de plástico montada no quintal, para aproveitar o que prometiam ser os últimos dias de calor antes de o Outono já bem atrasado emplacar.

Mas o marido, infelizmente, precisou ir a um enterro de um familiar de amigos nossos.

Ele saiu cedo, enquanto eu passeava o cachorro. Laura acelerava no patinete azul pelas ruas, e Thomas parava nos terrenos baldios, colecionando galhos da minha altura como um pequeno caçador buscando fazer uma fogueira para assar um alce inteiro. Seus dedos se esverdeavam com o líquen que esfarelava dos galhos enquanto ele os movimentava, dando vida a cada um deles, seus dragões de combate, com asas imensas, caudas compridas e habilidades as mais variadas.

Voltamos para a casa vazia, sentindo o sol das nove horas já quente sobre os ombros, e tão logo Laura presenteou Gnocchi com um biscoito, Thomas girou sobre os calcanhares e pediu: Vamos ao parquinho!

Fomos. Novamente apanhei meu livro e caminhamos ladeira acima até o parquinho ensolarado, onde outra vez pude chafurdar meus pés na areia sob os balanços e observar a brincadeira silenciosa dos dois enquanto lia sobre aventuras parisienses. Às vezes desviava os olhos das páginas para ver Laura empoleirada no topo de um brinquedo de madeira, testando seus limites. Em outros momentos, largava o livro aberto para empurrá-la no balanço, mais alto, mais alto até ela acreditar que poderia tocar os dedinhos dos pés nos galhos das árvores. Enquanto isso, Thomas continuava mergulhado no mundo dos dragões feitos de galhos que invadem castelos de areia defendidos por pedras que ele colecionara no caminho. Ele erguia a cabeça de seu universo de vez em quando para chamar minha atenção e me fazer assistir a uma batalha épica entre inimigos mortais.

Passou-se uma hora. Ou duas. Ninguém sabe. Eu não tivera notícias do marido, mas acreditava que ele voltaria para o almoço e achei que poderia já deixar tudo preparado.

Voltamos para casa, areia nos pés, nos cabelos, pele quente, como quem volta da praia. Sunguinha e biquini e crianças na piscininha.

Olhei para a churrasqueira. Ela olhou de volta com ares desafiadores. Desde que lera Cooked, do Michael Pollan, em que ele apontava o fato de que churrasco parecia ser universalmente um campo da cozinha relegado aos homens, eu andava com vontade de aprender a pilotar a churrasqueira. Sabe como é. Controladora como sou, não gosto de depender de ninguém, e é da minha natureza gostar de aprender coisas novas.

Allex já me ensinara os macetes uma vez, mas fora aquele meu churrasco supervisionado, eu nunca mais me aventurara realmente sozinha.

Montei uma mesa com algumas castanhas e pepinos fatiados para as crianças, rasguei o saco do carvão e saltei para o precipício.

A churrasqueira foi resistente. Ela parecia não apreciar a configuração de carvão que eu criara e demorou bem uns vinte minutos e umas quatro tentativas para então render-se a minhas mãos femininas e permitir que aquele fogo crepitasse como se deve. Não contive uma pequena dancinha de satsisfação.

Minha dancinha é interrompida por um recado do marido, dizendo que vai ficar por lá dando apoio aos amigos, o que considero apropriado.

Bom...

O fogo está aceso. As crianças estão contentes.

Churrasco de menina, então. ;)

Entrei para apanhar uma cerveja e uma abobrinha em fatias finas e ri de meu reflexo na janela, aquela mulher meio descabelada, de avental florido e pó de carvão tão uniformemente espalhado por meus braços e rosto que eu parecia ter saído de uma mina.

Coloquei as abobrinhas na grelha para testar o fogo. Pois sempre que Allex acende o fogo, é isso que faço: uso as labaredas mais altas para grelhar as abobrinhas, e quando elas estão prontas, o calor está bom para entrarem os primeiros espetos de queijo-coalho.

Alegro-me em ver as fatias verdes ganhando marcas negras no tempo certo, e da grelha elas vão direto para uma tigela com azeite, alho picado, sal, pimenta-do-reino e ervas frescas, para marinarem e absorverem os temperos. Não pretendo servi-las naquele momento. Ao invés disso, elas viram uma conservinha rápida e saborosa que vai direto pra geladeira para compor uma refeição no meio da semana.

Levanto os olhos para ver as crianças correndo em volta da casa com espadas e escudos nas mãos, e levanto a grelha para rearranjar o carvão, criando uma rampa, para ter duas temperaturas distintas. Na parte mais quente, coloco alguns espetinhos de queijo. Na parte mais morna, coloco fatias de abóbora, de mais ou menos 2cm de espessura, para cozinharem lentamente até ficarem negras por fora e desmanchando por dentro.

De repente percebo que as crianças se cansaram do maiô molhado e vejo dois bumbuns branquinhos em contraste com o verde das plantas, enquanto eles quebram galhos do meu pé de manjericão morto para fazerem armadilhas para os dragões de pelúcia. Eventualmente vejo suas mãos de soslaio, roubando as castanhas e os cubinhos de queijo quente e dourado da tábua. Então somem novamente para suas brincadeiras, encenando Chapeuzinho Vermelho, Laura deitada na rede usando meu chapéu de sol e sendo a vovó que vira o lobo, Thomas alternando entre a voz aguda da Chapeuzinho assustada e o tom grave do caçador, de espingarda de plástico e escudo do Capitão América.

Coloco fatias de pão de fermentação natural para esquentarem sobre o fogo, enquanto fatio um tomate. O pães tostam mais do que devem, num momento distraído em que tive de ajudar a pimpolha no banheiro, e então tenho que raspar a parte queimada com a faca antes de esfregar-lhe um dente de alho cortado e cobri-lo com tomate, sal e azeite.

Mesmo queimadinhas, as bruschette desaparecem dos pratos tão logo as coloco na mesa.

E agora é a hora da verdade.

Volto à cozinha para apanhar a linguiça.

Coloco a mão espalmada bem perto da grelha para sentir sua temperatura como faço com a frigideira no fogo. Espeto as linguiças de forma inegavelmente desajeitada, fazendo com que uma delas se rompa. Torço pelo melhor e coloco o espeto na grelha quente.

Sento um pouco no banco ao lado da mesa para roubar o último pedaço de queijo e bebericar minha cerveja. Gnocchi está deitado ao lado dos tijolos quentes da churrasqueira, preguiçosamente esparramado. As crianças tentam acertar as teias das aranhas com folhas, na tentativa de fazê-las grudar. Branquelinhas, de cabelos dourados herdados da parte alemã da família, elas são quase iridescentes sob o sol forte. Observo seus movimentos com calma, o vento fresco balançando as plantas devagar, e fico ouvindo o canto variado do sabiá do campo no telhado do vizinho e o estalar da gordura pingando sobre a brasa quente.

Volto às linguiças, preocupada com o fato de que elas parecem ter ficado prontas mais rápido do que o que levam quando preparadas por outra pessoa. Mas quando abro uma para testar, vejo que estão bem douradas por fora e cozidas por dentro, mas ainda suculentas, não ressecadas. Presenteio o cão com uma pontinha delas e chamo as crianças para comer.

Quando os pimpolhos, enfim vestidos e cansados, se recolhem voluntariamente para um cochilo, Thomas na rede, Laura no sofá, eu volto à churrasqueira com uma última fatia de pão, um pedaço de parmesão e uma latinha de azeite de oliva francês aromatizado com pimenta, presente de minha irmã.

Esquento o pão desta vez com cuidado, apenas para que doure, e nele esfrego um dente de alho, com cuidado para não queimar as pontas dos dedos. Apanho um ramo de sálvia do jardim e repouso sobre a grelha por meio minutinho, só para que o calor chamusque as pontas das folhas e libere seus óleos essenciais. Então pico as folhas. Apanho algumas fatias de abóbora, um purê de um laranja vivo apenas contido em sua forma por uma película enegrecida, e coloco sobre os crostini, onde elas são esmagadas com um garfo sem nenhuma resistência. Sal. Pimenta-do-reino. A sálvia perfumadíssima picada. Raspas delicadas de parmesão. O azeite picante.

