sábado, 25 de outubro de 2008

Produzo clafoutis de abobrinha, logo existo.

Estava passeando o cão numa rua movimentada, ontem, quando me dei conta de que ele tentava continuamente me arrastar para dentro de cada uma das lojas na frente das quais passávamos. Oportunista e engraçadinho, um transeunte logo apontou o fato de meu cachorro ser consumista.

Aquilo me remeteu de imediato aos meus quatorze anos, quando tive meu primeiro siricutico pare-o-mundo-que-eu-quero-descer. Já naquela época eu tinha uma séria dificuldade em aceitar "a vida como ela é". Lembro-me até hoje do meu argumento principal contra o forno microondas: "Se você for cozinhar num forno convencional, vai demorar, sei lá, meia hora prá fazer alguma coisa, e enquanto isso você vai ler um livro, fazer algo mais interessante com seu tempo. Quando a gente usa microondas, leva, não sei, 5 minutos, e a gente fica plantado na cozinha olhando o pratinho girar, porque 5 minutos é muito pouco tempo. Microondas faz a gente perder tempo", discursava eu, revoltada e adolescente. Foi o começo da minha desconfiança com tecnologias que prometem melhorar nossas vidas.

Não apenas minhas cismas com microondas persistem, como ao longo dos anos fui criando muitas outras. A mais recente fonte de discussão com um amigo meu foi o telefone celular. Como uma pessoa que tenta se viciar em cigarros e não consegue, eu juro que tentei criar com meu celular uma relação doentia de dependência, mas não fui capaz. Há quem me trate como se eu fosse "tecnologicamente incapacitada" por conta disso, e toda a discussão terminou àquele dia com meu amigo me chamando de retrógrada. Tudo porque ousei lhe dizer que estava feliz com um celular que fazia e atendia ligações, e nada mais: sem câmeras, sem mp3 player, sem fazer seu café da manhã ou trocar a fralda do seu filho. Bom e velho telefone. Se não custasse alguns reais a mais, teria inclusive aquele toque que reproduz a campainha de um telefone antigo, os de discar, pesadões, como havia em minha casa. No entanto, como acho completamente imbecil gastar meu dinheiro com musiquinhas que me avisem que alguém quer falar comigo, já fui motivo de chacota em alguns lugares porque meu pobre celular não tinha um toque polifônico que expressasse minha individualidade e meu ponto de vista a respeito da vida, universo e tudo o mais.

Continuei pensando nesse assunto até o supermercado, onde, abrindo a carteira novamente pelo direito de adquirir mais um litro de leite integral, deparei-me com uma sacola de estopa com o logo do supermercado e material de ponto-de-venda pedindo ao cliente que a comprasse e a usasse no lugar das de plástico para as compras. Tudo em nome de uma imagem mais ecológica para o supermercado e para o cliente, que vai andar todo emperequitado por aí, dando lições de moral nos outros por conta de sua sacolinha de estopa.

Não seria muito mais ecológico apanhar uma sacola velha em casa, uma mochila, ou os próprios sacos plásticos enfiados em uma gaveta da cozinha e usá-los em lugar de efetuar uma NOVA COMPRA???

Entramos aí no ponto deste post: cansei de comprar.

Muito mais do que cansar de gastar dinheiro (disso acho que estamos todos cansados), eu cansei de comprar. Qualquer coisa. Cansei de trocar meu dinheiro por bens e serviços. Cansei de consumir. Cansei do "consumo ergo existo". Cansei de comprar uma calça branca nova para combinar com aquela blusinha que eu ganhei, apesar de ter uns 4 pares de calça perfeitos no armário. Cansei de precisar de uma bolsa específica para meu laptop, porque as outras 5 bolsas no armário não são feitas para carregar um lap. Cansei de ter de abrir a carteira toda vez que saio de casa. Cansei de perder meu tempo trabalhando para ganhar dinheiro e gastá-lo com coisas que prometem me dar mais tempo para ir à praia, ficar com meus amigos e tomar cafés-da-manhã com margarina. Tudo, claro, expressando minha incrível personalidade.

Ah, quero que todo mundo se estrumbique.

E o que isso tem a ver com comida, afinal?

Tudo. O que tira minha cabeça do fato de sermos todos consumidores desvairados e sem critério, é o fato de muitos de nós gostarmos de produzir. Pessoas que passam o dia todo enfornadas em escritórios, cercados de gadgets idiotas e tecnologias que se propõe a melhorar nossas vidas mas têm o efeito inverso, ainda têm fôlego para chegar em casa e encontrar prazer em produzir uma torta do zero, sem nenhuma mistura pronta ou massa congelada. Outras voltam para casa e ficam contentes em plantar uma nova muda de hibisco na sacada da sala. Outras ainda ilustram, fazem música, escrevem, esculpem, etc. Mas produzem. Criam, cuidam de algo com suas próprias mãos, e acho que aí reside a salvação do mundo.

Acalmo minha mente culpada pelo design gráfico quando ilustro. Ilustração sempre parece um pouco mais inofensiva. Ela não grita "me compre" tão histericamente quanto os frutos de meu trabalho como designer. Da mesma forma, meu chilique semanal no supermercado, ao me ver novamente comprando uma embalagem de farinha de trigo, é amansado quando me lembro da quantidade de pães que aquele 1kg de farinha produzirá, e quantas embalagens plásticas de pão estou poupando dessa forma, levando para casa apenas uma de papel. E a tristeza que me dá por não poder colocar meus pés na terra todos os dias se dissolve um pouco quando apanho alguns ramos de alecrim da minha janela, mudinha plantada no dia em que me juntei os trapos, há 3 anos atrás. Fico feliz em pensar que há 3 anos não compro alecrim, apesar de cozinhar com ele toda semana.

Consumir faz-me sentir robótica e ligeiramente trouxa. Como se a cada Real que sai do meu bolso eu estivesse sendo um pouco mais passada para trás pelo governo, pela indústria, e por meus melhores amigos, que trabalham em marketing, publicidade ou design (como eu). No entanto, sinto-me muito mais humana e ligada a algo melhor do que eu quando produzo. Quando vejo a transformação de papel em branco em uma caricatura de um amigo, quando um punhado de terra e umas sementes viram uma pimenteira de um metro de altura, ou quando abobrinhas e ovos se tornam um clafoutis que pode ser uma das coisas mais gostosas que já saíram de minha cozinha.

CLAFOUTIS DE ABOBRINHAS
(Ligeiramente adaptado da revista Saveurs)
Tempo de preparo: 1hora
Rendimento: 4 porções


Ingredientes:
  • 2 abobrinhas italianas grandes
  • azeite extra-virgem
  • 4 ovos orgânicos
  • 50ml de leite integral
  • 70g de queijo pecorino ralado
  • um punhado de manjericão fresco rasgado em pedaços menores
  • 1 colh.(sopa) de farinha de trigo
  • 1 dente de alho grande picadinho
  • sal e pimenta-do-reino a gosto

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Corte as abobrinhas em pedaços pequenos (1-2cm) e refogue-as em um pouco de azeite até que estejam ligeiramente douradas (uns 10 minutos). Salgue e reserve.
  2. Em uma tigela, bata os ovos, o pecorino, o manjericão, a farinha peneirada e o alho picado. Junte a abobrinha refogada, tempere com sal e pimenta e misture. Distribua em 4 potinhos ou ramequins (ou em uma única travessa refratária) e leve ao forno por cerca de 30 minutos, ou até que o topo dos clafoutis esteja firme ao toque e ligeiramente dourado. Sirva quente, morno ou frio.
[UPDATE: Lembrei-me que a Suzana, do Gourmets Amadores já escrevera um texto sensacional com o tema "cozinho, logo existo". Vale a pena ler também!]

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails