sexta-feira, 30 de julho de 2010

Spaghetti integral com salmão e espinafre e uma despensa revigorada

Quem passa por aqui há tempos sabe que o blog, assim como eu, caminhou em evolução constante, desde seu primeiro post até hoje. Não sou quem eu era há alguns anos atrás. Minha comida não é a mesma. Bem, apenas o que eu queria que tivesse mudado é o que continua: minha cozinhazinha pequena. O primeiro prato que preparei depois de casada, e pela primeira vez morando fora da casa de meus pais e me vendo na missão de não apenas cozinhar de domingo, ocasião especial, mas todos os dias, duas, até três vezes por dia, foi uma sopa japonesa simples, com macarrão, acelga chinesa, cogumelos shiimeji e cebolinhas. Aquela sopa foi feita com Miojo (sem o saquinho de tempero) e caldo de legumes em cubos.

Naquela época, eu já era um bocado frustrada com o desaparecimento de alguns gostos de infância, como o sorvete de morangos da Kibon, que costumava ter pedacinhos de morango e gosto... bem... de alguma coisa. A frustração do sorvete, aliada à viagem que eu acabara de fazer à Itália, onde pudera experimentar sorvete de verdade, com gosto dos da infância, fez com que eu começasse, muito devagar, a prestar atenção a ingredientes e buscar a relação qualidade/preço ao invés de quantidade/preço

Eu comprara minha primeira faca de chef [sem pretensões, o nome é esse mesmo], e passava um bom tempo prestando atenção aos movimentos das mãos de Jamie Oliver, num dos ainda pouco frequentes programas de culinária na TV. Não queria cortar cebolas como Nigella (ou minha mãe, meu deus!), devagar, com uma faquinha de frutas, quase cortando os dedos fora com a força desnecessária aplicada graças a um instrumento e técnica incorretos. Sabia que cozinhar me tomava mais tempo do que deveria, simplesmente porque algumas tarefas se arrastavam mais do o normal. Devagarinho, como quem aprende um instrumento musical, pratiquei. Adagio, para não cortar os dedos. E conforme acelerava o andamento, conforme a música se tornava familiar e eu já podia ler vários compassos à frente, o ato de preparar uma refeição foi se tornando mais prazeiroso, mais simples, mais fácil.

O tempo ganho na velocidade do mis-en-place diário me possibilitou, eventualmente, começar a abandonar alguns atalhos. Eu poderia preparar meus próprios quibes vegetarianos, ao invés de comprá-los prontos. Pois picar as cebolas, o alho, os cogumelos, a salsinha, não requereria de mim mais que poucos minutos. Mas preparar aqueles quibes todos os dias me parecia dar as costas a uma miríade de outros sabores apenas esperando para se revelarem a mim, e comecei a comprar e devorar livros de culinária como algumas mulheres compram sapatos. Era delicioso descobrir que mesmo alguns clássicos poderiam ser feitos de formas diferentes, e comecei a testá-los, um por um, buscando meus brownies favoritos, meus chocolate chip cookies favoritos, minha panna cotta, meu minestrone, minha polenta (a versão com leite, veneziana, é a favorita aqui em casa)...

Quanto mais lia e praticava, mais compreendia a ciência da cozinha e como as coisas funcionavam. Isso fez com que eu entendesse quais ingredientes devem ou não devem estar em um prato e por quê. E percebi que iogurte que não seja leite e fermento lácteo não é iogurte. Que queijos não devem ter corantes urucum e massas de sêmola de grano duro não devem ter mais absolutamente nenhum outro ingrediente a não ser... sêmolda de grano duro. A curiosidade que me levou aos livros, levou-me aos rótulos, e de repente minha frustração estava explicada, ao passo que me chocava ao me dar conta de que pagamos por comida mas não recebemos comida em troca.

Minha reação, ao contrário do que muitos pensam, não foi racional, mas visceral. Eu tinha verdadeiro nojo de determinados produtos vendidos como alimento, assim como deixara de comer nuggets de frango ainda na adolescência, quando eles começaram a apresentar pedaços de cartilagem não moída. Eu não escolhi parar de comer Bis. Eu não conseguia mais comer Bis. Não me parecia comida. Não era apetitoso.

Acostumada a acreditar que tudo na vida deve ser "super fácil" e "super rápido", porque todo mundo é "super ocupado", não foi fácil começar a encaixar em minha rotina alguns preparos que exigiam mais planejamento, como fazer meu próprio pão toda semana, ou lembrar de deixar os feijões de molho na noite anterior. Durante muito tempo, ainda apelava para produtos prontos, ainda que sem glutamato monossódico [que eventualmente descobri que me causava dores de cabeça], gomas e conservantes.

É difícil incorporar um novo hábito, mas uma vez instalado, ele se torna natural e parte de sua vida. E depois de quase cinco anos, num dia em que resolvi organizar minha despensa e rotular de caneta branca todos os potes de vidro, dei-me conta de que finalmente conseguira. Alcançara meu objetivo. Olhei para aquelas duas prateleiras de vidros rabiscados, e não pude deixar de sorrir orgulhosa. Na prateleira inferior, à esquerda, meu cesto de temperos, repleto de especiarias, ervas secas e pimentas. À direita, vidros com massas de sêmola de grano duro e algumas massas japonesas de que gosto, milho de pipoca orgânico, diferentes tipos de feijões, lentilhas, arroz basmati e arbóreo, cevada, aveia em grão, quinua, couscous marroquino, flocos de amaranto, mel, melaço de cana, tomates italianos em lata e açúcar orgânico. Na prateleira de cima, à esquerda, meu baú de confeitaria, com chocolate orgânico 60%, chocolate 99% de cacau, cacau em pó, bicarbonato de sódio, fermento químico e biológico seco, extrato natural de baunilha, matcha, lavanda, amido de milho, agar-agar, açúcar mascavo e tapioca. Ao lado, vidros com farinha de trigo orgânica, açúcar demerara e baunilhado, polenta, farinha de trigo sarraceno, farinha de farro, centeio e cevada.
Encantada com aquela despensa que jamais, durante toda a sua existência, fora tão absolutamente natural, abri a geladeira. Legumes e frutas frescas, leite, iogurte caseiro, queijos, anchovas, alcaparras, picles, mostarda de Dijon, pimentas variadas, shoyu, mirin, nam pla, maple syrup, óleo de nozes, manteiga de amendoim orgânica, geleia de laranja, gengibre em calda, farinha de castanha portuguesa, uvas passas, cramberries secas, castanha de cacau torrada e picada, ovos, manteiga, nozes, amêndoas, amendoim cru e castanhas de caju. Ali, escondido, meu pote de aparas, para o caldo de legumes da próxima semana. No freezer, caldo de legumes em porções de 500ml, gengibre, capim cidreira, alguns restos de vinho para usar em cozidos, sorvete de castanha portuguesa caseiro, biscoitos caseiros moídos esperando para virar base de torta, claras de ovos, caldo de kombu, framboesas e blueberries. Embaixo da pia, junto das panelas e protegidas da luz, garrafas de diversos vinagres, óleo de amendoim prensado a frio e gergelim, azeite extra-virgem, rum, conhaque e Marsala.

Olhei em volta. Para minha cozinha sem microondas, estranhamente silenciosa àquela hora do dia, o sol entrenuvens daquela tarde refletindo ligeiramente dourado. Pensei em minhas duas avós que já se foram. Que me inspiram tanto. Que me educaram tanto, sem saber, na arte de cozinhar com gosto, comida de verdade, para pessoas com quem me importo. Elas provavelmente ficariam curiosas ao dar de cara com quinua, nam pla ou masa harina. Mas saberiam preparar alguma boa gororoba com qualquer coisa que encontrassem aqui. A despeito do ketchup Heinz e do Toddy que meu marido não larga nem por decreto, estou orgulhosa e tenho certeza de que elas também ficariam.

É absolutamente possível viver sem depender dos produtos industrializados e de baixa qualidade de grandes multinacionais. Não só possível, como muito, muito melhor. O jantar de ontem foi uma coincidência, pois havia na despensa e na geladeira [e no vaso plantado na área de serviço, no caso do manjericão] todos os ingredientes para esta receita simplíssima de Giada di Laurentiis. E eu recomendo. Use spaghetti comum se não tiver o integral, e, se o espinafre estiver já muito adulto, de folhas grandes e espessas, como é no inverno [espinafre é melhor no outono e na primavera, quando é jovem e suas folhas são mais delicadas, melhores para serem comidas cruas], substitua por outra verdura crua semelhante, verde-escura e ligeiramente amarga. O spaghetti não é para ser comido como acompanhamento do salmão, mas sim, esse último deve ser gradualmente despedaçado durante a refeição e incorporado a cada garfada de massa e espinafre. Você pode mesmo despedaçar o salmão já grelhado e misturá-lo à massa antes de servir (nesse caso, retire a pele).

SPAGHETTI INTEGRAL COM SALMÃO E ESPINAFRE
(do livro Giada's Kitchen, de Giada di Laurentiis)
Tempo de preparo: 20 minutos
Rendimento: 4 porções

Ingredientes:
  • 400g spaghetti integral
  • 1 dente de alho, picado fino
  • 3 colh. (sopa) azeite extra-virgem
  • 1/2 colh. (chá) sal
  • 1/2 colh. (chá) pimenta do reino moída na hora
  • 4 filés de salmão de cerca de 120g cada
  • 1/4 xíc. manjericão fresco, rasgado com as mãos
  • 3 colh. (sopa) alcaparras
  • raspas de 1 limão (tahiti ou siciliano)
  • 2 colh. (sopa) suco de limão
  • 2 xic. espinafre baby/precoce (ou as menores folhas do maço)

Preparo:
  1. Coloque bastante água para ferver em uma panela grande. Quando ferver, salgue e coloque o spaghetti para cozinhar durante o tempo indicado na embalagem. Enquanto isso, coloque o alho, 2 colh. (sopa) do azeite, sal e pimenta em uma tigela grande.
  2. Tempere o salmão com sal, pimenta-do-reino e esfregue a colher de azeite restante nos filés. Coloque os filés uma frigideira grande, bem quente (cozinhe dois por vez, se a frigideira não for grande, para que eles não fiquem amontoados), pele para baixo, e cozinhe em fogo médio-alto até que o salmão mude de cor até a metade da altura. Reduza o fogo se a pele estiver queimando. O tempo vai depender da espessura do salmão (2-4 minutos, mais ou menos, mas guie-se sempre pela cor e não pelo tempo). Vire e cozinhe o outro lado. Remova da frigideira.
  3. Escorra o spaghetti e misture-o ao conteúdo da tigela. Junte o manjericão, o espinafre, as alcaparras, raspa e suco de limão e misture bem com a ajuda de dois garfos. Distribua em quatro pratos e coloque os filés de salmão em cima. Sirva imediatamente.

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