Sento-me com os pés apoiados numa cadeirinha verde limão que Thomas trouxera de seu quarto, abro meu livro e dou uma mordida farta na minha bruschetta de abóbora, sentindo a força da sálvia e do azeite apimentado no nariz, a maciez quente e adocicada da abóbora no céu da boca e o pão crocante quebrando sob os dentes com um som alto que poderia espantar os passarinhos. Sinto um alívio imenso por nenhum vizinho ter ligado música naquela tarde e ouço as nuvens se desmanchando sob o vento.

Quando Allex retorna, as crianças ainda estão dormindo, exaustas. Ele vem sentar comigo no quintal sentindo o calor residual da cinzas na churrasqueira e do sol que começa a perder sua força. Há brinquedos e galhos e folhas, e maiôs coloridos e toalhas por toda a parte, testemunhos de um dia bom. Allex ri da minha empreitada, dando algumas dicas para o fogo acender mais rápido da próxima vez, e brincando que agora que eu faço churrasco ele não tem mais nenhuma função na casa. ;)

Eu lhe conto, empolgada, sobre tudo o que as crianças aprontaram e sobre meus planos de usar minhas novas habilidades para produzir um churrasco alla toscana, com outros cortes de carne, muitos legumes e um molho diferente do nosso vinagrete de sempre.

Na noite do dia seguinte, os espólios de meu churrasco de menina, abóbora assada e um pedaço de linguiça que não fora para o fogo, unem-se a tomates e cebolas e fusilli para um prato de pasta con la zucca, de Tessa Kiros, simples de preparo e complexo de gosto, salgado-adocicado, delicioso, reconfortante, devorado sem pressa. As crianças põem a mesa, servem-se de macarrão e queijo, divertem-se em identificar cada componente no prato e de caçar a "carninha" escondida no molho. "Achei mais uma!", dizem.

Tudo vai bem.

Porque faz tempo que não tem uma foto dos pimpolhos no blog. :)

PASTA CON LA ZUCCA
(Do maravilhoso Twelve, de Tessa Kiros)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 3colh.(sopa) azeite
  • 1 cebola média, picada
  • 1 linguiça de cerca de 80g, sem a pele e esmigalhada, ou 80g de pancetta não defumada, picada
  • 300g abóbora, descascada em cubinhos de no máximo 2cm
  • 400g tomate pelado transformado em purê (fresco ou em lata)
  • pimenta calabresa seca à gosto
  • 500g massa curta como penne ou fusilli
  • parmesão ralado na hora para servir


Preparo:

  1. Aqueça o azeite em uma panela e refogue a cebola com uma pitada de sal até que amacie. 
  2. Junte a linguiça ou a pancetta em fogo médio e refogue até que tenha dourado ligeiramente.
  3. Acrescente a abóbora, misturando bem, deixando que ela pegue os temperos. 
  4. Então junte o purê de tomate, a pimenta calabresa, uma pitada de sal e pimenta-do-reino e 750ml (3xic) de água. Leve à fervura branda, abaixe o fogo e deixe apurar por 30-40 minutos, juntando mais água de tiver engrossado demais antes do tempo. Uma boa dica é pegar essa água da panela do macarrão que cozinha, para que o amido dessa água ajude a encorpar o molho.
  5. Enquanto isso, cozinhe o macarrão. O molho não deve ficar muito líquido, e boa parte da abóbora deve ter se desmanchado dentro dele. Misture-o ao macarrão cozido e escorrido com mais um fio de azeite, e sirva com parmesão por cima.  


segunda-feira, 11 de abril de 2016

Grão de bico com pimentões e tomates assados, um celular quase perdido, uma vida que é só minha



Depois de dois meses atordoada com um imprevisto atrás do outro, sem conseguir controlar minha agenda ou seguir com sequer meio planejamento, com idas a hospitais, a dentistas, gripes acachapantes e um sem número de eventos que me deixaram de cabelo em pé, os nervos à flor da pele e um estômago queimando de gastrite nervosa, eu decidi que era hora de simplesmente abrir mão.

Naquela manhã eu disse à mim mesma que eu não me importava mais. Que não me deixaria descontrolar pelos imprevistos da vida, e que deixaria as intempéries virem e irem sem me deixar afetar tanto.

E depois de tudo o que já havia acontecido nos últimos sessenta dias, quando me inclinei para beijar a testa do meu filho na natação e meu celular escorregou da bolsa e mergulhou com um sonoro "BLUMP!" no fundo da piscina, só consegui rir, divertida com o alvoroço das pessoas à minha volta, compadecidas por minha perda e desesperadas em apanhar de volta aquele que costuma ser um enorme pedaço de suas vidas.

Olhando aquele celular embaixo do azul da piscina, borbulhando devagar, surpreendi-me ao sentir alívio. Eu vinha pensando em como era a vida na época em que eu esquecia meu celular desligado o tempo todo – e tomava bronca da família e dos amigos por isso – ou como era quando ele não tinha internet.

Àquela tarde, dirigindo para São Paulo e ouvindo rádio Cultura, uma música de Gabriel Fauré imediatamente me transportou para minha juventude, a época em que eu tocava violino e minha melhor amiga na época, flauta transversal, e tentávamos tocar juntas essa melodia, atrapalhadas, errando o tempo.

E lembrei-me de como eu era, de quem eu era, do que era importante para mim e como aquilo se perdera ao longo do tempo, influenciada pelo que eu julgava se tratar de amadurecimento, mas que na verdade era eu me perdendo no meio das cobranças por uma vida que não era a minha.

Minha única responsabilidade é educar meus filhos para que eles sejam pessoas boas e independentes. E garantir que eles tenham todos os dias um prato de comida à sua frente e um teto sobre suas cabeças. Todo o restante pareciam cobranças por comportamentos que não tinham nada a ver comigo ou com minha visão de mundo. Tudo aquilo que me estressava e fazia meu estômago queimar tinha a ver com o que o mundo esperava de mim e não com o que eu queria de mim mesma.

Eu só preciso ser a artista que eu sou.
Eu só preciso ser a mãe que eu sou.
Eu só preciso ser a pessoa que eu sou.
O tempo é meu.
De ninguém mais.

E aquela música suave retumbando em minha mente. As cobranças são sempre acerca dos resultados. Resultados, resultados... Mas eu sempre fui uma pessoa apaixonada pelos processos. O processo de aprender um instrumento. O processo de aprender um idioma. O processo de transformar uma imagem em uma pintura. O processo de apreender a realidade de um rosto em um desenho. O processo de fazer um pão. A vida lenta envolvida no ofício do artista que pára e observa. A observação de uma paisagem, de folhas ao vento, de músculos contraindo e relaxando no movimento, a observação dos sons à minha volta e da sinfonia que cada ruído individual ajuda a completar.

Eu nunca fui uma pessoa focada em resultado. Quando comento isso com meu marido, ele ri, dizendo que estou atestando o óbvio.

Talvez minha facilidade em girar sobre os calcanhares e mudar de caminho quando bem quero venha disso. E quão difícil é viver numa sociedade voltada para o resultado. Quando você tem que mostrar uma obra pronta que demonstre o resultado do seu estudo, mas não se dá o tempo do estudo porque ele não parece conter a importância do resultado que se pode mostrar. Quando você tem que mostrar através do sucesso dos seus filhos o resultado dos seus esforços de criação, e se sente uma mãe ruim quando seus filhos não têm atestados de que estão em primeiro, de que estão melhores que os outros, de que estão fadados a virar presidente do mundo. Quando sua conta bancária e seu número de seguidores nas redes sociais é seu atestado de uma vida de sucesso, um resultado palpável, mensurável, comparável, e você precisa necessariamente fotografar a si mesmo rindo para ter certeza de que o resultado daquele momento de esforço em se divertir de fato foi diversão.

Todas as vezes que persegui o resultado fui infeliz. Não por não obtê-lo. Mas porque perseguir um resultado é ignorar a fluidez da vida. A vida não é uma série de resultados. Ela é um processo. Estar no processo é estar imerso na vida enquanto ela acontece. Eu não leio livros para terminá-los. Eu gosto de lê-los. Apenas.

Aquela música deliciosa em minha mente me lembrou da época em que eu não me sentia massacrada pelas responsabilidades de gerir o que eu julgava ser uma vida adulta correta e simplesmente me preocupava em estudar violino porque era o que eu amava aprender, descobrir, entender. Eu não queria tocar em uma orquestra. Eu sequer queria tocar para os outros. Era para mim. Era sentir meu cérebro expandir e relaxar toda vez que eu finalmente ENTENDIA aquela melodia. Eu gostava de estudar. Sempre gostei de estudar.

É aquilo que eu mais amo hoje quando estudo desenho e pintura. Quando o tempo pára e eu estou naquela imagem, na resolução daquele problema, completamente mergulhada no processo de compreender como o modo como seguro o lápis afeta a compreensão do peso e da massa daquela figura. Como eu preciso mudar o jeito como enxergo um rosto para poder retratar os pensamentos por trás daqueles olhos. É um processo lento. Exaustivo às vezes. Um caminho de observação e disciplina. Mas que me faz sentir que estou no mundo e que aquele meu tempo está valendo a pena. Estou compreendendo o mundo através daquele desenho. Observando. Sem me preocupar com o resultado do desenho. Se vai ficar bonito ou feio. Certo ou errado. Porque quando me preocupo com o resultado, eu me engesso, eu me preocupo com o certo e o errado, o bonito ou feio, e paro de prestar atenção ao que aquele desenho pede, preocupada em como aquele desenho será julgado.

Se preocupar com o resultado é se preocupar com o que os outros pensam de você. E preocupada com o resultado da criação dos meus filhos, com o resultado dos meus esforços profissionais, com o resultado dos meus esforços em gerir uma agenda complexa e cheia de imprevistos... eu me vi atropelada pelas cobranças. Cobranças que me impediam de relaxar e cuidar da vida que é minha de verdade, cobranças que me impediam de observar com cuidado, cobranças que me impediam de sentar e ler um livro, que me impediam de simplesmente estudar sem me preocupar com quantas obras prontas serão vendidas, cobranças que me faziam enxergar apenas o que eu não estava conseguindo fazer, ao invés de ver tudo o que eu já estava fazendo.

Eu parei de me divertir.

A vida tem que ser divertida. TEM QUE SER. Senão, o que estamos fazendo aqui?

Quando o professor de natação me devolve meu celular encharcado, quase me pego triste em ver que, milagrosamente, ele ainda está funcionando. As pessoas em volta continuam preocupadas com aquele tijolinho de plástico na minha mão. Sorrio, agradeço, enxugo o celular com uma toalha, com preguiça de abri-lo como me recomendam, e enfio o bicho de volta na bolsa.

O celular continuou funcionando enquanto eu comia biscoitos de polvilho e conversava com minha mãe, levantando os olhos às vezes para ver o pimpolho nadando, contente.

No dia seguinte, acordo com a certeza de que terei um dia bom. Passo tempo com minha filha na aula de música da escola, vou tomar um café com as mães da escola sem me preocupar uma eficiência mecânica de quem trabalha em escritório, e dou um pulo no mercado para comprar linguiças para fazê-las assadas com cebolas, pimentões e batatas, aquela receita feita pela terceira ou quarta vez do livro Easy do Bill Granger, um dos que mantive na estante com prazer. O almoço é delicioso e exatamente o que eu queria, acompanhado de suco de maracujá feito na hora. Um almoço de dia de sol, com todos os amarelos e vermelhos vibrando no meu prato.

Basta colocar as linguiças, pimentões fatiados, cunhas finas de cebola, um fio de azeite, sal, pimenta, e um pouco de sementes de erva-doce em uma assadeira e assar em forno médio por 45 minutos ou 1 hora. Tempere com vinagre balsâmico, folhas de manjericão e sirva. Eu costumo colocar batatas em pedaços pequenos, previamente cozidas por uns dez minutos, para cozinhar junto até que dourem. 

Enquanto as crianças cochilam na rede, sovo rapidamente um pão de fermentação natural. Resolvo alguns emails de trabalho. E quando as crianças acordam da soneca, vamos passear de bicicleta. Eles com suas pequeninas, eu com a que peguei emprestada de minha irmã. Delícia andar de bicicleta, isso que eu não fazia desde a infância. O vento no rosto, as crianças apostando corrida e passando voando por sobre as lombadas da rua. Minha mente livre de cobranças e sobre o que eu deveria ou não estar fazendo. Quem gere o meu tempo sou eu.

"Mamãe, quero ir ao parquinho!"

Vamos. Levo um livro. Sento no balanço e de repente me dou conta de que o celular ficou em cima da mesa da sala. Dou de ombros, abro meu livro e leio. Hemingway. Paris é Uma Festa. As crianças sobem e descem pelo escorregador, e pelas escadas de cordas, e fazem castelos de areia, e colecionam pedras e gravetos. Eu leio meu livro, deliciada pela história de uma vida em Paris, numa época calma. De um artista dizendo que escrevia pela manhã e saía para passear à tarde com a esposa. E relatos de caminhadas na montanha, e jantares em bistrôs, e idas às corridas de cavalos, e conversas com outros artistas sobre literatura, e pintura, e escultura, e teatro e o ofício de artista.

Sinto o sol nas minhas costas, esquentando a pele sob a camiseta. Meus dedos dos pés tocam a areia abaixo de mim e se movimentam, empurrando o balanço para frente e para trás, devagar e suavemente. Uma cigarra canta insistente à minha direita. Tão insistente de fato, que mal chega aos meus ouvidos o ruído dos carros na rua ao lado. Sem o celular, não sei que horas são ou há quanto tempo estou ali, a não ser que preste atenção ao tom de amarelo-dourado da luz sobre as páginas do livro ou o modo como as sombras se movimentam e estendem na areia onde as crianças brincam.

A fome indica que é hora de preparar o jantar.

Voltamos para casa e Laura empurra uma cadeira para frente do fogão para me ajudar. Ela mexe o risotto, concentrada, por vinte minutos, enquanto eu pico as vagens e o pimentão amarelo e acrescento caldo ao arroz. Tento ensiná-la a pronunciar o "r" forte do risotto, mas ela ainda tem dificuldade e nos últimos dias tem arrastado seus erres com um forte sotaque do interior que só posso acreditar ter vindo dos amigos e que me diverte horrores.

Enquanto o risotto descansa na panela tampada, deito na rede. Laura pede para ler para ela o seu livrinho de cozinha favorito, aquele de bolos italianos de avós, todo ilustrado. Passo dez minutos lendo em voz alta receitas em italiano, enquanto ela observa a noite caindo, deitada na rede comigo. Thomas está em algum canto passando tempo com o pai que acabou de trabalhar.

Jantamos e as crianças sentam com o pai para ver desenhos japoneses enquanto asso meus pães para o dia seguinte. Elas vão dormir mais tarde que o habitual e capotam sob os lençóis no meio da primeira história que lhes leio.

Abro uma cerveja. Suspiro contente quando deito na rede novamente, sentindo o frescor da noite no rosto e ouvindo o silêncio das aranhas no jardim.

Um dia bom.

Penso num café filosófico que assisti outro dia, sobre a beleza. "Com o que você está alimentando sua mente?", diz ele. Se você só se alimenta de feiúra, você perde a habilidade de ver a beleza sutil da vida. Com o que você está alimentando sua mente? De feiúra do facebook? De idiotices? De música ruim? De cobranças estúpidas?

Apanho meu livro novamente, minha cerveja, meu pedaço de pão quente fresquinho com manteiga. Decidida de me alimentar de beleza em minha vida, decidida a aproveitar os minutos que tenho nessa terra sem me preocupar se acham que sou uma artista assim ou assado, uma mãe desse jeito ou de outro, decidida a enxergar a beleza à minha volta e colecionar em meu peito essas memórias de uma vida boa.

Sinto alívio em ter eliminado o Facebook. Sinto alívio quando esqueço o celular em cima da mesa. Sinto-me feliz ao sentar e ler como lia antes, ao invés de ser sugada para o mundo da internet, da tv, do youtube. Sinto prazer na tentativa de não me cobrar mais por resultados. Prazer em mergulhar tão fundo na observação e no processo, na lentidão da vida de verdade, sem me preocupar se isso vai me trazer mais ou menos dinheiro, mais ou menos sucesso, mais ou menos amigos. Sinto um peso enorme arrancado dos ombros ao ver as coisas vendidas indo embora e meu ambiente ficando mais leve. Sinto-me justamente leve ao preparar novamente, oito anos depois (antes sozinha agora com minha filha me ajudando), aquele mesmo risotto de pimentão amarelo e vagens da Marcellla Hazan, que andava esquecido, soterrado por outros livros.

Fico contente em ver que aqueles "poucos" livros que selecionei para ficarem comigo estão sendo plenamente úteis enfim. Quando tenho grão-de-bico e pimentões para usar no jantar, apanho o livro que ficou do Nigel Slater, que sempre foi meu favorito dele, Notes From the Larder, e faço esses pimentões e tomates assados com grão-de-bico e harissa, deliciosos. Uso de inspiração as verduras e o limão em conserva que ele sugere e preparo uma farofa de couve temperada com suco de limão, deliciosamente amanteigada, e verde, e ácida para contrabalançar a doçura do grão de bico.

Fico feliz em ver a família raspando o prato. Fico feliz em me ver capaz de enfim relaxar e ter dias tranquilos, sem me estressar com minha agenda auto-imposta, sem me destemperar com os imprevistos da vida. Fico feliz em desviar os olhos dos fins para me concentrar nos meios novamente. Em lembrar que eu sou dona do meu tempo e que, estando meus filhos bem, nada mais importa, e eu posso me preocupar em amar minha vida. Fico feliz olhando para um celular debaixo d'água e sabendo que é só um celular, e que talvez perdê-lo ou vislumbrar essa possibilidade fosse a melhor coisa que poderia acontecer.



GRÃO DE BICO COM HARISSA E PIMENTÕES E TOMATES ASSADOS
(livremente adaptado do livro Notes from the Larder, de Nigel Slater)
Rendimento: 4 porções generosas

Ingredientes: 

  • 800g tomates, cortados em seis pedaços
  • 500g pimentões amarelos e vermelhos, cortados em pedaços médios
  • 1/3 xic azeite
  • 3 colh. (sopa) vinagre de vinho tinto (usei de sidra)
  • 1 colh (chá) sementes de cominho
  • 2 latas de 400g grão de bico ou o equivalente em volume de grão de bico cozido em casa
  • 1 colh (chá) harissa (o que eu tenho em casa é em pó – alguns são bem apimentados, então acrescente a gosto)
  • um punhado de manjericão fresco


Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Num refratário grande, coloque os tomates, pimentões, vinagre, azeite, cominho, sal e pimenta. Misture e asse por 50 minutos a 1 hora, at´´que os legumes estejam bem macios e comecem a dourar e chamuscar. 
  2. Junte o grão de bico escorrido e a harissa e volte ao forno por mais uns dez ou quinze minutos, até que o grão de bico esteja quente e o caldo borbulhante. 
  3. Junte o manjericão, acerte o tempero e sirva com arroz, pão ou uma farofa de couve com limão.


Para a farofa, basta refogar alho e cebola em azeite, juntar a couve fatiada bem fininha, com sal e pimenta a gosto e refogar até que a couve murche. Junte uma colherada bem generosa de manteiga e a farinha de mandioca e misture até a farinha dourar. Tempere com suco de limão a gosto.








Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails