segunda-feira, 28 de março de 2016

Cortando os excessos, eliminando desperdícios, fazendo bolo de radicchio



Acreditava que meu ano começaria normalmente após o carnaval, como o da maioria dos brasileiros, mas o que aconteceu nos últimos dois meses, imprevistos grandes e pequenos e variados, foi como ter diferentes tipos de terremotos abalando a estrutura de minha casa. E, ainda dentro dessa imagem, esses abalos romperam canos que a partir de então deixaram escoar água num fluxo constante mas não tão evidente, de modo que quando me dei conta, a caixa d'água estava vazia.

Uso essa figura de linguagem pois uma vez, tendo vazamentos em minha casa – esses de verdade –uma grande amiga me disse: "cuide logo desses vazamentos, Ana, eles não apenas são dinheiro indo embora, mas também energia".

Isso ficou em minha mente por muito tempo, mas só recentemente a metáfora ficou clara.

Nesses dias em que as coisas ruins parecem drenar tanto minha energia que não sobra nada para aquilo que é bom, perdi muito tempo tentando me ater a atividades que costumavam me restabelecer e energizar. Mas ao invés de me sentir revigorada, percebia-me com a sensação de sobrecarga.

Então a voz dela ressoou em meus ouvidos: cuide dos vazamentos. Não me adiantava de nada tentar gerar mais energia se ela estava simplesmente indo embora para o lugar errado.

Uma luz tênue iluminou todo o ambiente e de repente vislumbrei as pequenas rachaduras por onde aquela água fluía, livre, para longe de mim. Ficou claro o modo como minha energia escapava para lugares que não me retornavam coisa nenhuma, que não me revigoravam, e que eventualmente me arrastavam para situações opostas ao que eu desejava para mim e minha família.

Evidentemente é mais fácil começar por vazamentos tangíveis. Aqueles mais controláveis. Eliminar o facebook e toda espécie de interação digital que não me faça bem. Ou rearranjar os horários das crianças para ser mais eficiente e não desperdiçar tanto tempo indo e vindo dos compromissos. Ou reduzir meu armário para não cair na pegadinha de sair todo dia como um deprimente saco de batata ou perder tempo escolhendo uma coisa melhor pra vestir – tudo combina com tudo e está visualmente ok, e sobra tempo para passar um rímel e tomar mais um café.

Mas comecei a perceber energia indo embora de outras formas. Em forma de objetos. Coisas. Porque quando você tem coisas, precisa de coisas para guardar as coisas, e precisa de coisas para limpar as coisas, e precisa de coisas para consertar as coisas e então mais coisas para substituir as coisas que quebraram mas que você não consegue jogar fora e então mais coisas para organizar essas coisas dentro das coisas.

Coisas ocupam espaço e acumulam pó e exigem tempo e trabalho para manutenção. E se você NÃO precisa dessas coisas, então está desperdiçando espaço, tempo e energia mantendo elas ali.

Coisas também são envoltas em frustrações e expectativas. Aquela coisa que você guardou para uma situação que nunca aconteceu. Aquela coisa que você ganhou de alguém com quem você não tem mais amizade. Aquela coisa que está lá pro dia em que você for alguém que você não é. Alguém me disse outro dia que frustração é excesso de passado e expectativa é excesso de futuro. E estamos aqui cortando os excessos, porque tudo o que é excesso é desperdício.

Se não me traz uma memória feliz, eu não quero. Se eu não uso agora, sendo a pessoa que eu sou hoje, também não. Porque ter coisas repletas de frustação e expectativa é como aquela torneira da cozinha pingando sem parar. É aquele barulhinho irritando você o dia todo sem você perceber.

Fora com os materiais de arte do tipo de artista que eu não sou. Fora com os cd's que eu não ouço porque me lembram uma fase ruim, fora com a linda terrine da le Creuset que eu NUNCA usei e nem vou usar (à venda, se alguém quiser), e todas as formas de bolo paradas, e todos os livros e mangás que não vou ler de novo, e todos os livros de arte ruins que estavam lá "só para referência", e as coisas quebradas que eu não vou consertar nunca, e até mesmo meu computador, meu Mac, esse computador "extra" na casa que eu uso apenas para responder emails e postar no blog.

Conforme vou resolvendo esse vazamento específico das coisas, no entanto, tentando controlar o ambiente à minha volta para resolver minha situação emocional, dou-me conta de outro grande vazamento de energia: justamente meu controle. Que eu sou control freak nunca foi novidade para ninguém. Mas só agora percebo quanta energia joguei fora tentando controlar o que eu não posso. Toda a preocupação, todo o gerenciamento, todo o planejamento direcionado a situações completamente fora da minha alçada.

Quando li um texto sobre zen outro dia, sugerindo o exercício de simplesmente deixar a situação descontrolada chegar, instaurar-se e ir embora sozinha, sem que você tentasse fazer nada para controlá-la, senti pânico apenas de imaginar. Mas identifiquei nisso uma necessidade em mim. Aprender a deixar as crises da vida virem e irem, sem que elas de fato abalem a estrutura da casa e drenem sua energia. Não deixar que um pequeno tremor se transforme num terremoto.

Inspira, expira.

E eu sei que esse rearranjo do meu ambiente é apenas mais uma forma de controle para obter conforto emocional. Mas eliminar o estresse bobo de algumas decisões desnecessárias pode tornar a mente mais leve para lidar de forma mais relaxada com esse caminho difícil de aprender a abrir mão do controle. Simplificar em volta para simplificar por dentro.

Voltei a olhar para os livros de cozinha. Aqueles mais de duzentos que haviam se tornado cem. E que ainda pareciam demais. Todo dia que queria fazer um bolo, vinha aquela indecisão. Tentava basear a escolha na despensa, mas mesmo assim era difícil.

Um bolo de maçã. Simples ou com alguma cobertura? Tradicional ou com farinhas especiais? Porque eu tenho aquela farinha de spelta pra usar. Ou a de quinoa. E tenho uvas passas, mas também tenho cranberries. Com óleo ou com manteiga? Leite ou iogurte? Ou vegan? Ou sem glúten? Ou invertido? A que usa só uma maçã ou que usa todas as que eu tenho? Mas essa receita de novo? Ela é perfeita, mas e aquelas outras setenta e duas receitas de bolo de maçã que eu tenho e nunca fiz? E se eu usar todas as maçãs pra fazer esse bolo? Vai ter maçã de novo semana que vem pra fazer aquele outro? Será que eu faço aquele outro? Será que aquele outro é melhor? Mas eu nunca usei esse livro. Tinha que usar esse livro. Mas esse bolo dá mais trabalho. Queria um mais fácil. Mas aquele mais fácil eu já fiz e eu tinha que usar esse livro que eu nunca usei. Opa, esse bolo de banana parece mais legal. Tem banana?

Entendem onde estou querendo chegar?

É SÓ UMA DROGA DE UM BOLO. ¬_¬

Não é paz mundial.

Você vai comer o bolo e seguir com a vida. Não era para ser tão importante. Não era para gerar tanta tensão. Quando um hobby virou uma fonte de estresse? Não sei. Talvez eu tenha de ler o blog todo de novo para descobrir. ;)

Reduzi novamente minha coleção de livros para 48, incluindo uns seis ou sete que eu nunca uso mas que são de estimação, como meu livro de receitas do Veneto do Alessandro Pradelli. Metade desses 48 estão ainda no "purgatório".


Percebi que tudo o que quero é ter uma boa receita de bolo de maçã. Ter maçãs, escolher entre no máximo duas ou três opções baseado no que tenho da despensa e seguir a vida. Parar de perder tempo procurando no eat your books, então apanhando meia dúzia de livros e lendo as receitas, e então me martirizando para decidir a droga do almoço. E parar de me sentir pressionada a usar um dos livros que eu tenho e parar de me sentir mal por estar usando uma receita da internet de novo. Ficar folheando livros de cozinha e planejando cardápios era um prazer na época em que tinha uma tonelada de tempo livre. Hoje em dia simplicidade tem me dado mais prazer do que refeições elaboradas.

Num dia desses, nesse frenesi de hora do almoço, fazendo um enorme quebra-cabeças de ingredientes e tempo e nutrição e curiosidade culinária, simplesmente larguei tudo e preparei uova in purgatorio (ovo frito com molho de tomate) acompanhado de torradas de pão caseiro. E fim. Todo mundo bem almoçado e feliz, que esse é o objetivo no fim das contas.

E essa ficha caiu com força há duas semanas, quando meu filho de meros cinco anos quebrou um dente e teve de fazer o canal. Foi um dia estressante para todo mundo e tudo o que eu queria era melhorar aquela sensação para todos e principalmente para ele. Fizemos juntos uma mousse de chocolate da Alice Medrich que fica pronta para comer em meia hora, e uma pizza bianca (só de queijo, sem molho de tomate) da Tessa Kiros para o jantar, acompanhada de uma saladinha verde. Assim como o dia do peixe com batatas, foi uma refeição deliciosa e tranquila. E vendo meu filho comer todo o alface primeiro para só então atacar a pizza, percebi que eu DE FATO não preciso mais ficar neurótica. Eles já estão educados. Eles já comem coisas verdes. Segue a vida.

Não quero apenas simplificar meu guarda-roupa. Quero simplificar minha vida. Preocupar-me com o que de fato importa. Não me ocupar da nada fora do meu controle. Numa realidade em que temos tantas decisões importantes para tomar, como qual novo dentista escolher para seu filho numa emergência em que seu dentista sumiu do consultório, eu realmente não quero transformar num estresse extra a escolha do jantar ou de uma blusa pra vestir.

Fui brutal com meus livros.

Amo de paixão os livros do Nigel Slater, do David Tanis e da Diana Henry, mas toda vez que eles estão na cabeceira da minha cama ou ao lado da minha poltrona de leitura, eu estouro o orçamento do supermercado. Idem para os livros naturebas que usam uma miríade de castanhas e farinhas especiais. Estão no purgatório o meu favorito do Nigel e meu favorito do David. O da Diana está indo embora.

Não apenas os livros, até a despensa urge por simplificação. Aqueles dezoito potes de farinhas diferentes vencendo.

Depois de todos esses anos de esquizofrenia culinária, momentos de extremos e chiliques alimentares, me vejo gravitacionando em torno da minha querida cozinha italiana, onde estão minhas raízes, ramificando para o restante do mediterrâneo, com breves e pontuais incursões na Ásia.

Tenho querido o bom e velho arroz simples. Uma boa salada verde bem temperada. Batatas cozidas regadas de azeite. Um filé de pescada frito. Um bolo de maçã com canela sem frescuras.

Como se toda a complexa busca dos últimos anos tivessem servido para me dar certeza do lugar de onde eu vim. Cada vez que janto na casa de minha mãe um prato de strogonofe de frango, um bolo de cenoura, creme de espinafre... vou amolecendo por dentro. Ouvir noutro dia que o prato favorito do meu marido é aquele spaghetti com o molho de tomates mais simples do mundo, da Marcella Hazan, tocou um ponto em mim.

Depois de fazer esse corte, olhei para os livros na estante (a de cima com os que ficam, a debaixo com o purgatório), e me dei conta de que são receitas bastantes para uma vida inteira. E que eu talvez finalmente consiga cozinhar um livro inteiro, ideia que sempre me apeteceu mas sempre foi impossível dado o excesso de opções dos meus duzentos e cinquenta livros.

Enchi-me de satisfação ao me ver preparando coisas que de outra forma não faria. Com tantas receitas de bolo de maçã pra testar, por que alguém pararia pra preparar um bolo de radicchio?

Porque é bom. Estou dizendo que é bom.

Allex veio me perguntar o que diabos eu tinha contra bolos de chocolate, mas uma vez tendo dado uma mordida num pedaço das crianças, ele estava convertido. "Caramba, eu não esperava que fosse bom!"

As crianças adoraram. Levaram para a escola todos os dias, pobres crianças estranhas levando pro lanche da escola bolo de radicchio. ;) Quando fui tentar tirar uma foto melhor, o bolo já não existia mais.

Usei para a cobertura um chocolate branco da marca Casino, que é cheio de pontinhos de baunilha e mais escuro que o normal, e quando o derreti por mais tempo do que precisava, ele acabou escurecendo como um caramelo leve. Parece estranho simplesmente besuntar o bolo de chocolate branco derretido, mas como o bolo é pouco doce, o açucarado do chocolate complementa bem.

Não se sente o amargo do radicchio no bolo. Ele é um variegado roxo no meio da massa clara que, combinado à noz moscada, sugere um sabor completamente novo e irreconhecível. Um bolo italiano vindo de Chioggia, um lugar onde um dia alguém se viu com radicchio demais ocupando espaço e resolveu simplificar a vida e colocar o radicchio no bolo.

Então, preparem-se. Vem aí mais uma edição da Rapa dos Livros. o_O

Simplificando, cortando os excessos, eliminando desperdícios e relaxando a bisteca.

BOLO DE RADICCHIO
(Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 1 bolo pequeno

Ingredientes:

  • 1 generosa colh (sopa) de farinha de rosca
  • 2 1/2 colh (sopa) + 1/2 xic. açúcar
  • 170g radicchio (metade de um pequeno)
  • 7 colh. (sopa) manteiga sem sal em temperatura ambiente
  • 3 ovos
  • 1 colh. (chá) casca ralada de limão
  • 1 colh (sopa) conhaque ou rum
  • 1 colh (chá) extrato natural da baunilha
  • 1 pitada de noz moscada ralada
  • 1 xic. farinha de trigo
  • 2 colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1 pitada de sal
  • 150g chocolate branco


Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 180ºC. Unte uma forma de 20cm com manteiga e polvilhe com a farinha de rosca, descartando o excesso.
  2. Leve 1 litro de água para ferver com as 2 1/2 colh. (sopa) de açúcar. Solte as folhas do radicchio e coloque-as na água, cozinhando por alguns minutos até que amaciem. Escorra, esprema e pique.
  3. Na batedeira, bata a manteiga, o resto do açúcar e a casca de limão até que fique cremoso.
  4. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição. 
  5. Junte o conhaque ou rum, baunilha e noz moscada. 
  6. Desligue a batedeira, junte a farinha, o fermento e o sal e misture com uma espátula só até não ver mais farinha. Junte o radicchio e misture uniformemente. 
  7. Despeje na forma  e asse por 40 minutos ou até que um palito inserido no meio do bolo saia limpo.
  8. Deixe que esfrie completamente antes de desenformar. Derreta o chocolate branco em banho maria (se o chocolate não estiver derretendo bem, junte uma colher de água filtrada). Espalhe o chocolate sobre o bolo. Coberto, em temperatura ambiente, o bolo se conserva bem por uns 3 dias. 

Cozinhe isso também!

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