terça-feira, 8 de março de 2016

O fim do Facebook e um pão de fermentação natural


É estranha essa sensação de estranhos aprovando uma decisão sua. Uma multidão de estranhos (dentre os quais alguns poucos nomes ou rostos mais ou menos conhecidos) aprovando sua decisão de comer mingau de aveia de manhã cedo. A mesma sensação de quando eu, aos cinco anos, mostrava um desenho para minha mãe e ela dizia que estava lindo e grudava na geladeira com um ímã de propaganda de farmácia que sempre saia voando ao primeiro vento forte na cozinha estreita em forma de corredor.

A mesma sensação de quando uma pessoa olha um quadro meu, um desenho feito aos meus quase quarenta anos, diz que está lindo, paga, leva para casa e bota na parede.

Eu pinto para mim, porque eu amo, porque eu preciso, porque o processo da transformação da tinta em imagem me fascina como fascina a transformação do meu cérebro quando eu aprendo um idioma, quando entendo um conceito novo, quando aperfeiçôo uma receita, quando resolvo uma birra infantil sem sair do sério, quando consigo saltar um buraco que antes me apavorava saltar.

Desenhei a vida toda mesmo antes de pensar em viver disso.

Para mim. Desenhei o que eu gostava e o que eu imaginava.

Mas a sensação infantil da aprovação que vem com a venda de uma obra é emocionante, é viciante, é fascinante.

E é uma versão infinitamente mais complexa e mais satisfatória do que a sensação de aprovação por eu ter fotografado meu iogurte.

Esses últimos meses de atividade no facebook foram um aprendizado. Primeiro, eles corroboraram com minha preguiça de escrever no blog, porque eu andava de fato sem ideias para textos, focando minha energia criativa em outras áreas da vida e sempre em dúvida se aquela receita era especial o bastante para ser publicada, uma vez que há hoje em dia mais receitas na internet do que gente que de fato cozinha.

É fácil postar no facebook. Não preciso baixar fotos da câmera, tratar, não preciso criar, escrever, revisar e revisar e revisar textos imensos.

Mas também é chato. Porque não consigo criar e escrever textos imensos. Que, mais do que qualquer receita, foi sempre o que me manteve nesse espaço, mesmo tendo por tantas vezes prometido parar com os posts. Eu gosto de escrever. Quase tanto quanto gosto de pintar.

E então o ato de fotografar meu mingau e postar meio parágrafo de receita apenas para mostrar uma rotina culinária virtuosa começou a me parecer frívolo, auto-indulgente e terminantemente inútil. Eu tentei me convencer de que aquilo inspiraria outras pessoas a se alimentarem melhor, mas a verdade é que eu só estava viciada nos comentários de apoio e nos likes.

Eu que sempre odiei facebook caí em sua rede feito um peixe atordoado.

Tentei me convencer de que eu precisava me manter no facebook pelo meu trabalho. Eu preciso ficar conhecida, diziam meus amigos. Mas conhecida pelo quê? Tanta gente no facebook que segue a página mas nunca leu o blog sequer sabe o que faço para viver. Quando as pessoas se referem a mim como "La Cucinetta" eu percebo que essa estratégia visualizada pelos meus colegas de trabalho saiu pela culatra. Quem me conhece por Ana Elisa veio do blog e conhece meu trabalho, e essas pessoas não precisam da interface do facebook, porque elas desenvolveram comigo um relacionamento através do blog pelos últimos dez anos. E isso é bem mais agradável. (Em tempo, não estou desmerecendo quem me conheceu através do facebook e nunca foi nada além de educado e agradável, mas apenas reitero minha preferência por uma interação mais pessoal.)

Os videos, exclusivamente sobre o meu trabalho, têm esse gostinho do blog. Essa sensação mais pessoal e mais criativa, que a linha de produção estéril e histérica de conteúdo no facebook  não tem.

Eu caí na pegadinha do facebook numa época em que meus amigos pararam de usar email fora do ambiente de trabalho e antes do wasapp surgir. Fora do facebook, perdi contato com muita gente, perdi eventos, e era difícil convidar as pessoas para o aniversário dos meus filhos. Entrei porque resolvi dar o braço a torcer e não ser tão retrógrada, tão resistente a mudanças. Com medo de não entender mais a tecnologia quando chegasse a vez dos meus filhos se enveredarem por ela.

Pareceu inofensivo no começo.

Então vi meu dia ser engolido pela torrente de informações inúteis na minha timeline. E descobri que você gasta um tempo brutal preocupado com a opinião de gente que não sabe nem onde você mora. E você fica irritado com discussões infrutíferas que você jamais teria na vida real com alguém que é de fato seu amigo. E você entende que na internet, muita gente que você admirava na verdade é um tremendo babaca. E você vê que convidar pro aniversário do seu filho via facebook é prático, mas clicar "eu vou" é tão fácil quanto esquecer de ir, e que a informalidade e a distância da internet só dá mais margem para a falta de respeito e de educação do ser humano.

Facebook consumiu meu tempo e meu bom humor. Acabou com minha paciência e com boa parte da minha fé na humanidade. Não é a toa que as pessoas mais tranquilas que conheço são aquelas que não tem conta em redes sociais.

Sinto há tempos uma necessidade de me fechar em mim mesma e no meu mundo, e encerrar meus conflitos e minhas opiniões em meu peito por tempo o bastante para que elas borbulhem para fora em forma de arte e pensamento construtivo, ao invés de serem cuspidas em fotos insignificantes e anedotas esquecíveis.

Da mesma forma que compreendi que não é a vida urbana que me repele, mas especificamente São Paulo, entendi que não é a vida online que repudio, é especificamente o Facebook e similares formas de ostentação de vidas forjadas.

Dá pra ver que muita coisa anda mudando dentro de mim. Essa busca incessante por um jeito meu definitivo de cozinhar, essa busca por uma forma mais saudável de me olhar no espelho, essa busca por um meio mais tranquilo de criar meus filhos, a busca por ter menos tralha, a busca por um lugar bom para morar, a busca por um bom modo de trabalhar e viver do meu trabalho, a busca por uma forma mais lúcida de me relacionar com o mundo digital. E isso envolve muitas idas e vindas, muitas decisões e arrependimentos, muitas tentativas e erros.

Talvez sejam os quarenta anos se aproximando. Fiquei em choque outro dia quando meu marido me lembrou de que eu faria 37 esse ano. Mas isso é assunto para outro post.

Eu entendo que as pessoas às vezes fiquem irritadas com minha volubilidade.

Eu mudo porque eu tento. Tentanto, eu experimento, e experimentando eu descubro o que funciona e o que não funciona para mim e para o momento que estou vivendo.

Facebook não funciona. Uma ferramenta que me parece boa porque corrobora com minha preguiça jamais será boa. Uma decisão que você tome baseada em preguiça jamais será a certa.

Estou encerrando todas as minhas contas no Facebook. Havia tempos já que mantinha minha conta pessoal tão somente por questões burocráticas: sou obrigada a ter uma conta pessoal para manter uma página profissional. Mas vinham meus amigos me perguntarem se eu havia visto isso ou aquilo na minha timeline, que eles haviam "me marcado", e eu só podia responder com um olhar curioso de quem não faz a mais pura ideia do que o outro está falando.

A profissional eu simplesmente não consigo me forçar a alimentar. O canal não me seduz. Mas sua existência me fez abandonar o blog onde eu descrevia minhas experiências e meus processos, e acho que isso foi uma perda. Quero voltar a alimentar o blog profissional com ilustrações e processos, pois ali as pessoas têm de fato acesso a todo o acervo do meu trabalho, ao contrário do facebook, onde não se consegue fazer uma busca decente de conteúdo e onde as informações são filtradas por algoritmos que decidem quem vai ver o quê baseado em quanto eu paguei ou deixei de pagar para a plataforma.

Mantenho o Pinterest (AnaElisaGaiarsaGranziera), que achei uma ferramenta agradável e útil para compilar conteúdo que me deixa de bom humor, e é um lugar bom para vocês verem que outras coisas eu preparei e gostei e que não vieram parar no blog.

Mantenho meu canal de trabalho no you tube (Ana Elisa Gaiarsa Granziera, ou Desenhoquê),  onde venho tentando explicar o que é de fato o meu trabalho. Volto logo com videos, assim que a vida se estabilizar, pois assim que voltei de férias durante o carnaval, marido teve apendicite, depois complicações, os horários das crianças mudaram... enfim. A vida acontece. Até o fim da semana tem video novo, e pretendo criar uma newsletter decente para quem se interessar em receber notícias a respeito de meu trabalho, como exposições, vendas, material novo.

Mantenho meu portfólio profissional (www.anaelisagranziera.com) e o blog de ilustração (www.anegg.com.br), que anda desatualizado pra burro, justamente porque fiquei jogando tudo no facebook, esse lugar onde a informação se perde e se inutiliza.

E aparentemente volto para esse blog em intervalos esparsos. Quando um conflito interno borbulhar em forma de texto.

Agradeço a quem apoiou as páginas do facebook até hoje. Peço desculpas pelo abandono. Agradeço quem continuou com o blog mesmo com ele às moscas. Talvez seja seu pensamento positivo insistente que me faça retornar sempre. Com certeza é esse relacionamento à distância, mas caloroso, que me faz ficar.

Os textos são mais longos, o "like" quase nunca é certo. Mas é como um pão de fermentação natural. É lento. É trabalhoso. Nem sempre dá certo. Mas o gosto que fica na boca é melhor. O prazer é mais duradouro. O aprendizado é garantido, mesmo quando não dá certo.

Eu nunca havia colocado receita de fermento natural no blog. Então aqui vai. Porque no fim, não é um bicho de sete cabeças. Mais do que técnica, exige intuição e atenção e sentidos apurados. Tudo aquilo que a interação fast food das redes sociais arranca de nossa experiência humana.

FERMENTO NATURAL
(do livro How to Bake, do Paul Hollywood)

Ingredientes:

  • 500g de farinha (+250g para cada alimentação) - de preferência orgânica, pois tem mais nutrientes para as bactérias; já fiz teste com a comum e não vai tão bem
  • 1 maçã orgânica pequena (precisa ser orgânica - você quer as bactérias na casca, não precisa nem lavar)
  • 360ml de água (morna se o dia estiver abaixo de 21ºC, temp. ambiente se estiver por volta de 24ºC e se gelada se estiver perto dos 30ºC ou superior)


Preparo:

  1. Rale a maçã com casca, apenas descartando o miolo. Misture aos 500g de farinha e à água até ficar mais ou menos homogêneo. (A minha farinha branca tinha acabado e usei uns 100g de farinha de centeio com sucesso.) A consistência que você quer é de mingau de aveia grosso. Ajuste a água se julgar necessário. Coloque a mistura num pote de vidro grande, tampe e deixe em temperatura ambiente por 3 dias. 
  2. Depois desse tempo, a mistura deve ter um cheiro adocicado como sidra e talvez escureça um pouco. Pode ter bolhas e até ter crescido. Descarte metade da mistura e alimente novamente com 250g de farinha e 170ml de água, ou o que for preciso para retornar a massa àquela consistência do primeiro dia (a massa tende a ficar mais líquida conforme o tempo passa.) Tampe novamente e deixe por mais 2 dias. 
  3. Depois desse tempo, a massa deve estar bem ativa, com muitas bolhas pequenas. Se nada estiver acontecendo, veja a lateral do pote, se há marcas de que a mistura cresceu e desinflou. Se isso aconteceu, está ativo. Se houver líquido sobre a massa, está ativo demais e o fermento já comeu tudo o que tinha: descarte o líquido, metade da massa e realimente, deixando por mais um dia. 
  4. Quando estiver pronto para fazer seu pão, descarte metade da mistura (ou, na verdade, guarde em outro pote para manter seu fermento, na geladeira, realimentando uma vez por semana), e misture 250g de farinha e água o bastante para criar uma massa bem molenga. (Você vai usar essa mistura toda para o pão, por isso guarde aquela parte que descartou para continuar com seu fermento.) Deixe por 24h.
  5. Quando a massa começar a borbulhar dentro desse tempo, está pronta para ser usada. Idealmente, ela deve estar grossa como massa para panqueca e borbulhante. Se não estiver, alimente outra vez e deixe por 2 dias. O tempo que seu fermento demora para amadurecer varia muito, dependendo dos ingredientes e do ambiente. Tenha paciência. 


PÃO SOURDOUGH BÁSICO
Rendiemento: 2 pães
Tempo de preparo: um montão.

Ingredientes:

  • 750g farinha de trigo orgânica
  • 500g fermento natural
  • 15g sal
  • 350-450ml de água (morna, temp. amb., ou fria/gelada, dependendo da temperatura do dia)


Preparo:

  1. Misture a farinha, fermento e sal em uma tigela grande. Junte 350ml de água aos poucos, misturando com as mãos e adicionando mais água se necessário, até formar uma massa macia e grosseira, e conseguir "limpar" a farinha da tigela. 
  2. Unte a bancada com óleo, despeje a massa e sove por 5-10 minutos, até a massa ficar macia e formar uma superfície lisa. A massa não deve ficar excessivamente grudenta nem chegar a ser seca. 
  3. Quando a massa estiver uniforme e sedosa, coloque em uma tigela untada, cubra com filme plástico e deixe em temperatura ambiente (algo entre 15-25ºC) por 5 horas ou até que pelo menos dobre de tamanho. 
  4. Prepare duas tigelas iguais para fermentar o pão, forrando com panos de linho (que não grudam na massa como panos de prato) e polvilhando com bastante farinha. 
  5. Sove a massa por alguns segundos, forme duas bolas iguais e coloque de cabeça para baixo as tigelas forradas e enfarinhadas. Polvilhe com mais farinha e embale as tigelas em sacos plásticos fechados, para não deixar a umidade escapar. Deixe em temperatura ambiente (entre 22-24ºC) por 10-13 horas. (Se o dia estiver muito quente e a massa estiver fermentando rápido demais, coloque na gaveta de legumes da geladeira por algumas horas.) A massa está pronta quando tiver pelo menos dobrado de tamanho e, ao pressionar seu dedo, a superfície volte ao normal devagar. Se a superfície estiver enrugada, passou do ponto. Retire da tigela, tente "espanar" o excesso de farinha, sove por alguns segundos, formando a bola novamente e deixe fermentar por mais 5-6 horas até dobrar de tamanho. 
  6. Para assar você tem duas opções. A opção do livro é de pré-aquecer o forno a 200ºC e forrar duas assadeiras com silpats. Inverta as tigelas nas assadeiras, retirando o pano, faça um corte na superfície do pão e leve ao forno um por vez por 30-40 minutos, até que doure e emita um som oco ao bater os nós dos dedos na parte de baixo. Minha opção é pré-aquecer o forno no máximo com uma panela de ferro dentro por meia hora, inverter o pão lá dentro, fechar a tampa e assar por 30 minutos e depois mais 15 sem a tampa. Isso sempre me dá uma crosta mais crocante e mais dourada, mas suspeito que seja por conta de defeitos no meu forno que isso não aconteça de outra forma. Fica a critério do freguês. 


Esse pão fica deliciosamente azedinho. Eu tinha parado de fazer sourdough, engolida pela preguiça e alguns resultados ruins, mas fiquei louca de vontade de novo depois de assistir à série Cooked, na Netflix.

Mesmo que seu sourdough não dê muito certo da primeira vez, fique achatado, sem cor, denso, o que for: ele ainda renderá excelentes torradas ou croûtons, melhores do que qualquer uma que você já tenha comido. Se nem isso, pelo menos excelente farinha de rosca. ;) Vale a tentativa.

Até o fim da semana devo encerrar o facebook. Então se você quiser algo que sabe que está lá, tem tempo de dar uma última fuçada. ;)


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Da simplicidade de uma sopa e do surto histérico da quinoa


Uma amiga era dona de um café. Ela usava apenas ingredientes orgânicos e frescos para produzir seus pães de fermentação natural e seus bolos. Bolos de limão, de chocolate, de cenoura. Um dia, uma cliente lhe pergunta se ela não poderia fazer um bolo, assim, mais natural: integral, sem glúten, sem açúcar, sem gordura. Ela respondeu que seus bolos já eram naturais. E que o de banana era feito com farinha integral, se ela fizesse mesmo questão disso. O assunto morreu ali. Ela andava cansada de gente perguntando se não havia pão sem glúten no cardápio, ao mesmo tempo que se revoltavam por ela não vender refrigerante. Cadê minha coca zero? Mas eu quero pão sem glúten e cappuccino sem lactose. Ela sabia que ninguém ali era alérgico, celíaco ou intolerante. Só louco e chato mesmo.

Eu achei divertido experimentar com alternativas vegan ou sem glúten para facilitar minha vida e variar um pouco. Quando acaba o ovo, sei que ainda consigo fazer panquecas usando chia e água. Ou posso fazer meus bolinhos de lentilha usando inhame para dar liga. Quando estou sem farinha de trigo, ainda consigo fazer crêpes para o almoço, ou uma massa de torta, sem ter que encaixar uma ida ao supermercado num dia já suficientemente corrido. Quando todo mundo se refestelou muito de bolo de chocolate numa semana, acho prudente fazer quitutes sem açúcar adicionado na semana seguinte. É prático, é gostoso, mas a neurose para por aí, porque eu adoro fazer um belo lombo de porco com batatas assadas de vez em quando, meu risotto de legumes sempre vira supplì, devidamente frito como se deve, meus filhos adoram quando faço um bom e velho sorvete de chocolate, e eu amo finalizar uma refeição leve com uma fatia de algum queijo forte, no melhor estilo franco-italiano.

Se por um lado de início me encantei com alguns sites ou programas de youtube naturebas, porque adoro descobrir essas alternativas ou pelo simples fato de amar verduras e legumes, por outro, comecei a ficar um bocado incomodada com a abordagem reducionista do que essas pessoas consideram uma "alimentação natural" – apesar de continuar gostando dos sites e programas.

Grosso modo, vejo uma alimentação natural como você prover seu corpo com comida pouco ou nada processada, que tenha sido produzida de modo a gerar a menor quantidade de impacto negativo no seu ambiente e na sua comunidade (o que quer dizer orgânica, biodinâmica, caipira, fair trade, local, etc.). Se é azeite ou óleo de coco, se é cevadinha ou painço, se é abobrinha ou uma galinha criada feliz e saltitante... realmente tanto faz.

Acho que todo mundo que envereda para uma comida natural acaba caindo na boa e velha cestinha de óleo de coco, quinoa, abacate, couve e batata-doce. Mas pare e pense bem: uma pessoa que more na Inglaterra ou na Suécia e pretenda se alimentar quase que exclusivamente desses alimentos, pode estar super bem nutrido e pagando de hippie ambientalista, mas a verdade é que quase todos esses alimentos são produzidos do outro lado do mundo e transportados até seu mercadinho natural gastando um absurdo de combustível e embalagens. Isso não é lá muito natural, vai dizer... ¬_¬

Pare e pense na quinoa. No modo como os pequenos produtores andinos estão perdendo espaço para grandes produções de quinoa para abastecer o resto do mundo com sua fome de "super foods". Procure. Há várias reportagens a respeito.

Quanto óleo de coco um país tropical subdesenvolvido consegue produzir para que todas as novaiorquinas zero-waste possam produzir seu próprio desodorante?

Complicado.

Podemos até mesmo deixar a esfera do mundo natureba. Lembro-me de uma reportagem antiga numa revista Gourmet que mostrava a verdade sobre a produção dos tomates pelados enlatados. Que mesmo que fossem pelados e enlatados na Itália (o que lhes garante o texto: "produzido na Itália"), os tomates na verdade vinham do norte da África e várias outras localidades, em que produtores eram mal pagos pela indústria e trabalhadores eram explorados de formas vergonhosas. Apenas para que o mundo todo possa se sentir virtuoso abrindo uma lata de tomates pelados italianos para produzir seu molho.

Há outros textos ainda que dizem que é impossível abastecer o mundo todo de azeite de oliva extra-virgem, e que por isso a maior parte das marcas de azeite extra-virgem não é sequer virgem e muitas vezes sequer 100% azeite de oliva.

Num mundo ideal em que todas as cidades são abastecidas por um cinturão verde de agricultores responsáveis, nós teríamos uma alimentação natural de produtos nativos e locais. Uma inglesa natureba comeria comida pouco processada usando ingredientes comuns à sua cultura culinária, deixando o ingrediente exótico para uma ocasião especial.

Mas sabemos que isso é impossível. Tendo já visitado cidades brasileiras cercadas por centenas de quilômetros de monoculturas de vegetais destinados a se transformarem exclusivamente em combustível ou produtos alimentícios altamente processados (cana-de-açúcar, milho e soja), sei bem a cara que têm os mercados desses lugares: comida extremamente processada que veio de longe e meia dúzia de frutas e verduras que viajaram mal por tempo demais e longas distâncias, atravessando aquele deserto verde que deveria ser ocupado por agricultura familiar orgânica para abastecer de comida fresca e verdadeira aquela cidadezinha ali no meio.

Mas largando a política um pouco, porque, afinal, eu continuo comprando macarrão italiano e azeite português...

As pessoas parecem ter entrado nessa paranóia de que comida saudável só é saudável se for quinoa com couve e batata-doce, e pior, demonizando ingredientes maravilhosos como o trigo, com todos os seus nutrientes e sua versatilidade, além de sua abundante contribuição para as culturas culinárias do mundo todo.

Peguei um bode particular da onda do sem-glúten depois que li um estudo dizendo que o consumo de macarrão na Itália anda caindo vertiginosamente por conta disso. Se isso não te deixa com raiva, saiba que eu fico furiosa.

Noutro dia meu filho pediu peixe frito. "Eu aaaaaaamo peixe frito." Às vezes ele cisma de forma adorável com algum alimento específico, mesmo nunca tendo provado. O que faz com que ele me peça coisas estranhas como uma sopa de amendoim ou uma panqueca de atum. "Eu aaaaaaamo panqueca de atum."

Mas sendo quem eu sou, não resisti a fazer-lhe essa vontade e comprei peixe fresco. Envolvi os filés cortados ao meio em uma massa de farinha, ovo e cerveja de boa qualidade, como nos famosos Fish & Chips e fritei-os lindamente. Servi com um purê de batatas e ervilhas delicioso. Tudo fresco, tudo orgânico, tudo natural, local e sustentável. Família amou, Thomas ficou contentíssimo, e eu fiquei pensando nisso: olha só, comida boa e de verdade, e sem quinoa, sem couve e sem batata-doce.

Ri silenciosamente dessa constatação.

É tão fácil entrar na neurose que seu prato tem que sempre ter aquela cara de "tigela de quarenta e três ingredientes" (eu adoro tigelas de quarenta e três ingredienres), e que se não tiver linhaça no meio você não está sendo bem nutrido (e eu adoro linhaça)... que eu tenho intercalado a compra de arroz integral e arroz branco simplesmente pelo prazer de me lembrar que peixe frito com purê de batata também é comida de verdade.

Usei uma abóbora inteira, ainda que pequena, para preparar essa sopa, que, como sempre, sendo do livro da Ginette Mathiot, surpreendeu-me por ser tão ridiculamente simples e ao mesmo tempo tão fantasticamente deliciosa. Tanto, que até o marido que continua não gostando de abóbora repetiu.

E veja só. Ela usa um só legume. E é maravilhosamente natural. E saudável, e orgânica, e todos os outros adjetivos que hoje em dia precisamos incorporar ao nosso prato para nos sentirmos bons e virtuosos. E é amanteigada sem ser cheia de manteiga, e saborosa como se tivesse quarenta e três ingredientes, e suave e cremosa e com gosto de comida que você come quando quer um abraço. Para melhorar, ela ainda é francesa. O que nos coloca sempre na posição obrigatória de terminar a refeição com uma fatia de algum queijo forte e um suspiro de satisfação.

SOPA DE ABÓBORA
(Do sempre excelente I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)
Tempo de preparo: 30 minutos + 15 de preparo
Rendimento: 6 porções generosas.

Ingredientes:

  • 1,6kg de abóbora (de preferência Kabocha), descascada, sem sementes e cortada em cubos (uma abóbora inteira de cerca de 2kg)
  • 2-4 xic. leite *
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga
  • sal e pimenta
  • croûtons caseiros (pão amanhecido, cortado em cubos e dourado em azeite e um dente de alho inteiro)


Preparo:

  1. Coloque a abóbora em uma panela grande e cubra com 4-6xic, de água. Leve à fervura, reduza o fogo e cozinhe por 25 minutos sem tampa, até que fique macia. 
  2. Bata num processador ou liquidificador até que fique cremosa. Retorne à panela, junte o leite até obter a consistência que você prefere na sopa, tempere com sal e pimenta e cozinhe por mais 5 minutos.
  3. Coloque a manteiga e os croûtons na sopeira (ou divida entre os pratos), derrame a sopa sobre eles e sirva imediatamente. 
* Observação: eu usei a quantidade menor de água para cozinhar, pois não queria uma sopa líquida demais e achei que seria mais fácil afinar uma sopa grossa na hora de incorporar o leite do que engrossá-la novamente, por razões óbvias. Também acabei não usando todo o leite. 










Cozinhe isso também!

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